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Mais uma vez a lógica

 

Ainda hoje vamos nos deter em expressões correntes no idioma sob a chancela de nossos melhores escritores, mas que o excesso de logicismo de severos críticos tem posto no banco dos réus e passam a ser injustamente substituídas ou eliminadas.

Não se trata aqui de defender maus empregos de palavras do tipo de 'espernear com as pernas' ou 'hemorragia de sangue' ou 'decapitar a cabeça' por esquecimento de que sangue e cabeça já estão aludidos nos verbos respectivos. Casas comerciais e propagandas de restaurantes e pizzarias passaram a evitar a tradicional fórmula idiomática 'entrega a domicílio' desbancada pela considerada mais lógica e correta 'entrega em domicílio' quando não pela desnecessária 'delivery'.

É fácil atentar para a razão do conserto. O verbo 'entregar' pede a preposição 'a' junto à pessoa a quem se entrega [Entregou o jornal ao vizinho], e a preposição 'em' quando a entrega se faz no local [Entregou o jornal na casa do vizinho]. Ocorre que também se podem juntar as duas noções: Entregou o jornal ao vizinho em sua residência. Ora, como avulta sempre a entrega da mercadoria a alguém, por uma elipse, o falante melhor se satisfaz com uma figura de linguagem chamada metonímia, pela qual reduz, numa operação mental, as noções ('ao vizinho' e 'na sua residência'), àquela que considera a mais importante desse jogo expressivo. Dessa economia de linguagem resulta a vitoriosa 'entrega a domicílio'.

É 'a domicílio' a expressão mais antiga no idioma e que se registra nos escritores: Fernando Sabino, 'A inglesa deslumbrada': "Até que, um dia, chegou de Portugal o marido da minha cozinheira, este realmente um mestre lisboeta do pente e da tesoura. E com a vantagem de vir executar o serviço a domicílio."; José Cândido de Carvalho, 'Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicom': "Chegou, ficou um par de dias na casa da prima de Barbirato, valsou com ela na sala de visitas, pisou luar em sua companhia, encaixou dois poréns no ouvido da menina e voltou, no trem das 7, para seu negócio de representante a domicílio no Laboratório Almeida Guedes."; Álvaro Moreira, As amargas, não...': "Sanatório, não. Bastam os Campos de Jordão, mais perto, que fornecem frio a domicílio em qualquer tempo do ano..."; Ferreira Gullar, 'Vanguarda e subdesenvolvimento': "Deve-se buscar também nessa produção em massa de histórias -iniciada com os folhetins de entrega a domicílio, mais tarde com os folhetins de jornal - a causa de algumas importantes transformações na técnica narrativa [...]"...

Na próxima semana falaremos sobre o uso das expressões 'perigo de vida' e 'perigo de morte', que uma visão logicista acabou aconselhando sem razão aos brasileiros dispensarem a tradicional maneira de dizer 'perigo de vida', que é, como mostraremos, a mais antiga no idioma.

Isto prova a necessidade de que os especialistas se encarreguem de um estudo mais aprofundado do nosso léxico para que os usuários tenham condições de reagir com mais argumentos contra lições mais apressadas.

 O Dia(RJ), 4/12/2011