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Moscou ou Moscovo?(I)

 

Desde logo informo aos meus leitores que o propósito destas linhas não é dar uma resposta à questão proposta acima, porém , tão somente discutir alguns pontos em torno da necessária unidade numa seção do léxico português compreendida pelos nomes próprios geográficos e por nomenclaturas científicas e técnicas, preocupação agora retomada pelo  novo Acordo.
 
Informo também sobre uma distinção àqueles leitores que sempre veem com má vontade esses esforços de unificação  de certos aspectos possíveis da língua que falamos e  escrevemos, indivíduos que fecham os olhos à consciência da maioria dos falantes de que usamos, na essência, de um só idioma.Discutir se vale a pena unificar o nome da cidade russa—se Moscou, como ocorre no Brasil, ou se Moscovo, como se dizem Portugal—não é o mesmo que discutir se devemos eleger um dos dois: ou o  ‘trem’ brasileiro ou o‘comboio’ português ou, ainda, na mesma linha dos veículos, se o ‘ônibus’ ou o ‘autocarro’.  

Estes últimos nomes pertencem à  seção do léxico constituída pelas palavras usuais, tecnicamente chamadas palavras lexemáticas, dotadas de uma função léxica propriamente dita, de estruturação primária  da experiência por meio das  ‘palavras’. Estes termos, ao contrário dos que pertencem à seção aqui em causa, se organizam mais ou menos homogeneamente. Ponho aqui um  exemplo dessa configuração estrutural das palavras lexemáticas  com o simples propósito de ser mais bem entendido.  ‘Trem’ e ‘ônibus’ (ou ‘comboio’ e ‘autocarro’) são unidades do  campo léxico ‘meios de transporte por veículo’ que inclui, entre os terrestres, automóvel,  carro, bicicleta, motocicleta, etc., que se opõem semanticamente  entre si por traços distintivos (por impulsão motora, sem impulsão motora; para uso individual, para uso coletivo; para transporte de pessoas, para transporte de animais, etc.), isto sem contar os meios de transporte aéreos(avião,balão, espaçonave,etc.), por marítimos (navio, barco, submarino,  etc.), e por anfíbios (aerobarco,  tanque anfíbio,etc.)

De quase nada disto participam os nomes próprios de pessoas , os nomes próprios geográficos, os termos das nomenclaturas técnicas e científicas, embora gozem alguns desses do privilégio de outros fenômenos‘ léxicos’, como a ‘derivação’ (Brasil—brasileiro—abrasileirar— abrasileiramentos).

O assunto de hoje é bastante  complexo e demanda  não só a interveniência dos filólogos e linguistas, mas também dos  geógrafos e historiadores. Não é, pois, sem razão, que estudiosos nacionais e estrangeiros se tenham debruçado sobre a matéria, já que o problema é, como sabemos, comum às outras línguas. No que toca à língua portuguesa, quanto a nomes próprios e geográficos, tem prevalecido, de modo geral, antiga proposta do notável foneticista lusitano Gonçalves Viana, proposta contida num livro precioso, ‘Ortografia Nacional’ (Lisboa, 1904), do qual estou ultimando uma nova edição com aproveitamento de notas manuscritas do autor. Assim reza sua lição posta aqui:

“A maior parte da antiga nomenclatura que usaram os nossos escritores desde o século XV, e mesmo antes até o princípio do século passado, vai caindo em desuso ou sendo menosprezada, não se tendo na devida conta que esse vocabulário e a formas genuinamente portuguesas de nomes próprios de mares, derios, de terras, de povoações, de quaisquer localidades enfim, fazem parte essencial do léxico nacional, tão essencial como as demais dicções. A maioria, senão todos os compêndios empregados no ensino geográfico vêm inçados de denominações estrangeiras ou estrangeiradas , malformadas umas, falsas outras, ilegíveis muitas delas, e não poucas inúteis por já existirem na língua outras, ou melhor autorizadas por bons escritores nossos, ou  mais conformes com a índole e  particularidades de pronúncia do idioma que falamos e sua ortografia tradicional, cujas feições típicas são característico nacional de tamanha valia como outro qualquer dos que nos diferenciam dos demais povos.

É de necessidade que se restabeleça  nos compêndios de  geografia, de qualquer grau, a  nomenclatura portuguesa empregada pelos escritores do período  áureo da nossa literatura, e outros posteriores ao período  de fixação de formas da  língua, modificando-se-lhes  apenas as feições ortográficas  que sejam evidentemente reconhecidas como arcaicas ou  errôneas; com  a maior prudência, porém, para que da modificação  não resulte alteração na  pronúncia portuguesa de tais  denominações”(p.227)  

Na próxima semana, veremos como a lição de Gonçalves Viana repercutiu na sua pátria e no Brasil.

O Dia (RJ), 16/10/2011