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Exposição | Dois e Muitos

Sobre: 

Jacques Stemer, Dois e Muitos

A requintada arte de Jacques Stemer é, por sua intrínseca multiplicidade, de difícil classificação. A deformação, no entanto, uma deformação pós-expressionista, se mantém como um dos seus traços predominantes. Há, em algumas de suas figuras que merecem o adjetivo de monstruosas – na verdade pouco numerosas no conjunto de sua obra –, algo que nos relembra Dubuffet e seu conceito de Art Brut, assim como alguns brasileiros contemporâneos, como Siron Franco ou Hélio Jesuíno de Albuquerque. Tais deformações, que não chegam à explícita crueldade de algumas composições de Francis Bacon, desorientam-nos em outras obras – especialmente paisagens, com ou sem a figura humana – quando ressurgem numa jubilosa e iluminada ambiência de vitalismo, de celebração do estar aqui, o que se revela imediatamente pela mudança da orientação cromática.

As pinturas e outras obras em técnica mista de Jacques Stemer – muitas tendo jornais e outros restos gráficos como suporte, o que as aproxima da Arte Povera e não deixa de sempre criar certa polifonia conceitual – são, por outro lado, cheias de um humor ácido, de uma visão do homem quase sarcástica, como numa carnavalização das relações sociais que nos faz lembrar, mas de forma menos explícita, as máscara de um James Ensor, ou, de forma menos explícita ainda, as vastas composições satíricas de um Otto Dix.

A figura feminina é um dos motivos centrais desse universo cerrado do artista, às vezes banhada por um lirismo marcante, outras numa ambiência de certa crueldade, uma crueldade mais sutil que a de um Balthus, com o qual o nosso Francisco Brennand – o pintor e desenhista, não o escultor – apresenta evidentes afinidades eletivas.

Todas as obras de Jacques Stemer, no entanto – tanto as que celebram a vida, as paisagens e os países, como as que apontam os ridículos e as misérias dos homens, bem como aquelas que se aproximam de uma beleza quase abstrata –, apresentam um invariável traço de união entre elas, que é o seu domínio da composição e da cor, a sua capacidade natural de transformar tudo em que toca naquela thing of beauty que Keats afirmou, em verso e conceito imortais, ser uma alegria eterna.

 

Alexei Bueno
Curador da Galeria Manuel Bandeira

 

Nós somos dois

Jacques Stemer é francês, nascido no Líbano e radicado em Paris, tendo, entre outros títulos, o Certificado de Estudos de Farmacologia Clínica e Farmacocinética da Faculdade de Medicina (Paris Salpetrière). Detentor de várias licenças internacionais de medicamentos, não vê “nenhuma diferença entre a criatividade científica e a artística”.1

Com várias passagens pelo Brasil, entusiasma-se pela luz tropical, considerando-a “uma cor em si mesma e, sobretudo, oferece, antes de mais nada, a magia das cores. Uma luz como esta, palpável, do Brasil é, para mim, a quarta cor, além das três primárias: azul, vermelho e amarelo”. Na França, seus desenhos são mais escuros. Passa a desenhar sobre os classificados do jornal O Globo, deixando frases e palavras aparecerem, fazendo parte dos seus desenhos.

Sobre a sua poética, Stemer afirma que nada é premeditado, apenas meditado: “Entretenho um diálogo com meu trabalho, com o suporte de papel, com a tela, com as formas e as cores. Também não estou jamais inteiramente só com a obra que elaboro; nós somos dois, nós não nos separamos”.2

Seu interesse pela Art Brut se define pelo uso de temas, materiais, meios de transposição, ritmo, modos de escrita dos próprios artistas, sem referência à arte clássica ou à que se faz no momento. “Começo quando estudo desenho e gravura, e não quero ir muito longe para não limitar a expressão da minha criatividade.” Tendência que se acentua nos seus desenhos em acrílico, em que diferentes signos se emaranham com cores variadas, pendendo, muitas vezes, a cores profundas. Parafraseando Dubuffet ou Chaissac, ele afirma: “É preciso escolher entre fazer arte e ser visto como artista, e a Art Brut deve trabalhar para si mesma.”3 São muitas as colagens, com recortes de fotos e de jornais colados ao desenho, criando uma situação em que texturas diversas, superpostas, geram a imagem.

Os títulos, em geral escritos na vertical, são diretos, indicando os temas e locais. “Se os títulos”, como diz Adorno, “são os lugares onde os pensamentos vieram habitar para aí se dissolverem”4, ou ainda como assinala Michel Butor, “são como manuais de instrução”, mode d’emploi, em Jacques Stemer parecem simples indicadores, sem maiores conotações. Flores, por exemplo, conjuga flor tropical e um fundo verde-escuro, não deixando de lembrar certos desenhos de Matisse, trazendo como título apenas a indicação do que deu origem ao desenho.

São muitas também as paisagens com vista do Rio de Janeiro. Segundo o artista, “Fui marcado pelo Rio de Janeiro, cidade cheia de vida, de cores. Por vezes quero transmitir o sentimento de doçura que sinto em certas paisagens, rodeadas de montanhas, o mar ao longe. O tema da cidade extremamente colorida retorna como um Leitmotiv ocupando o meu inconsciente.”5 Paisagem do mar, por exemplo, com azul-claro e detalhes como pequenas embarcações, ou Cidade imaginária, de 2011, com sua grande massa negra, guarda, no entanto, aspectos azuis e brancos, e uma espécie de quadro dentro do desenho com um círculo branco.

Obras feitas com base na exploração dos territórios da subjetividade e da imaginação criadora, inventadas sob o impacto da emoção, que se colocam meio à margem da tradição e do sistema artístico, guardando, contudo, grande força poética.

Glória Ferreira
Doutora em História da Arte, curadora e crítica independente.
1 Jascques Stemer. Apud Currículo do artista, inédito.
2 Jacques Stemer. O Artista para ele mesmo, op. cit.
3 Jacques Stemer.  O Artista para ele mesmo, op. cit.
4 Adorno, T. W. Titres. In: Notes sur la littérature, 1958, tr. fr. de Sibylle Nuller, Paris: Flammarion, 1984.
5 Jascques Stemer. O Artista para ele mesmo, op. cit.

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