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George Bacóvia: Uma Agenda de Tradução

 

Sintonizo a rádio Bacóvia e ouço uma sonata de Mozart, movida por conflitos e dissonâncias. Como se um DJ misturasse notas, ritmos, pulverizando um larghetto numa profusão de síncopes. A poesia de Bacóvia (1881-1957) cresce justamente no vazio em que se inscreve. Não posso perder na tradução a série de staccati, reticências, mudanças de  registroi.

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A sintonia da Rádio Bacóvia é delicada. Não se pode eliminar a estática. Os ruídos da tradução par o português serão bem recebidos em ondas curtas. Como as “meninas” de Khliébnikov.  Como o “o sol negro” de Mandelstam.  O encanto de um cisne, eminentemente branco. Alguém reuniu o sentimento-ideia da brancura e do cisne, num processo de fusão, ao dizer cisnencanto.

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Ouço na livraria Humanitas,  de frente para a igreja Creţulescu,  o CD de Bacóvia.  O gesto fundamental do poeta lendo seus versos, como  “Amurg Violet” e “Nervi de Primăvară”. Uma partitura admirável. Sem música. Sem ênfase. Sem colorido. Lembro de Sergiu Celibidache  – seu contrário –  ao reger a segunda rapsódia de Enescu.

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Comparado ao ouvido absoluto de Verlaine, Bacóvia é praticamente surdo. Essa é a tese de Nicolae Manolescu, segundo a qual o poeta romeno desfez a orquestra simbolista. Reduziu-lhe os instrumentosii. Desafinou com sabedoria.  Nessa falha, a qualidade da obra. Longe dos preceitos do puro bel-canto, os valores negativos. Silêncio e incompletude. Assim, ao traduzi-lo, pas de la musique avant toute chose.

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Para lidar com os fragmentos da poesia de Bacóvia, registro a leitura de Heidegger da palavra abismo – Abgrund. Suspenso numa condição, Ab-Grund.

Din Urmă

Poezie, poezie...
galben, plumb, violet...
Și strada goală...
ori aştetptări târzii,
şi parcuri îngheţate...
poet  şi solitar...
galben, plumb, violet
odaia goală,
şi nopţi târzii...
îndoliat parfum
şi secular...
pe veşnicie...

No fim

Poesia, poesia...
amarelo, plúmbeo, violeta...
a rua deserta...
a espera tardia,
e os parques congelados...
poeta e solitário...
amarelo, plúmbeo, violeta,
a sala deserta,
e as noite tardias...
perfume doloroso
e secular...
por toda a eternidade

*

Os versos de Bacóvia crescem para dentro de si mesmos, segundo uma economia solidária entre os fonemas. Como por acréscimo. Tonalidades delicadas. Progressivas.

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Sigo um registro quase sem variedadeiii. Como nas litanias da igreja ortodoxa – as ectenie. E, contudo, nada em Bacóvia responde no plano da salvação. Uma perene orfandade rege seu mundo. Na dispersão do branco. Na contração do preto. E, finalmente, o cinza, que domina de modo constante, senão avassalador, aquela terra pluvial, ligada à cor de chumboiv.

La Ţărm

O, gând amar...
singuratăţi,
pribege seri de primăvară,
parfumuri ce se duc pe vânt
şi flaute din stânci de mare...
- A fost ca niciodată ...
şi valuri ce fosnec la ţărm,
îngrijitoare asteptări,
singurătăţi
şi flaute
din stânci de mare...

Na Praia

Ah! Pensamento amargo...
solidão,
as noites vagas de primavera,
perfumes que se espalham pelo vento
e flautas nos arrecifes do mar ...
- Era uma vez...
e as ondas junto à praia a murmurar,
esperanças inquietas,
solidão
e flautas
nos arrecifes do mar...

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Os céus escuros de metal de Georg Trakl (schwarze Himmel von Metall) reaparecem aqui, mantendo a rima al, além do título exato do poema-origem, “Winterdämmerung”:

Amurg de Iarnă

Amurg de iarnă, sumbru, de metal,
câmpia albă – un imens rotund –
vâslind, un corb încet vine din fund,
tăind orizontul, diametral.

Copacii rari, şi ninşi, par de cristal.
Chemări de disparitie mă sorb,
pe când, tăcut, se’ntoarce-acelaş corb,
tăind orizontul, diametral.

Crepúsculo de Inverno

Crepúsculo de inverno, frio, metal
um prado alvíssimo – vasto, rotundo –
já vem remando um corvo lá do fundo,
cortando o horizonte, em diagonal.

As árvores na neve são cristal.
Funestos pensamentos absorvo,
e volta o mesmo silencioso corvo,
cortando o horizonte, em diagonal.

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Uma agenda em diagonal? Não há poema aqui definitivo. Ensaios. Tentativas. Como se o Desejado seguisse mais perdido. Ou, quem sabe, como se o mais Perdido seguisse desejado.

 

(*) Marco Lucchesi é escritor, poeta e tradutor. Professora da UFRJ e membro da ABL. Dentre suas traduções, destacam-se A sombra do amado (Prêmio Jabuti) Poemas de Khliebnikov, Poemas à Noite, de Höldelin e Trakl (Prêmio Paulo Rónai) e Caligarfia silenciosa de George Popescu.

Publicado na Revista do Instituto de Altos Estudos da USP. SP, 2012, n. 76.

 

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iOs poemas originais foram tirados da edição G. Bacovia. Opere. Bucureşti: Editura Semne, 2006.

iiPara Manolescu, “simbolismul urmărea să fie musical, sugestiv, evanescent. Arta poetică a lui Verlaine conţine întreg programul. Muzica lui Bacovia e dizarmonică, sincopată, ţipată la trompetă, histerică. Faţă de violinele lui Verlaine, el pare amuzical; sau procedează prin stenogramă de elemente disparate ca Trakl” . In Manolescu, Nicolae. Poeţi moderni.Braşov: Aula, 2003, pg. 107.

iiiGrigurcu, Gheorghe. Bacovia, un antisentimental. București: Editura Albatros, 1974, capítulo primeiro.

ivCimpoi, Mihai, Secolul Bacovia. București: Editura Fundației Culturale Idea Europeană, 2005, p. 57.