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Políticas da Memória

 

A notícia do fim da Enciclopédia Britânica, em formato real, foi recebida pela imprensa com um misto de triunfalismo e saudade. Se, para muitos, o oráculo de Delfos da Wikipédia levou Apolo e Atenas para a fila dos deuses desempregados, para outros teve início a cerimônia de adeus. Ao representante de vendas, de pasta volumosa, rosto redondo e discreto par de bigodes, a peregrinar de porta em porta, sapatos pretos, solas irregulares. Mais que um mascate, o vendedor de enciclopédias era o profeta de uma luminosa Bibliópolis. Adeus, Britânica. Ou, como diria o último Machado de Assis: papel, meu querido papel, adeus.
  
Mas não há surpresa na mutação do bibliantropo real para o virtual, processo que se desenvolve, a olhos vistos, a partir dos anos noventa, de cujo processo nos beneficiamos, com a performance de novas formas de leitura e acesso ao texto.  Não é bom insistir na contradição dos suportes, como se, duplicados, fossem inimigos ferozes, com claro prejuízo do acervo físico, acusado de sofrer uma fome pantagruélica de espaço. E com o agravante de que os antigos formatos atraem uma danosa plêiade de insetos, em condições de alta umidade e calor. As traças e cupins brasileiros são imensamente eruditos, poliglotas,  doutores em filosofia e teologia, do Renascimento ao Pós-moderno. Intérpretes de gosto ecumênico, dotados de formidável poder de penetração. Aprendem tudo com uma única leitura, não podendo haver outra, depois de lauto banquete bibliofágico.  

Apesar do avanço das ciências da informação, não foram debelados os riscos de amnésia ou perda da memória digital, desde a obsolescência das tecnologias à incessante migração das linguagens. Os cuidados contra a antiga epidemia do papel resolvem-se hoje com a profilaxia contra os vírus da rede e dos hackers, de acordo com o grau de investimento em segurança digital.
 
Além das ações legítimas de cidadania, a gestão das bibliotecas públicas – médias, grandes ou pequenas – inscreve-se nas formas de inclusão real e digital, na preservação e guarda dos suportes, no  cuidado de criar janelas ou interfaces, circuitos e corredores, por onde passa a expressão do pensamento. Do contrário, pode-se ampliar a orfandade do acervo real, como a que ocorreu no Brasil colônia, com a velha biblioteca do colégio, no morro do Castelo, logo após a expulsão dos jesuítas. Boa parte da qual foi saqueada, vendida e o que sobrou foi “espedaçado do bicho”.

A umidade e o descaso resultam no sono perigoso dos livros e no progresso das larvas. Gonçalves Dias, em viagem ao norte do Império, consultou diversas bibliotecas, folheando livros, que “pareciam estranhar e queixar-se da mão que os importunava no descanso morto em que jaziam”. Quando os livros dormem, o bibliotecário se debate em pesadelos.
 
Como se sabe, o aporte de recursos públicos sempre foi escasso frente às necessidades urgentes da preservação. Uma guerra quase perdida, apesar de vitórias incontestes, como as iniciativas do Plano Nacional de Recuperação de Obras Raras, o Planor, ligado ao Ministério da Cultura, juntamente com ações de resgate no Arquivo ou na Biblioteca Nacional, de cujas entranhas renascem livros fundamentais. Se não surgem exatamente das cinzas, como a fênix, os livros são restituídos, com paciência e tenacidade beneditinas, de uma quase atomização. 

Tais atitudes exigem atenção redobrada. Creio que, assim como existem diversas modalidades de planos de aceleração do crescimento, como o das cidades históricas, não seria mau um Pac da recuperação das obras raras no Brasil, com ênfase na formação maciça de profissionais e na  decorrente multiplicação de laboratórios. 

Falta ao estado o adensamento do debate sobre as políticas da memória. Não se pode legar ao futuro uma biblioteca de Alexandria, feita das ruínas dos títulos e da lógica dos catálogos, sem o rosto de uma leitura soberana e infinita.  

O Globo, 21/03/2012