Talvez não seja coincidência que Lula, nesse momento de extrema pressão sobre si, tenha sido diagnosticado com uma labirintite no Hospital Sírio e Libanês em São Paulo. Em Psicanálise, o labirinto é um modo de circular, andar, se expressar, sem finalidade marcada. Mas de não perder a cinética, o movimento, sair da apatia.
Lula em seu labirinto talvez seja a uma imagem perfeita para explicar a situação atual do ex-presidente, pressionado para assumir o lugar de Dilma na campanha presidencial, mas resistindo com receio de colocar em risco sua lenda.
Na estranha entrevista que deu em Portugal disse que o julgamento do mensalão foi 80% político, numa peculiar dosimetria que já foi classificada pelo ministro Marco Aurélio Mello de “coisa de doido”. Não haveria grandes novidades nessa fala, a não ser a medição do que foi política e do que foi jurídico na opinião de Lula, mas o ex-presidente mostrou mesmo o desencontro de seus pensamentos quando, confrontado com o fato de que as pessoas condenadas eram líderes do PT, disse ao entrevistador que eram pessoas que não mereciam a sua confiança.
Não é possível deixar de ser solidário a José Dirceu, Delúbio Soares, João Paulo Cunha e José Genoino neste momento em que, mais uma vez, Lula tenta tirar o corpo fora dos malfeitos em que seu partido vem se metendo.
Dias antes desta entrevista, ele se escusou de comentar o escândalo da Petrobras alegando para os jornalistas estar “por fora”. Como ficou muito feio dizer que estava “por fora” da compra polêmica da usina de Pasadena realizada no seu governo, Lula consertou a declaração dizendo, como sempre, que a culpa era da imprensa, os jornalistas entenderam errado. Ele dissera, na verdade, que estava fora (do país) e por isso não falaria sobre o assunto.
Mas dias depois aceitou falar mal do Supremo para uma televisão portuguesa? Qual a coerência? Mesmo dentro da mesma entrevista Lula exercitou sua incoerência, uma hora dizendo que não estava ali para criticar o Supremo, e em seguida dizer que o julgamento fora político. Exigir coerência de Lula parece ser demais.
A história mostra, no entanto, que os encarcerados do PT são todos de alta confiança de Lula em sua caminhada do sindicalismo à política partidária e daí para a presidência da República. Vejamos o caso de José Dirceu. Fundador do partido ao lado de Lula, os dois sempre estiveram juntos dominando a direção do partido.
Quando se distanciaram, perderam o controle do PT e permaneceram no ostracismo um bom período. Só retornaram ao controle partidário quando se uniram novamente, para ficarem juntos até a chegada ao Palácio do Planalto. O julgamento do mensalão os separou, Lula brilhando pelo mundo, Dirceu na cadeia. Pode ser que em relação a Dirceu Lula tenha tido um “ato falho”, revelando sua desconfiança da lealdade de Dirceu.
Já Delubio Soares era o homem de confiança de Lula na estrutura partidária e companheiro de bar, o que estreitou muito a relação. Nos bons tempos do poder, Delubio trocou a cachaça pelos bons vinhos e os botequins pelos restaurantes caros, mas a lealdade a Lula se manteve, tanto que aceitou calado a expulsão do PT depois do mensalão.
José Genoino foi a pessoa de confiança colocada na presidência do partido quando Dirceu foi para o Gabinete Civil coordenar o primeiro governo Lula, ser o “capitão” do time, como Lula certa vez o definiu. Por tudo isso, as declarações de Lula, sempre afirmando que um dia provará a verdade sobre o julgamento do mensalão, provocam reações como a do ministro Marco Aurélio, que ontem diagnosticou um “distanciamento da realidade” nas atitudes do ex-presidente. Interessante é que o autismo é comumente ligado ao labirinto.
O ministro do STF admite que “na dosimetria, pode até se discutir alguma coisa; agora a culpabilidade não. A culpa foi demonstrada pelo estado acusador”. Também o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, classificou o julgamento do mensalão como “um processo jurídico com um julgamento jurídico".
O fato de que apenas três dos ministros que terminaram o julgamento não foram nomeados nem por Lula nem por Dilma é um argumento definitivo para falar da lisura do julgamento, e Marco Aurélio Mello fez um bom resumo da situação: “A nomeação é técnico-política e se demonstrou institucional. Como eu sempre digo: Não se agradece com a toga”.
Mas, como diz um psiquiatra amigo meu, a vida e a política são labirintos.
O Globo, 29/4/2014