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Entrelinhas

 

Ao final da conferência sobre Érico Veríssimo, para alunos da rede municipal de ensino, o filólogo e Acadêmico Evanildo Bechara foi demoradamente aplaudido. O ato fazia parte da bem-sucedida Maratona Escolar promovida pela Secretaria Municipal de Educação, com o apoio da Academia Brasileira de Letras.
 
Há diversas razões para a reação entusiástica da plateia. Uma delas certamente é o prestígio de Bechara, no cultivo da língua portuguesa. Outra é a forma da sua apresentação aos jovens. Pegou um trecho do romance Clarissa, em que Érico Veríssimo homenageou sua filha, colocou na tela e fez uma cuidadosa análise do significado do estilo desse autor e de tudo o que estava nas entrelinhas do seu texto. Aí é que residiu o fator principal do sucesso da conferência.

Bechara ensinou aos jovens do 6º ao 9º ano como se deve pesquisar intenções ocultas na obra, até mesmo para explicar as razões da tristeza da personagem, criada numa fazenda do interior e obrigada a viver na capital. Não vivia feliz.
 
Tenho especial atração pela busca das entrelinhas em obras literárias. Às vezes, parece inexequivel a tarefa, como se fosse a procura de agulha no palheiro. Mas quando se encontra uma explicação plausível, tem o mesmo gosto da solução correta de um intrincado problema de matemática.
 
Veja-se o caso do livro "Entrelinhas", coletânea de poemas e pequenos contos da escritora e jornalista Manoela Ferrari, formada em Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Eis alguns dos seus títulos: Perigo, Ode ao ídolo, Felicidade Constitucional, O Afogamento, Campus de Concentração, Dupla de Nada, Amor Literário, Carpe Diem etc. Por aí pode-se fazer um primeiro exercício de adivinhação das verdadeiras intenções da escritora, no seu texto cristalino e vernácularmente perfeito.
 
Manoela ancorou a memória em ocorrências marcantes do passado, que se alternam nas incidências do cotidiano, nem sempre plenamente felizes. Onde, entretanto, estão os fatos reais e onde se encontram os fictícios? Esse o segredo da astúcia e da competência da autora, que se revela de todo modo uma mulher guerreira, como demonstra na sua construção narrativa, em que florescem primores de prosa e verso, raros numa estreante na cena literária, mas plenamente visíveis ao observador mais atento.
 
Na busca pela felicidade, presente nas luminosas entrelinhas da obra, pode ser sentida a diferença entre o implícito e o explícito. A jovem autora, como Bechara viu no consagrado Érico Veríssimo, em sua "Clarissa", compartilha os espaços de significação da sua fluente escrita com os leitores reais e imaginários. Embora revele desejar o dom de Machado de Assis, Clarice Lispector ou Ferreira Gullar, ainda assim se dispõe a enfrentar o que chama de luta corporal com os instrumentos da nossa língua, muito bela, como todos sabemos. Tanto mais bela quanto mais nos aproximarmos dos seus insondáveis segredos, presentes direta ou indiretamente em nossos discursos literários.

Folha Dirigida (RJ), 25/8/2011