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Mahmud Daruish

 

Se a rosa dos ventos do mundo não cessa de mover os grandes moinhos da história, se a fome de justiça e beleza não amainou, sob o império dos ciclones deste século, é forçoso reconhecer, contudo, uma ponta de febre no corpo da geografia.

Descobri nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano, um novo desenho do espaço, uma geografia nova, cujas vias sufocantes, praças ausentes e esquinas raquíticas foram batizadas com o nome de cidades, rios e lagos da Palestina. Saudosos de uma terra que não cessam de reivindicar, num va pensiero lento, coletivo e à capela.
     
Tiro parte dessas ideias de Edward Said e dos democratas de Israel, dos poemas de Amichai, Adonis e Unsi al-Hajj. Todos vizinhos de porta na minha biblioteca. Mas a temperatura de minhas palavras provêm do alto verão de Mahmud Daruish, saudoso poeta palestino, que cantou o exílio, o calor e a hospitalidade, como nos versos de “Passaporte”: “ Oh! Senhores, profetas. Não indaguem das árvores seus nomes. Não indaguem dos vales quem são suas mães. De minha testa sai uma espada feita de luz e  de minha mão brota a água do rio. Os corações do povo são a minha identidade. Podem tirar meu passaporte!”

Em 2006 liguei para Daruish, em Aman. O final do número era 8844. Cito os algarismos por mero capricho. Como se fossem uma relíquia. Conheci primeiro seus poemas da resistência, dignos de um Maiakovski do deserto, íntimo da poesia árabe e hebraica, sem toque de recolher capaz de adiar a consonância entre o poeta e seu povo – este, grande lençol freático de sua poesia. 

Leio a transfiguração da paisagem, em Mural, na dialética do senhor e do escravo, na muralha que separa dois mundos, onde todos se aprisionam: “Falei ao carcereiro da margem ocidental: –  És  o filho do meu antigo carcereiro? –  Sim! – E  onde está teu pai? Falou: - Meu pai morreu há muitos anos, caiu em depressão pelo tédio da guarda, deixou-me como herança seu trabalho e me pediu que protegesse a cidade do teu canto. Falei: - Desde quando me vigias e te aprisionas dentro de mim?”
    
Sonho o diálogo desarmado entre os agentes de negociação de paz no Oriente Médio, livre de um passado fóssil, de um judiciário metafísico, a decidir questões fundiárias. Sonho com o futuro não distante de uma Palestina/Israel democrática, binacional, que assegure a promoção dos direitos políticos, tendo Jerusalém centro de irradiação, onde será erguido um novo arco do triunfo – da cultura da paz sobre a cultura da guerra – formado por duas letras: o alif árabe e o alef  hebraico, vogais enlaçadas, como um tratado permanente de amizade.

Uma paz sem sangue ou humilhação, em que a saúde da geografia se restaure no espírito da história. Mahmud Daruish indaga “o que é o tempo e o espaço, o antigo e o novo?” E, conclui, emocionado: “verde é a terra de meu poema, verde e alta”.

O Globo, 20/12/2012