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Cidade de enganos mil

 

Desde pequena, a Cidade Maravilhosa acostumou-se aos elogios. Era uma criança quando um de seus amantes, o primeiro governador-geral, Tomé de Souza, escreveu: “Tudo é graça o que dela se pode dizer”. Até os religiosos guardaram para ela olhares profanos. “É a mais airosa e amena baía que há em todo o Brasil”, suspirou o Padre Anchieta. Ela também fez pose para Rugendas e graça para Debret. Poucas cidades exibiram com tanto despudor suas formas, linhas, cores e curvas. Isso a fez narcisista, vaidosa, sedutora, aberta, que não escondia nada.

Hoje, porém, além de tudo isso, sabe-se que é fingida e enganadora. Com fama de acolhedora, executa turistas. Classifica de “perdidas” as balas que têm indefesos inocentes como endereço certo. Criou a cultura permissiva da bandalha — da contramão, do ilícito, da transgressão. O crime é tanto que parece compensar. Só com colarinhos brancos que estão ou já foram presos, Ancelmo Gois escalou o time “Xadrez F.C”, formado exclusivamente de cariocas de algema. Aqui, a exceção virou regra, o desvio é a norma, a informalidade transformou-se em promiscuidade. Metida a irreverente e insubmissa, não sabe escolher seus dirigentes.

A culpa, portanto, seria nossa, dos eleitores. Em muitos casos, sim, mas convenhamos que em outros não; houve traição, fomos enganados em nossa boa-fé. Como poderíamos prever que um político jovem e promissor, que tinha tudo para ambicionar a presidência, preferiu a insaciável ambição de, junto com a mulher, ficarem milionários desviando o nosso dinheiro? Como desconfiar que um Tribunal, em vez de fiscalizar, roubava nas contas? Como imaginar que um estado que há pouco tempo nadava em dinheiro se encontra falido e dando calote em seus funcionários, com um ex-governador sujeito a pegar 50 anos de prisão por corrupção, lavagem de dinheiro e associação criminosa, e um substituto sob suspeita de ter recebido R$ 900 mil do esquema de corrupção do TCE?

E como admitir que uma cidade hedonista, cuja imagem foi sempre associada a sol e mar, passou a ter como metáforas “poço”(o fundo) e “túnel” (sem luz no fim)? Enquanto isso, de Lisboa, onde está e é muito querido por ter escrito uma das melhores biografias de Fernando Pessoa, José Paulo Cavalcanti Filho me provoca fazendo inveja: “Nesses dias que correm, o país das coisas certas é Portugal”. Diante dessa e de outras notícias alvissareiras da Terrinha que tanto amo, fiquei com vontade de cantar o “Fado Tropical”, de Chico e Ruy Guerra: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”.

O Globo, 05/04/2017