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Acordo por dentro e por fora (V)

 

Da mais recente tentativa de negociação para aproximar os dois sistemas ortográficos vigentes no Brasil e em Portugal resultaram duas propostas, uma em 1986, no Rio, e outra em 1990, em Lisboa. A primeira caracterizava-se por alterações mais avançadas, em que o negociador brasileiro, o acadêmico Antônio Houaiss, trazia à mesa algumas antigas posições simplificadoras do seu mestre Antenor Nascentes. O texto daí resultante mereceu críticas severas, sobretudo de Portugal, porque, fundamentalmente, se desviara do propósito motivador da reunião que, como sabemos, seria diminuir as diferenças. Na segunda reunião, em Lisboa, com o linguista João Malaca Casteleiro como o principal negociador da equipe portuguesa, prevaleceu, como vimos aqui, franca aproximação com as Bases do Acordo de 1945.
 
Compreende a inteligência e a sensibilidade diplomática de Antônio Houaiss que assim o texto daí resultante poderia alcançar maior receptividade entre os países signatários, Portugal à frente, de modo que, enfim, a língua portuguesa lograsse atingir, neste aspecto, à maturidade cultural e política como veículo de difusão internacional. Nesta aproximação com o texto de 1946, nós brasileiros passaríamos a adotar pequenas alterações de acentuação tônica (não mais usaríamos acento agudo nos paroxítonos com os ditongos abertos éi e ói: ideia, jiboia; bem como não marcaríamos o "i" e "u" tônicos depois de ditongo decrescente: maoista, cauila, feiura, baiuca); passaríamos definitivamente a escrever com 'i' e não com 'e', o sufixo -iano e -iense: acriano (e não acreano), de Acre, camoniano (de Camões); usaríamos -io e -ia (e não -eo e -ea) átonos em formas variantes de substantivos terminados em vogal, como réstia(e não restea), hástia (e não hástea); aliviaríamos o circunflexo de "voo", "enjoo", e "veem" "leem"; reduziríamos os acentos diferenciais obrigatórios a "pôde" e "pôr"; aboliríamos o trema sobre o'u' proferido dos grupos de gue, gui, que, qui:tranquilo, quinquênio. Todos estes novos hábitos gráficos já eram correntes no sistema português-africano de 1945. 

No campo da morfologia, campo que não tem toda a sua extensão como objeto privilegiado da ortografia, mas sim da gramática, o novo Acordo aproxima flexões mais usuais em Portugal de verbos em -iar (negociar, agenciar) aos em -ear (negocio/negoceio; agencio/agenceio), nas pegadas do Acordo de 1945. 0 novo Acordo, ainda repetindo o de 1945, considera abundantes os verbos em -guar, isto é, admite as flexões "deságuo" e "desaguo" nas formas rizotônicas, ou seja, naquelas em que a sílaba tônica está no radical".

E a respeito do hífen: O novo Acordo conseguiu sistematizar as dificuldades inerentes ao emprego do hífen, dificuldades que enfrentam todas as línguas que utilizam este sinal diacrítico. Não havendo em conta pouquíssimos casos particulares, dois são os grupos: a) aquele constituído por duas classes de palavras: substantivo, adjetivo, numeral, verbo, advérbio; b) um prefixo ou falso prefixo seguido de palavra, previstos nas Bases XV e XVI.
 
Todas estas alterações, vale a pena dizer, vieram não só para aliviar o sistema ortográfico de emprego de acentos diacríticos desnecessários, mas também oferecem soluções mais de acordo com o rigor histórico. Eliminar o circunflexo de Voo' representa eliminar uma acentuação desnecessária, uma vez que não há outra maneira de ler a palavra. A eliminação do circunflexo de 'crêem' corrige um fato histórico. Até o século XVIII e XIX, a 3ª pessoa do singular era 'crê', lê'e a 3ª do plural era'crem;'lem'. A partir do século XVIII para XIX aparecem as formas reforçadas crêem, lêem, em que a duplicação dos 'ee' já é a marca de plural, o que dispensa o circunflexo. Assim, procedeu o novo Acordo. Quanto ao trema, é um diacrítico de uso muito recente, o que evidencia sua pouca utilidade. Os portugueses não o empregam de há muito, e não sentiram necessidade de reavivá-lo.

Não falamos com palavras soltas. Elas se inserem num contexto que, facilmente, nos leva a resolver aparentes dificuldades de interpretação.

O Dia (RJ), 25/9/2011