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Zonas de interpretação

 

Em paralelo à discussão conceitual sobre a prisão em segunda instância, que prevalece nas principais democracias ocidentais quando a prisão não é decretada logo na condenação em primeira instância, como nos Estados Unidos, há uma vasta área cinzenta de interpretação constitucional.

Caso uma provável mudança da jurisprudência recente do STF saia do julgamento que começa amanhã, dependerá de interpretação a decisão sobre que presos serão afetados. O presidente da Associação Nacional do Ministério Público (Conamp), Victor Hugo Azevedo diz que homicidas e estupradores poderão ser soltos.

Ministros do STF, mesmo alguns que se dizem a favor da segunda instância, acreditam que esse argumento terrorista não tem lógica, pois os presos perigosos podem ficar presos provisoriamente.

Os números que estão sendo apresentados pelos que defendem a jurisprudência atual, que permite a prisão após decisão dos Tribunais Regionais Federais, são considerados exagerados pelos defensores da mudança, como o ministro do STF Gilmar Mendes.

Ele considera que é impossível que 170 mil presos sejam beneficiados. Mesmo estimando que todo o acréscimo de encarcerados de 2016 (quando mudou a jurisprudência do STF) a 2019 seja resultado direto da decisão do Supremo, ainda assim teríamos um total de 85.300 presos possivelmente beneficiados.

Esse cálculo de 170 mil presos se basearia em uma compreensão equivocada do que seja “prisão provisória”, a única maneira de poder prender um condenado antes do trânsito em julgado, caso vença essa tese.

Ela independe de decisão condenatória, de primeira ou de segunda instância. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), hoje 40% do sistema prisional brasileiro são de presos provisórios. A prisão é justificada pelo artigo 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública, da ordem econômica, a conveniência da instrução criminal, ou a asseguração da aplicação da lei penal.

A exigência de culpabilidade apenas depois do “trânsito em julgado” é considerada cláusula pétrea, e está inserida no artigo 5º, LVII da Constituição: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

É o que as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) utilizam para combater a prisão em segunda instância, alegando que ela é inconstitucional. Como se trata de uma cláusula pétrea, a opinião majoritária de juristas é que é impossível alterá-la, mesmo através de uma proposta de emenda constitucional (PEC) como a do deputado Alex Manente que está em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara.

No novo texto, ninguém seria considerado culpado “até a condenação na segunda instância”. O que é incoerente com a argumentação jurídica dos que defendem a prisão em segunda instância. Para esses, o mérito da condenação é julgado pelas primeira e segunda instâncias, e os recursos que restam não afetam a decisão, a não ser que sejam encontrados erros factuais nos tribunais superiores (STJ e STF).  

Para se ter uma idéia, o número de processos revistos do STF das decisões do STJ é de 0,006%. Mas os condenados presos continuariam com o direito de recorrer, não sendo, portanto, considerados culpados até o fim dos recursos.

Há ainda um argumento que foi apresentado pelos ministros do STF Luis Roberto Barroso e Luis Fux em recente julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula, diferenciando a “culpabilidade” da “prisão”.

No mesmo artigo 5º, no inciso LXI, que trata da prisão, está definido: “ninguém será preso senão em flagrante delito, ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

O ministro Luiz Fux ressaltou que a decisão do tribunal TRF-4 determinando a prisão de Lula é “ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”.

Têm-se, então que o artigo da Constituição que trata de “culpabilidade” e “prisão”, não podendo ser alterado, pois se refere aos “direitos individuais”, uma cláusula pétrea, só pode ser interpretado, e é o que está sendo feito a partir desta quinta-feira pelo Supremo Tribunal Federal.

O Globo, 16/10/2019