Vimos, no último domingo, o emprego diferenciado de ‘onde’, ‘aonde’ e ‘donde’ na sintaxe do português contemporâneo, segundo a lição dos nossos melhores gramáticos e dicionaristas.
No português de outras épocas, empregava-se o relativo ‘onde’, pronome ou advérbio, em construções hoje esquecidas na variante da língua padrão, enquanto outros empregos vigentes na modalidade coloquial ou popular, segundo alguns manuais de estilo jornalístico, devem ter o nosso ‘onde’ substituído obrigatoriamente pelas formas relativas compostas ‘em que’ ou ‘no qual’, ‘na qual’, ‘nos quais’, ‘nas quais’, quando ‘onde’ não se referir a lugar físico.
Entre os melhores e mais extensos repertórios de emprego de ‘onde’ está o que escreveu o notável sintaticista português Epifânio Dias na “Sintaxe histórica portuguesa”, saída postumamente em Lisboa, pela Livraria Clássica Editora, em 1918, no § 236. Além de valer por ‘aonde’ e ‘donde’, o advérbio relativo ‘onde’: a) pode não ter antecedente expresso: Pô-lo [no lugar] onde eu mandei; b) precedido das preposições ‘de’, ‘desde’, ‘para’, ‘por’, etc. significa ‘o qual’, falando de coisas inanimadas ou seres animados: “Cristo que é a carta de marcar, por onde nos havemos de reger” (Heitor Pinto); “Este que não vês é Luso, donde a fama / O nosso Reino Lusitânia chama” (Camões); c) também equivale a ‘com o que’, designando ‘com’ a causa ou o meio: “pelo grande inchamento do ventre vem-lhe fluxo onde o cavalo [se] tornou fraco” (Mestre Giraldo).
A variedade de exemplos em bons escritores nos permite concluir que ‘onde’, por ser empregado em referência a antecedentes que não se enquadram na noção de lugar físico, se emprega também em referência a posições virtuais no espaço ou no tempo, em construções do tipo: “A paciência é um arnês onde se recebem os golpes da adversidade”; “A guerra é um jogo onde não há ganhador”; “Foi nesse livro onde aparece pela primeira vez essa tese”; “Crescemos na quadra da vida, onde aparecem as dificuldades”.
Construções muito próximas a estas aparecem nos manuais de estilo. O preparado para O Estado de S. Paulo, sob a competente orientação do saudoso Eduardo Martins, não recomenda senão o emprego de ‘em que’, em vez de ‘onde’, nos seguintes exemplos: “O conjunto definiu uma formação em que (e não ‘onde’) todos cantavam. / Na oração em que (em vez de ‘onde’)... / O release em que... / Eram dois discos radicais em que a fluência melódica... / É a única faixa em que Hermeto toca... / Distribuiu memorando em que... / Uma carta em que... / Declaração em que... / A ideia em que... / A tese em que... / Piadas em que... / Uma comédia em que... / O pensamento em que... / O século em que... / O ano em que... / Neste dia ensolarado em que... / Nesta época em que... / O partido em que ocorreu a irregularidade... / Na entrevista em que... / Na partida em que... / Arranjou um emprego em que colava selos nos envelopes... / Uma guerra em que...” (“Manual de redação e estilo”, 3ª edição, Editora Moderna, pág. 204).
A rigor, não se trata de um erro de gramática, mas de uso que pode prejudicar a clareza e o vigor da exposição das ideias, uma vez que pode oferecer dúvida na interpretação imediata da frase. Isto ocorre com muita frequência quando uma forma gramatical é dotada da possibilidade de exprimir mais de uma noção; é o cuidado que se deve ter ao utilizar, por exemplo, do infinitivo ou do gerúndio em orações chamadas reduzidas. Não se há de negar emprego do pronome e advérbio relativo ‘onde’ que conheceu desde época remota grande vitalidade semântica, vitalidade que aflora nas circunstâncias comentadas aqui. Por isso que não encontramos nos gramáticos condenação do ‘onde’ nestas circunstâncias. Há sim alusões a inadequações. É o caso do Prof. Cegalla que, no seu “Dicionário de dificuldades”, considera “inadequado” seu emprego nas frases: “Este foi um dos casos onde (por ‘em que’) servi de mediador”; “Vivíamos numa época onde (por ‘em que’) os meios de comunicação eram precaríssimos”.
O Dia (RJ), 19/2/2012