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E.M. CIORAN

 

Uma noite fria no Café Kapşa em Bucareste. O escritor Marin Mincu desenha suas ideias para o centenário de nascimento de Cioran, com algumas cartas do filósofo nas mãos. Um copo de tsúica e Mincu insiste na matriz romena de Cioran e do diálogo deste com Ionescu e Eliade. Mas também Constantin Noica, das Seis doenças do espírito contemporâneo, Alexandru Dragomir, discípulo dileto de Heidegger, e do profundo e incontornável Lucian Blaga. Parecia fundamental atingir os fantasmas romenos que habitam as ruínas de Cioran.

Nascido em Rășinari, em abril de 1911, no sul da Transilvânia, Cioran alcança uma sólida formação literária e filosófica em Bucareste e na Alemanha. Segue depois para a França, em cuja língua passa a escrever desde então (esse idioma emprestado, com suas palavras sutis, carregadas de fadiga e pudor) deixando atrás de si uma importante bibliografia em língua romena. 
 
Não se enganava Marin Mincu: há em Cioran um cerrado confronto metafísico na esfera do trágico, em seu diálogo com Eliade e Botta, uma espessa dialética vizinha ao pensamento de Blaga. E certamente Nietzsche, Schopenhauer, Dostoievski. A educação filosófica de Cioran, além de longitudinal, revela-se altamente articulada. Cosmopolita e de raiz. No fim da vida, reconhece uma herança de fundo gnóstico e de velha cepa, que remonta à cultura dos Balcãs: “por mais que desejasse libertar-me de minhas origens não consegui. Ninguém alcança libertar-se de si mesmo.”

Na história das formas breves, que dominaram o século XX, Cioran ocupa lugar de destaque. Disse de si mesmo que era um homem do aforismo. Seus fragmentos – como os cristais das   Banalidades, de Dragomir, ou os grumos do Tractatus, de Wittgenstein – respiram uma condensada   história da filosofia. Não passam de esplêndidas ruínas, náufragas de sua perdida glória – arrancadas de extensas passagens reflexivas, mediante o martelo filosófico de Nietzsche: ruínas sempre, cheias de um brilho feroz, varadas pela sinergia das coisas incompletas e, por causa disso, fortemente potenciais.   

Cioran não espera o socorro de um horizonte conceitual devastado, através de uma possível solução totalizadora, nem clama por um anjo capaz de preencher lacunas, ou de soprar, com sua trompa dourada, a melodia de um todo esquecido. Ao contrário, o filósofo ilumina a tensão de um pensamento propositadamente aerado ou disperso e advoga, como ninguém, a volúpia do insolúvel: “nunca tentei aplainar, reunir ou conciliar o irreconciliável”. Uma poderosa nuvem de fragmentos, portadora de uma tensão efervescente, jamais  um sistema pronto e  acabado. Daí sua inclinação pelas cartas de Nietzsche, onde brilha um discurso impreciso e tateante, fora do profético ou do absoluto de Zaratustra, diante de quem Cioran já não vibrava como outrora. 

O programa desse não-programa surge com o ensaio “Uma forma especial de ceticismo”, quando o jovem filósofo romeno dos anos 1930 aposta no excesso da dúvida: “o valor do cético na antiguidade media-se a partir da tranquilidade da alma. Porque não deveríamos criar, nós, que vivemos a agonia da modernidade, um ethos trágico, onde a dúvida e o desespero se confundissem com a paixão, com a chama interior, num jogo estranho e paradoxal?”

Para alguns estudiosos, aquele paradoxo levou o filósofo a atingir as afecções e as tonalidades emotivas da alma, assumindo um lirismo mitigado e uma inquietação irreversível, isenta de paz, sob uma ótica lúcida, diante do paroxismo das coisas que nos cercam. Não havendo salvação no plano da história ou da metafísica.  
 
Nesse vasto percurso, como em Silogismos da amargura ou História e utopia, a dimensão do devir e a reserva de esperança deixam de fazer sentido na filosofia da história, nos modelos de Hegel ou Marx, para não falar das teologias da história, igualmente anódinas e ilusórias.  “Há mais honestidade e rigor nas ciências ocultas do que nas filosofias que atribuem um sentido à história”. Cioran foge das grandes sínteses em que o sujeito se afoga nos mares perigosos da abstração. 

Nada se pode esperar. Nada se pode oferecer aos altares vazios da história e da utopia. Acabou o tempo em que os faraós inscreviam seu nome na memória das rochas. Para Cioran os ciganos são o verdadeiro povo eleito: ”triunfaram do mundo por sua vontade de não fundar nada nele."

Aqui está todo um sentimento. Mais que um programa ou sistema. Cioran vive. Porque não reúne ou aplaina. Não organiza ou completa. Dissolve. Apenas dissolve. E não corre poucos riscos aquele que dissolve. Como quando afirma que “as únicas utopias legíveis são as falsas, as que escritas por jogo, diversão ou misantropia, prefiguram ou evocam as Viagens de Gulliver, bíblia do homem desenganado, quintessência de visões não quiméricas, utopia sem esperança. Através de seus sarcasmos, Swift varreu a estupidez de um gênero até quase anulá-lo”. O que nos resta fazer, afinal, senão dissolver a tessitura da utopia, desfibrar-lhe os pontos de sua trama, purificá-la dos últimos resíduos de moralina?  A utopia e o Apocalipse formam como que a dupla face dos tempos que correm. Ambos se contaminam mutuamente, criando, assim, um  modo novo e terrível, capaz de bem  traduzir o nosso inferno, ao qual havemos de responder com um sim, correto e desprovido de ilusão. Irrepreensíveis diante da fatalidade. 

Cabe ressaltar ainda a boa tradução de José Thomaz Brum do pensamento de Cioran, com quem se correspondia em 1991, quando lhe publicou o primeiro livro no Brasil – Silogismos da amargura – alterando inclusive trechos do original, a pedido do próprio autor. Dentre outros estudos de Brum, sublinho O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche – tese de doutorado defendida em Nice e orientada por Clément Rosset. O que nos diz da forte ligação do tradutor com a sagrada família a que de algum modo pertence, sem de todo pertencer, o inclassificável Cioran.

Tiro de Breviário da decomposição o seguinte fragmento: “Uma caverna infinitesimal boceja em cada célula... meu sangue se desintegra quando os brotos se abrem, quando o pássaro floresce. Invejo os loucos  sem remédio, os invernos do urso, a secura do sábio, trocaria por seu torpor minha agitação de assassino difuso que sonha crimes além do sangue.”

Um assassino difuso para conter a febre das utopias e o delírio da história. Eis a tarefa de Cioran, que não hesitaria subscrever o poema “Autorretrato”, do romeno Nichita Stănescu sobre o precário da humana condição: “Sou apenas uma mancha de sangue que fala”.

O Globo, 16/04/2011