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Cassiano - Injustamente esquecido

 

Cassiano Ricardo foi um poeta que pertenceu a uma raça extinta de bandeirantes da palavra. Ele nasceu em São José dos Campos a 26 de julho de 1895 e, injustamente esquecido, morreu na cidade de São Paulo a 14 de janeiro de 1974.


Poeta, crítico e ensaísta, participou do Modernismo, nos Grupos Verde-Amarelo e Anta.


Elegeu-se para a cadeira nº 31 da Academia Brasileira de Letras, na qual sucedeu a Paulo Setúbal e a João Ribeiro, sendo nela sucedido por José Cândido de Carvalho, Geraldo França de Lima e o atual ocupante, Moacyr Scliar.


Com uma impressionante capacidade de renascer a cada livro, como nova árvore de mesmo broto, Cassiano foi o Poeta das Metamorfoses - como as de Ovídio -, tendo um ouvido no presente, que nunca entortou, e outro no porvir, quando tentou escutar a música e o pranto dos Jeremias do Brasil primitivo.


No fundo, sua meninice se encantara no som dos vocábulos e não sabia nada mais ver senão infância em tudo. Foi modernista da infância e talvez o mais fino e arguto teórico da nossa crítica poética, além de ter sido o mais bem informado sobre todos os movimentos vanguardistas. Que o digam Algumas reflexões sobre poética de vanguarda.


Um ponto alto de sua ensaística é A marca para Oeste, sobre a influência da bandeira na formação social e política do Brasil.


Cassiano, também temerariamente esquecido, confirma mais uma vez que não temos memória. Onde estão os seus livros? Por que desta forma é deslembrado o maior poeta que São Paulo já produziu, enfrentando a propaganda sinuosa de alguns ditos críticos sem obra, verdadeira sociedade dos analfabetos anônimos?


Entre os seus livros ainda encontráveis, a única exceção é Martim Cererê, publicado em 1928, com várias reedições. Todos os outros se esgotaram e descansam no silêncio.


Antecedido de Vamos caçar papagaios, em 1926, e superada a febre participante dos movimentos modernistas, Cassiano alcançou o projeto de maturidade, num signo mais erudito, com Eu, no barco de Ulisses. E é com Um dia depois do outro que ocorre o milagre da metamorfose, de livro em livro, para a grandeza de sua poesia, que Drummond chamou de ''chapliniana'' e que toma o mais concreto senso de ''uma realidade que rebenta''. E aí estão poemas extraordinários, como Relógio: ''Diante de uma coisa tão doída, conservemo-nos serenos. Cada minuto de vida nunca é mais, é sempre menos. Ser é apenas uma face do não ser. Desde o instante em que se nasce, já se começa a morrer''.


Seguem-se outros grandes poemas, como Só hoje é que sou inocente, um dos mais belos do nosso idioma. Depois, surgiu outra metamorfose, com João Torto e a fábula, de 1956, em cujo Prefácio desnecessário explica que João é um pescador que viu cair uma bomba de hidrogênio sobre uma ilha deserta. ''Olhou-se no espelho, vendo que o rosto estava torto e monstruosamente inocente. Não é o espelho que se deformou. João é que ficou torto''.


A problemática inovadora do livro é sua consciência de modernidade. O homem padecendo os danos de sua própria invenção: a bomba de hidrogênio. Poeta deste tempo científico e desagregador persiste em João Torto, que se torna milhões de Joões Tortos, porque tudo é deformação.


A invenção ricardiana renova-se mais uma vez em Jeremias sem chorar, de 1969, ''um poema com grande sentido estético, político e filosófico'', no qual sentencia, entre outras coisas: ''Uns mataram a sede no suor dos outros''. Ou então: ''A lágrima é ridícula. Porque um homem não chora''. Ou ainda: ''Só o mudo é que diz tudo. O verso é belo mas não diz tudo. Quem diz tudo é sempre a palavra''.


Em Os sobreviventes, de 1971, seu último livro, Cassiano tem como motor esta matéria de sermos resistentes, de vivermos entre espera e esperança, esmagados de tantas cargas e valores, a economia, a correção monetária e os juros, criados em tempo altamente inflacionário. Poeta de uma inocência que tenta recuperar, de infância em infância, sabemos que o tempo de Cassiano não é a ''difícil manhã, que está nele. Mas a ruptura da casca de mistério, uma casca de sol donde há de vir toda a luz! Ainda que o relógio soluce como um pássaro no bolso''.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 16/11/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 16/11/2005