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Revistando a obra de Herberto Sales

 

Publicado em 1944, quando Herberto Sales tinha 27 anos, "Cascalho" é o imenso romance que logo se colocou ao lado das grandes obras do nosso ciclo nordestino, iniciado com José Américo de Almeida e prolongado por Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.


Morando em Andaraí, na região da Chapada Diamantina, Herberto correspondia-se com Marques Rebelo, mas nunca comunicou-lhe que estava escrevendo um romance. Com mais de 650 páginas, enviou o livro a um concurso coordenado pela "Revista do Brasil", da qual Aurélio Buarque de Holanda era secretário. Na obsessão de catar regionalismos, Aurélio examinou o original e surpreendeu-se com a qualidade do texto. Sendo vizinho de Marques Rebelo, com ele comentou a obra que estava lendo. Ficou admirado ao saber que o autor de "Marafa" correspondia-se com o autor.


Herberto decidira encerrar a carreira literária que sequer começara. Juntara gravetos no quintal da casa de sua família, rasgara em quatro partes as 650 páginas da cópia que lhe restara. Queimara tudo. Aurélio sabia que o original enviado ao concurso seria jogado fora e decidiu ficar com ele, a fim de catar os vocábulos regionais que mais tarde enriqueceriam seu dicionário.


Quando Herberto escreveu a Rebelo, comunicando-lhe que queimara a cópia única do livro, foi surpreendido com a revelação de que o original continuava com Aurélio. Não foi difícil encontrar uma brecha no mercado editorial da época.


A consagração seria imediata. O ciclo do romance regional ganhava novo espaço em nossa geografia literária. O cenário não era mais a Várzea do Paraíba, os engenhos e as bagaceiras de José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Tampouco era o litoral baiano, águas encantadas por sereias, o chão coberto pelos frutos cor de ouro do cacau, os territórios mágicos -mar e terra- que ganhariam o mundo na obra de Jorge Amado.


Nem era a seca que afugentava homens e animais pelas caatingas, o flagelo que daria a Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz o ponto de partida para suas carreiras. Em "Cascalho", a fortuna e a maldição estão no ventre da terra. A lenda dos diamantes, fartos e encontrados até nas moelas das galinhas, na prodigalidade dos aluviões ribeirinhos, atraíam homens e mulheres, velhos e crianças. Véspera da fortuna imprevista, a miséria permanente acampava no decadente burgo excluído da civilização, povoado de fantasmas sacrificados na dura moenda dos diamantes e carbonados. A releitura do primeiro livro de Herberto Sales dá a sensação de um anúncio de Guimarães Rosa com seu universo vocabular e sua técnica inovadora.


Em "Além dos Marimbus", o livro seguinte, o cenário é o mesmo, mesma a região já exaurida pelas bateias dos faiscadores. A causa da miséria não é mais o diamante. É a madeira que, nos anos 20 e 30, já atraía a cobiça que devastava florestas e matas. Inovando o gênero com a técnica e a linguagem de seu primeiro livro, Herberto surpreende o leitor de hoje com a visão pioneira da ecologia que, naquele tempo, não entrara ainda no vocabulário e na preocupação do homem contemporâneo.


Até então, a abordagem crítica via nele mais um regionalista, do porte dos grandes nomes da safra nordestina que emergira na década de 30. O livro seguinte, "Dados Biográficos do Finado Marcelino", é um romance urbano numa Bahia que iniciava seu período de metrópole nordestina.


Poderia ter sido este o primeiro romance de Herberto, pois trata dos anos de formação em que o jovem provinciano chega à cidade grande. Ele mergulha na sociedade do incipiente capitalismo nacional, criando uma galeria de tipos que, mais tarde, se tornariam comuns na novelística brasileira.


Surge, então, na vida e na carreira de Herberto Sales, a figura magra e saborosa de José Cândido de Carvalho. Na virada dos anos 40 e 50, deram dimensão nova à formidável geração nascida nos anos 30. Dataria deste período o aparecimento do contista. Um de seus livros, "O Lobisomem e Outros Contos Folclóricos", foi a homenagem de Herberto a seu companheiro José Cândido de Carvalho, que estourara no cenário nacional com o antológico "O Coronel e o Lobisomem".


A despeito de sua obra, vasta e consagrada, traduzida em inglês, japonês, francês, polonês, italiano, tcheco e chinês, tendo o seu romance de estréia adaptado para o cinema e para a história em quadrinhos, Herberto isolou-se da vida literária.


Retirou-se para São Pedro da Aldeia, no litoral fluminense, onde reencontraria nas mangueiras que plantou e nas flores que semeou uma espécie de retorno ao seu Andaraí natal. Escreveria ainda uma série de confissões e memórias a que daria o estranho nome de "Subsidiário". Temos aí o homem Herberto Sales diante de si mesmo, atravessando a escura noite da alma. Suas anotações revelam o desencanto do escritor penetrado pela inexorabilidade do fim.


Olhando em volta, da altura humana e intelectual a que atingira, lamentando seus mortos, evocando seus fantasmas, o memorialista adota uma visão amarga, mas de vigorosa dignidade perante o mundo que viu e a vida que viveu.




Folha de São Paulo (São Paulo) 28/10/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 28/10/2005