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O Golpe de 64

 

Lembro-me bem do golpe de 1964, que depois de amanhã completa 42 anos. Eu era aluno da Faculdade de Ciências Econômicas da antiga Universidade de Minas Gerais e militava na Ação Popular, grupo de esquerda católica. Era grande a politização do mundo estudantil, em consonância com o que se passava na política nacional. Muitos de nós acreditávamos ingenuamente que o País caminhava para o socialismo e queríamos ser parte da jornada. O presidente João Goulart era visto com suspeita, mas julgávamos que o movimento popular, os operários, os estudantes e os camponeses fariam a mudança com ou sem o presidente.


No dia seguinte, 1º de abril, já não havia dúvida sobre a vitória do golpe. Em companhia de colegas, saímos a vagar pelas ruas de Belo Horizonte, meio perdidos, sem entender bem o que se passava, com a sensação de que o céu desabara sobre nossas cabeças. Contemplávamos, perplexos, a alegria dos que celebravam a vitória e víamos, assustados, o início da violência contra os derrotados. O sonho do socialismo esboroava-se como um castelo de areia.


Foram várias as tentativas de atribuir o golpe e o seu êxito a uma inevitabilidade histórica. Ele teria começado em Washington, fora fomentado pela CIA e não haveria como evitá-lo. Os seus feitores seriam as classes dominantes, os latifundiários, os grandes empresários e banqueiros, liderados por associações de classe sob a coordenação e a cobertura ideológica do Ibad e do Ipes.


Não há dúvida de que havia uma conspiração da direita em andamento, desde a renúncia de Jânio e a subida de Goulart, ou melhor, desde 1954, quando Vargas, pelo suicídio, a derrotou. Depoimentos de militares e civis envolvidos não deixam dúvidas a respeito. No entanto, esses mesmos depoimentos mostram grandes dificuldades encontradas pelos conspiradores.


O dia 31 de março trouxe de volta, de modo traumático, o princípio da realidade. Não apareceu o dispositivo militar, não houve greves importantes, não surgiram grandes manifestações populares. Verificou-se então que a agitação era mais retórica do que uma real capacidade de ação. No dia 1º de abril, o presidente ficou sozinho.


Uma atenuante para a aparente falta de clarividência dos atores políticos era o fato de que em 1964 a convicção democrática era tênue, tanto na esquerda como no centro e na direita. Nossos liberais não hesitavam em recorrer às Forças Armadas para derrubar um governo constitucional. Nossa esquerda não valorizava os métodos democráticos de promover a reforma social. A democracia política não era vista com desconfiança pelos reformistas sociais, assim como a democracia social era tida pelos liberais como condição de sustentação da própria liberdade.


Explicadas ou não as surpresas de 1964, o esforço de entender o golpe reforçou minha convicção original de que seu desfecho se deveu muito mais a ações e omissões de agentes políticos do que a grandes causas sociais, à fortuna.


O processo democrático que se construía a duras penas não teria sido interrompido por fatores independentes da ação humana. Uma vez envolvidos na corrida para a radicalização, devido à equivocada avaliação das forças em jogo, os atores políticos, aí incluído o presidente, perderam a capacidade de controlar o carro posto em movimento.


Reformas viáveis, posto que moderadas, foram rejeitadas em nome de mudanças radicais ilusórias. Predominou o voluntarismo de lideranças afastadas das bases e do sentimento do grosso da população. É perfeitamente possível imaginar um cenário em que Goulart, mesmo que aos trancos e barrancos, chegasse ao final do mandato e Kubitschek o substituísse, eleito presidente em 1965, como sugeriam as pesquisas.


A responsabilidade principal pelo golpe foi dos que o deram e não dos que o sofreram. Os vencedores contaram, no entanto, com a ajuda dos perdedores. Como um Ulisses às avessas, a esquerda tinha criado suas próprias sereias a cujo canto sucumbiu. Não foi preciso um Zeus para as enlouquecer.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 29/03/2006

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 29/03/2006