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Santurantikuy

 

Este é o nome de uma das feiras natalinas de maior relevo no Peru, montada ao longo da Praça de Armas, na imperial cidade de Cusco. Lembra uma ópera ao ar livre, onde o espanhol cede lugar ao quíchua, a prosa do áspero quotidiano, à poesia e ao sino das igrejas, aos cantos populares, como se formasse um coro misto a celebrar o nascimento de Emanuel, chamado carinhosamente de Manuelito ao longo do mundo hispânico. Participam deste oratório ao ar livre diversas crianças pobres, revestidas de beleza singular, de que nenhuma delas sequer desconfia, o que as torna ainda mais bonitas: anjos morenos de bochechas vermelhas, que acabaram de sair do retábulo da igreja barroca mais próximas ou do presépio do mais humilde artesão. Não perco os olhos, a elevação dos olhos, a poesia dos olhos destas crianças.

Das muitas imagens da feira, onde o sagrado e o profano se reúnem sem receio, cito o semblante de Maria, porque nele reconheço o rosto sofrido, severo e generoso das mães daquelas crianças, que vêm à cidade para venderem os produtos da terra, sem roupas de marca e, portanto, com uma elegância plurissecular: de chapéu alto e colorido, as tranças negras, unidas, formando na base um “v”, com as mãos cansadas e os pés honestamente sujos de poeira. Todo esse conjunto, de marias e manuelitos, forma um presépio natural, com lhamas e alpacas reais, dentro de uma síntese mestiça, através do clássico refinamento dos encontros improváveis, o antes e o depois da colonização, aquecidos na chama solidária, do senso de comunidade, como se as mulheres tentassem preencher o vazio dos direitos civis essenciais, a que dificilmente têm acesso.

Entro e saio desta Belém em miniatura, lembrando o que dizia o escritor José Maria Arguedas sobre a triste sombra do coração das mulheres da praça, que eu “abraço e não aperto”. Nobres e melancólicas. Promotoras da riqueza imaterial do país, à medida que vivem e transmitem ao futuro o diálogo das tradições andinas e hispânicas, livres de ressentimento e estranhas à vitimização, numa defesa sólida que se opõe às investidas da sociedade líquida, rebelde à lógica de um mercado que desenha o planeta, dissolvendo as culturas regionais, com o objetivo de fidelizar novos consumidores,  pobres em diversidade cultural. Cenário de que o Brasil não forma exceção.

Na Praça de Armas sou tomado por uma piedade filial que não sei  definir,  quando as mães embalam seus filhos debaixo das colunatas, para atravessarem a noite nas pobres manjedouras, no chão fio, a que acorrem alguns reis magos, levando as sobras de comida de um país com alto índice de concentração de renda e modestos programas de inclusão. Porque as injustiças sociais constituem uma ferida que compromete o presente e o futuro da América Latina.

Começo 2014 com os olhos vivos e acesos dessas crianças, porque não tenho escolha.

O Globo, 01/01/2014