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As Religiões e o Estado

 

Há que defender em toda a sua extensão a liberdade religiosa. E não apenas pelo viés do esmaecido discurso do politicamente correto, que não passa, muitas vezes, em lábios extremistas, de mal disfarçada intolerância. Vivemos num regime democrático que deve assegurar a liberdade de todas as expressões. E, por isso mesmo, estado laico, eminentemente laico, profundamente laico, garantidor da diversidade de que é feito nosso país, como foi discutido semana passada pelo Conselho Nacional de Justiça.

Trata-se de um fenômeno difuso e contemporâneo, o da pluralidade religiosa, bem como o espaço  de uma convivência enriquecedora, assegurada por boa parte das constituições ocidentais. Para a sociedade, o diálogo e a presença inter-religiosa não é apenas uma instância desejada, mas uma escola absolutamente legítima, capaz de ensejar a admiração do outro, na perspectiva de uma educação mais ecumênica, mais aberta,  longe do proselitismo vulgar, segundo o qual esta ou aquela religião me torna melhor ou superior aos demais.

A figura de Louis Massignon é emblemática. Como cristão, recolhia, durante a guerra da independência colonial, os corpos dos argelinos, que a polícia francesa atirava ao longo do Sena.  Ministrava-lhes o rito muçulmano, porque eram muçulmanos, e não o rito cristão.  Eis aqui um pensamento admirável. O proselitismo não salva, o proselitismo mata. E essa piedade frente aos despojos,  ressuscita ao menos um corpo essencial, que é o corpo do diálogo. Massignon não quis converter ninguém.  Seu desejo era apenas o de fazer-se amigo dos muçulmanos e prestar auxílio  para que se tornassem melhores dentro de sua própria escolha. Não como quem ensina, mas como quem partilha e celebra a poesia da diferença.

Aí está uma inspiração para o nosso tempo, como no livro de Paolo dall´Oglio, intitulado Apaixonado pelo islã e fiel a Jesus, um dos mais belos escritos sobre a diferença, que acaba de sair na Itália.  Compreender as razões do Outro e defendê-las. Só assim podemos alcançar o Ocidente profundo que nos formou.

A herança do Brasil está radicada na pluralidade. Mas nem por isso devemos fechar os olhos aos riscos do fundamentalismo. É dever da sociedade vigiar. Não para coibir o diálogo, mas para evitar encrespações, guetos nefandos, formas de confusão da política e da espiritualidade.  

Esta semana, em programa de rádio, um líder religioso afirma haver ressuscitado milhares de homens, apondo-lhes sobre o corpo o carnê da mensalidade. Mas atenção: quitado. Sem quitação não se pode ressuscitar. O Procon  poderia mover-se  dentro desse espaço?

Outra pérola veio de uma liderança recente,  em canal aberto. Deus havia depositado na conta de um fiel o valor, não desprezível, de quinze mil reais. Infelizmente o close da imagem mostrava que era um valor negativo, sem que ninguém percebesse. Um deus bastardo enganou o fiel, deixando-lhe como bênção um forte saldo devedor. Saída muito bem-vinda para uma parcela de políticos, cujo enriquecimento exponencial não passaria de uma generosa transferência de um deus contábil. Passamos das loterias, como no exemplo de um   deputado, que ganhara inúmeras vezes o sorteio, para uma ilicitude de ordem a teológica.

O conselho das igrejas cristãs não pode não se manifestar  diante desses fatos. Queremos todas as expressões do cristianismo, incluindo-se também, para além das grandes religiões monoteístas, a das nações indígenas, africanas e asiáticas.  Nenhuma pode ser excluída, como não fez Massignon junto ao Sena. A riqueza do Brasil repousa na sua história multicultural. Não posso acreditar que o Ministério público esteja adormecido. A política de concessão de canais de comunicação  deve garantir uma orientação efetivamente democrática, sem favorecer qualquer religião em particular e nem tampouco fechar os olhos aos desvarios de projetos comerciais & religiosos tão indecentemente conjugados.

O Globo, 22/06/2011