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Uma disputa sem graça

 

Como consolo, costuma-se dizer que as mazelas e os problemas não são exclusivos do Rio; eles existem em todas as metrópoles brasileiras. Sim, mas em termos, nem sempre na mesma proporção e com as características dos nossos. A Cidade Maravilhosa acumula hoje quase todas as crises possíveis — econômica, política, moral, fiscal, de segurança e de saúde pública. Uns poucos dias em São Paulo servem para estabelecer comparações. A chegada, por exemplo, desanima, dá vontade de voltar. Você leva 50 minutos do Santos Dumont a Congonhas e hora e meia para chegar ao hotel no Centro e, pelo que diz o taxista, é sempre assim, e ele tem razão: SP não pode parar, já parou. Chegando, porém, a constatação de que, ao contrário daqui, a ocupação dos hotéis é de 100%, e não apenas neste último fim de semana, em que havia os shows do U2, atraindo milhares de fãs de todo o país, além de outros eventos como a 41ª Mostra Internacional de Cinema. A variedade de ofertas na área do entretenimento e da cultura revela a pujança econômica que movimenta o comércio de dia e, de noite, os bares e restaurantes sempre lotados e as ruas fervilhando (piadinha de mau gosto. A notícia de que o PCC está fornecendo fuzis para a guerra dos traficantes na Rocinha é a demonstração de que o único mercado de consumo em que o Rio supera o de SP é o de armas e drogas). 

Por outro lado, a frustrada tentativa de acabar com a cracolândia disseminou muito de seus moradores pela Avenida Paulista. São deprimentes as cenas de mendigos e drogados perambulando entre os carros ou estirados nas calçadas. Não são agressivos, são zumbis. Aliás, dá inveja a sensação de segurança que se tem andando a pé a qualquer hora. Não sei se as estatísticas confirmam, mas essa é a percepção que não se tem mais no Rio. Aqui a gente sai de casa achando que vai ser assaltado e, mesmo quando não é, o medo persiste no dia seguinte. 

Talvez por ter trabalhado na sucursal de quatro revistas paulistas, quando fiz muitos amigos, nunca participei da onda de rivalidade bairrista que opunha as duas cidades. Tom Jobim dizia que a melhor maneira de observar NY era de maca. Hoje, ele diria o mesmo de SP, onde os edifícios não deixam mais ver o céu. Vinicius de Moraes reclamava: “A gente anda, anda e não chega a Ipanema”. 

Na volta, o reencontro com uma cidade onde se vê o céu e se chega logo a Ipanema. Mas é uma inútil paisagem diante da violência que paralisa metade dos hospitais do município e mata por engano da polícia uma visitante espanhola de 67 anos que, sem saber, fora levada por uma agência de turismo para um inocente passeio em zona de guerra. Em suma, o resultado dessa disputa sem graça talvez seja o empate, até em matéria de prefeitos.

O Globo, 25/10/2017