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Segall e a Lituânia

 

Retorno de uma viagem à Lituânia, após ter estado lá como ministro das Relações Exteriores em 2002, quando pude verificar como o fim da rigidez do poder da guerra fria e a desagregação da União Soviética deram àquele país uma inédita opção histórica de liberdade. Ensejou à Lituânia, para recorrer a conceitos de Hélio Jaguaribe, condições de permissibilidade para atuar, com viabilidade, à luz dos seus interesses, na condução da sua política interna e externa.

Agora, o objetivo principal foi celebrar e participar com Sérgio Segall da inauguração da exposição Um modernista brasileiro em Vilnius: o retorno de Lasar Segall.

A exposição, iniciativa do Museu Estatal Judaico Gaon de Vilna e da sua diretora Kamilè Rupeikaitè, contou com o apoio de Laura Tupe, cônsul-geral da Lituânia em São Paulo. A qualidade da exposição resultou de uma frutífera parceria com a direção do Museu Segall de São Paulo, conduzida por Giancarlo Hannud.

Aberta em 27 de novembro pelo ministro da Cultura, Mindaugas Kvietkauskas, a exposição é expressão de uma diplomacia cultural que favorece a aproximação dos países. É igualmente manifestação de uma política pública da Lituânia de valorizar a memória do significado cultural do que foi o alcance histórico da presença da comunidade judaica no seu meio, ou seja, a dos litvaks, como eram denominados os judeus do país – pois a palavra Litvak e Lituânia têm a mesma raiz –, e os que dela se originaram, como Lasar Segall.

As conversas com o chanceler da Lituânia, Linas Linkevicius, e seu vice, Dalius Cekuolis, permitiram não só verificar ingredientes de continuidade diplomática de minha viagem de 2002, como também a moldura mais ampla na qual se insere a exposição Segall.

A densidade das interações do Brasil com a Lituânia aumentou desde 2002. O espaço para a cooperação ativou-se, não obstante as diferenças de escala entre os dois países e as distintas centralidades que ocupam nas respectivas agendas diplomáticas. Provém de uma bem-sucedida transição do país para uma economia de mercado, da qual se originou o euro como moeda, a participação na OMC e na OCDE. É uma expressão, pós-dominação soviética, da incorporação na vida política do país dos valores da democracia, dos direitos humanos e da tolerância, que se agregaram ao potencial econômico da participação na União Europeia.

No caso específico da exposição Segall, cabe o registro de que é realizada numa época de crescente antissemitismo no mundo. Resultou da aproximação que a cônsul-geral Tupe vem trabalhando para tornar presente a nova Lituânia, não só com a comunidade lituana em São Paulo, que é significativa nas Américas, mas também com os litvaks que imigraram para o Brasil. Entre eles, a família Klabin-Lafer, que se enraizou no país na última década do século 19.

Lasar Segall nasceu em Vilnius, em 1889. É um dos grandes artistas plásticos do século 20. Era um litvak que iniciou sua formação artística em sua cidade natal e a ela deu densidade e continuidade na Alemanha a partir de 1906. Lá participou ativamente do expressionismo alemão, do qual foi um dos grandes expoentes. Radicou-se no Brasil em 1923, enraizando-se e constituindo família ao casar-se com Jenny Klabin. Tornou-se até o seu falecimento, em 1957, uma irradiadora figura de proa do modernismo brasileiro. Daí a primeira parte do título da exposição.

Esteve em Vilnius pela última vez em 1918, visitando sua família. Traduziu em várias obras o impacto do que viu nessa e em outras ocasiões. Daí a segunda parte do título da exposição que assinala, depois de tantas décadas, o retorno de suas realizações artísticas às suas origens.

Segall inicia suas Recordações, de 1950, observando: “Vilna, minha cidade natal, que deixei aos 15 anos, ficou sempre gravada na minha memória, e as impressões que dela levei se refletiram durante tantos anos em minha obra”. Escrevendo sobre Segall, apontei que, como ele mesmo dizia, sempre conservou muito abertos os seus olhos. Por isso sua obra não é obra de uma nota só. Provém de uma objetivação artística da diversidade dos seus múltiplos olhares, como a exposição dá conta. Entre eles, o seu olhar sobre a Vilnius em que viveu.

O entendimento da cidade, como apontou o escritor lituano Laimonas Briedis em livro recente (2016), requer a compreensão de sua inserção na História europeia. Foi uma cidade de confins e de muitas presenças demográficas. Para isso aponta o livro de Henri Minczeles de 2000. Registra as várias denominações da cidade: Vilnius para os lituanos, Vilna para os russos, Wilna para os alemães, Wilno para os poloneses. Para os litvaks era Vilnè, a Jerusalém da Lituânia. Daí as diversas camadas da cidade e a torre de Babel das diversas línguas que nela coexistiram, entre elas o iídiche. Hoje é uma cidade lituana e por isso é apropriadamente denominada Vilnius.

A Lituânia independente dedica-se meritoriamente a resguardar a memória da Vilnè que desapareceu com a barbárie nazista, mas foi um centro irradiador de primeira grandeza da cultura judaica durante muitos séculos. Esta transitou pela qualidade da exegese rabínica, da qual o Gaon de Vilna foi notável expoente, pela codificação do cânone literário do iídiche e do vigor da sua criatividade artística, pela importância dos movimentos sociais judaicos que se originaram na efervescência da cidade. A exposição Segall é também parte desse resgate da atuação dos litvaks.

Para os netos de Segall e também para outros membros da família que participaram da viagem, esta teve um significado pessoal de relevo. Foi o resgate da memória muito distante e esmaecida da Lituânia judaica de suas origens. Para parafrasear Drummond, colocou na parede das lembranças da família a fotografia da Jerusalém da Lituânia.

O Estadão, 15/12/2019