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A notícia verdadeira

 

A campanha de difamação contra a vereadora Marielle Franco, que, como um vírus letal, invadiu a internet, além de sórdida, é assustadora. Um novo protagonista se insinuou no tumultuado cenário politico: a notícia falsa. A covardia dos que agem nas sombras aproxima os tiros que a mataram da campanha lançada nas redes para desacreditá-la, assim como as causas que ela defendia. Essa selvageria, que destrói reputações, essa violência espelha a que enfrentamos nas ruas, a que destrói vidas.

Por trás do anonimato nas redes, a assinatura inconfundível desse sinistro protagonista: todos os tipos de preconceito com ênfase no machismo, como acontece quando se trata de uma liderança feminina. Não cito aqui as acusações para não sujar esta página. Já basta o que fizeram o deputado Alberto Fraga, da famigerada bancada da bala, e a desembargadora Marilia Castro Neves, contumaz rancorosa que se referiu “à tal Marielle” e já sugerira, na rede, colocar o deputado Jean Wyllys no paredão, além de ironizar uma professora portadora da síndrome de Down. As mentiras já foram desmentidas pela imprensa responsável, em que se assina o que se escreve.

Não sabemos quem matou, quem mandou matar a vereadora Marielle Franco. Mas já é possível fazer o inventário das perdas. Uma vida de mulher jovem, que tinha pai e mãe, uma filha, uma companheira, amigos e 46 mil eleitores. Uma cidade e um país estarrecidos, em estado de choque, confrontados a essa insolente ameaça ao estado de direito.

Não sabemos quem a matou, sabemos o que quiseram assassinar. A defesa de causas que apontam para as misérias de nossa democracia inacabada, que se equilibra apesar da marginalização das mulheres, dos negros, dos homossexuais, dos que nascem pobres como ela nasceu e morrem cedo, de morte violenta, nos becos das favelas ou apodrecem no inferno das prisões. A aspiração a uma democracia que não seja uma farsa, um sonho generoso de país que Marielle sonhou e conseguiu, encarnando-o, simbolizá-lo. Esse simbolismo foi mortalmente ferido. Daí a indignação, o sentimento de revolta que vai durar enquanto a situação que engendrou o crime não mudar. Às autoridades responsáveis pela segurança pública, sob o comando do general Braga Netto, cabe encontrar e prender os assassinos e mandantes, sejam eles quem forem.

Esse crime politico é a ponta de um iceberg que pode destroçar a nossa democracia. Enfrentar a violência e a corrupção, que se apoderaram do Rio de Janeiro e que se retroalimentam, pede energia e determinação da população, que terá que se construir como sujeito de sua própria salvação.

Não se espere nada do Planalto. Para o presidente da República, a segurança no Rio é apenas uma carta em seu jogo eleitoral. Cogitou encerrar a intervenção militar em setembro porque ela já teria “dado frutos” e encerrá-la permitiria votar a reforma da Previdência. Precisa de coelho novo na cartola.

Em sua lógica perversa, ao Rio caberia o destino de terra de ninguém às voltas com a banda podre da polícia, milícias e traficantes sanguinários. Ele e os políticos que o cercam continuam alheios ao desespero de mães órfãs de seus filhos mortos.

Dado o sentimento de exasperação generalizado e o nível de polarização da sociedade brasileira, ou conseguimos, no Rio, uma convergência de propósitos acima das divisões partidárias ou elas destruirão qualquer possibilidade de ação eficaz e persistente.

Há uma pauta de urgências: estancar, impondo normas rígidas de controle da ação policial, a violência que mata pessoas colhidas no fogo cruzado entre policiais e bandidos; aprofundar a ação de repressão à corrupção na polícia já deflagrada pelos militares em aliança com os policiais honestos; assegurar a continuidade das ações de pacificação para além da ação policial.

Em uma frente ampla de resistência à criminalidade e pela paz, todos devem estar presentes, exceto os corruptos e violentos. A repulsa à corrupção e à violência é o que nos une acima das divergências e é o que nos separa destas exceções. O silêncio gritante do deputado federal pelo Rio de Janeiro Jair Bolsonaro sobre o assassinato de Marielle Franco desenha com nitidez essa fronteira. Medo, ódio, intolerância só geram mais violência, e seu legado é sempre um campo de ruínas.

A população do Rio de Janeiro, em multidão, fiel a sua tradição libertária, foi às ruas, dizer presente à pessoa que Marielle continua a ser nas causas que defendia e que sobreviverão. E ao direito de defendê-las sem risco de vida. Essa notícia é verdadeira. E é a verdadeira notícia.

O Globo, 24/03/2018