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Um desfile de alegações

 

Marcelo Crivella, como se sabe, é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, que, por princípio religioso, não permite que seus fiéis participem do carnaval, considerado uma festa profana. Portanto, seria mais sincero que o prefeito recorresse a essa condição para não comparecer ao Sambódromo, contrariando uma tradição de 33 anos seguida por todos os que o antecederam no cargo. Era só dizer: “minha religião não deixa”. Simples assim. Mas não, ele preferiu improvisar desculpas, tergiversar, usar subterfúgios e meias verdades, para não dizer “mentiras”, que é pecado. Várias versões desencontradas foram então apresentadas por ele ou por seus auxiliares. Até a véspera da abertura dos desfiles, ele ainda fazia suspense, admitindo que iria, mas não dava certeza. Usou então uma evasiva que deve ter considerado original: “Eu nem sei se estou vivo amanhã”. E desconversou: “Eu devo ir um dia, mas não vou sambar”. Para se justificar, arranjou trabalho: “A gente não sabe sambar, mas sabe trabalhar”, como se o público da Sapucaí estivesse esperando vê-lo gingando na pista.

A situação mais constrangedora foi reservada à sua secretária de Cultura e ao presidente da Riotur, que substituíram o prefeito na cerimônia de entrega das chaves da cidade ao Rei Momo, que atrasou duas horas. O impedimento seria devido a uma “profunda gripe” da primeira-dama. “Ele viria conosco, porém, ela não melhorou, e ele não pôde vir”. Era um motivo justo, que, no entanto, não impediu que ele comparecesse ao Rio-Open de Tênis, cuja final acompanhou até a premiação do austríaco vencedor. Ficou parecendo que, no Rio de Crivella, o tênis é muito popular e, pelo visto, mais importante do que o samba.

As desculpas continuaram. “Não fui porque, no meu caso, seria demagogia”, afirmou, sem explicar por quê. “Ninguém é obrigado a fazer nada”, disse em outra ocasião, esquecendo que o prefeito tem obrigações, sim, como, por exemplo, as de anfitrião de um evento que atraiu mais de um milhão de turistas e um bilhão de dólares. “A agenda do prefeito não é a da imprensa”. Certo, mas é a que seus compromissos impõem. Diante desse desfile de alegações, não se pode afastar a hipótese de que ele tenha decidido não comparecer quando soube do enredo da Mangueira —“Só com a ajuda do Santo”— exaltando todas as crenças religiosas, inclusive as de matriz africana.

Quem não se lembra do bispo da Igreja de Crivella chutando na TV a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil?. Claro que o nosso prefeito jamais faria uma grosseria dessas. Mas certamente não se sentiria bem aplaudindo o cortejo ecumênico de imagens de Santo Antônio, São João, Santa Clara...

Como bispo, o que ele diria aos seus fiéis? 

O Globo, 04/03/2017