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Tardes de Alba Iulia

 

                                                                                                                 Viitorul si  trecutul
                                                                                                                 Sunt a filei doua fette.
                                                                                     
                                                                                                                                   Eminescu

                                            

Sou um vassalo da língua portuguesa. Pago tributo em peças de ouro ao erário da etimologia latina de meu sublime e incerto suserano.  O português e o romeno ocupam os extremos de um mesmo horizonte linguístico. Eis a razão pela qual  Mircea Eliade traçou um paralelo entre Camões e Eminescu. Somos herdeiros de um latim vetusto. Com saudades de Ovídio e Virgílio, aos quais nossos poetas buscaram responder com o som áspero de sua lira. E se a presença eslava empresta ricos matizes aos substratos da língua romena, permitindo-lhe saídas semânticas delicadas, de que se beneficiam os poetas, assim também a língua portuguesa realiza um diálogo permanente com a herança árabe, de que destaco, dentre outros, os artigos  ligados  ou não diretamente  aos substantivos que nos permitem dizer ruído ou arruído, corão ou alcorão. Nossas fronteiras se mantiveram sempre abertas para a alteridade. Com a torre de nossos templos, contemplados por Macedonski: amo a igreja antiga, com sua torre de catedral (iubesc biserica cea veche, cu turnul ei de catedrală), de cúpulas em forma de sorvete, vindas do oriente eslavo, além das mesquitas de minaretes esbeltos, originados da tradição otomana. As igrejas coloniais do Brasil, crescem com o fermento de uma ou duas torres. E digo com Bacovia, eterno, secular (şi secular, pe veşnicie).

Tudo não passa de um estranho devaneio, que agora intensifico. Peço vênia para um pequeno atrevimento, que a generosidade dos senhores saberá decerto perdoar. A língua portuguesa fica a oriente da Romênia e a leste da Moldávia. Essa geografia espiritual me leva a pensar os lusíadas no seio do mar Negro,  com o Gama a procurar as especiarias nas praias da Geórgia, ao passo que os argonautas dobram, com Jasão, o Cabo da Boa Esperança, para arrancar de Calicute o tosão dourado. Modifico o mapa de Camões, no canto quinto: “Ó Ninfa, a mais formosa do Mar Negro”... E faço o mesmo com Apolônio de Rodes, junto às Simplégades, no livro dois: “As índicas colinas dos Paflagões”. A partir dessas aventuras deslocadas, desafio nossas afinidades quase esquecidas, para arrancá-las de um diálogo precário e suspenso. Somente assim podemos reconhecer no espaço de nossas línguas, do romeno e do português,  o que brilha num poema de Stănescu:. Tens uma espécie de paraíso no qual não se diz palavra (tu ai un fel de paradis al tău în care nu se spun cuvinte).   

Com essas credenciais diplomáticas, que devemos apresentar de modo recíproco, permanente e apaixonado,  passo à leitura de meus poemas, escritos em italiano, que tenho a ventura de pronunciar em romeno, segundo a bela tradução de George Popescu – versos retirados de um fascículo que se intitula Prietenia la patru mâini, que verto para o português de modo literal:

Aurul copilăriei

şi acea culoarea ntunecata ochi

(limpede-ntunecată)

bucuria durerii cum s-o transmiţi?

Doamne miluieste Doamne miluieşte
Doamne miluieşte

limba româna
îmi apare

între pădurea neagră 

şi frescele mânăstirilor din Moldova

[O ouro da infância e a cor negra dos olhos. Claro, escuro. A alegria da dor como,    transmiti-la? Senhor tende piedade de nós. A  língua romena  mostra-se-me assim: entre a floresta negra e os frescos mosteiros da moldávia]

*

O după-amiază târzie, poate la Penne
la Bucuresţi   un semn  un cânt
poate un strălucit nesfârşit al limbii tale
o floare un vis  cuprinşi  atunci
de o singură privire

rsăfăţul si asfinţitul
imperiului austro-ungar

[Tarde avançada em Sofia ou Bucareste. Um sinal, um canto, o esplêndido infinito de tua língua, uma flor, um sonho. Compreendi então num só olhar a riqueza e a decadencia do imperio austo-húngaro] 

*

Română si sefirot
pisicul ce muşcâ piatra
tăcerii

în timp te gândeşti la turnul acela 
vegheat de paznicii
armoniei pierdute

spaţiul dintre cuvinte (te întrebi)
fi-va
poate scris într-o prea altă limbă?

[O romeno e os sefirotes, o gato que morde a pedra do silêncio, enquanto pensas naquela torre vigiada pelos que guardam a harmonia perdida. O espaço entre as palavras (perguntas) será escrito em outra língua?]

*

Umbli cu uşurintă
şi deşi nu ştii dacă spre balcani
la misterele pantocratorului ori
spre apus fără dumnezeu

gândeşti la gloria banatului
si la marile căi ale unui tren
care va avea poate Galaxia
ca ultim destin

după o zonă
de tăcere
şi piatră şi muşcătura şi pisică

[Caminhas delicadamente e não sabes se para os balcãs, aos mistérios do Pantocrátor ou para o ocidente sem Deus. Pensas na glória do Banato e nos trilhos sem fim, de um trem que há de ter a galáxia como última fronteira, após uma zona de silêncio, gato,  pedra e mordida]

*

Frumuseţea trupului
aparţine numărului
minti eterne

mâinile tale
suave
în grădină

scânteierea
lui Jupiter
si acel albedo

bogăţii
ale tăcerii
si violetelor

prietenă
soră şi mamă

un singur destin
te readuce
în forfota fiinţei

[A beleza do corpo pertence ao número da mente divina. Tuas mãos estelíferas no jardim. O cintilar de Júpiter e sua albedo. Riquezas de silêncio e violetas. Mãe, amiga, irmã,  um só destino leva aos abismos do ser]

*  

Pierdut
chipul cuvântului
printre hăurile zorilor

cauţi istoria limbii tale
verbul acela suspendat
între turci şi fanarioţi

puţinul acela de imperiu
ce invizibil avansează
spre Atena şi Constantinopol

şi îţi va reda acel cântec de bucurie
şi de pasiune

în timp ce astepţi  Roma aceea
a patra şi ultima

izvorul dorului
acel fir etimologic veşnic rătăcit

[Desaparecido  o rosto da palavra entre os abismos do amanhecer. Procuras a história da língua, aquele verbo suspenso entre turcos e fanariotas, aquele resto de império que avança, invisível, para Atenas e Constantonopla  e em ti desperta um canto de alegria e de paixão, enquanto esperas aquela Roma quarta e última, fonte da saudade, fio etimológico perdido para sempre]

Não sei, ao certo, como reduzir a soma de nossas distâncias, que não passam necessariamente pela geografia, mas pelo desenho de raízes de uma árvore antiga e sempre viva, que não cessam de crescer. A copa cheia de aves canoras, de Enescu e Villa-Lobos, atingem uma intensa zona diálogo, que os poetas sabem e adivinham, em pleno Atlântico ou no seio do Mar Negro.

Nossa Roma invisível.
 

Congresso da Universidade de Alba Iulia na Romênia, 22/10/2011