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Lógica e uso expressivo da língua

 

Atento leitor desta coluna, depois de nela ter visto a expressão ‘erário público’, traz-nos a seguinte pergunta: " Aprendi nas aulas de Direito Constitucional e Direito Administrativo que todo erário é público. Aprendi certo ou errado?” Agradecemos a pergunta do leitor, porque nos oferece oportunidade de  conversar com ele e com outros leitores  sobre aspectos interessantes da linguagem e do nosso idioma em particular, muitas vezes tachados de impróprios, quando não errados.

Entre o indivíduo falante e a comunidade em que se comunica não há somente expressões  e construções vazadas em padrões de reflexão e logicidade, mas realizações idiomáticas assentadas em aparentes desajustes do padrão, que vão encontrar sua justificação em recursos retóricos e estilísticos existentes na atividade linguística, como a metáfora, a metonímia, a elipse, o pleonasmo, entre outros. Em casos assim, não se há de buscar razão no domínio da lógica, mas nos largos domínios  do impressionismo da atividade idiomática, que o uso registra e que o analista tem de levar em conta, senão quiser falsear sua análise. Como propriedade do homem e da comunidade em que está  inserido, tais recursos extraordinários não são  moedas da exclusiva pertença das pessoas cultivadas e literatas; antes, pertencem a todos os falantes. Não sem razão, disse certa vez o estilista alemão Karl Vossler que há tão válidos recursos no discurso de um tagarela quanto no imenso oceano literário de um Goethe ou de um Shakespeare.

O termo ‘erário’ procede do latim  ‘aerarium’, derivado de  ‘aes, aeris’, substantivo que significa‘ cobre’, metal utilizado na  fabricação de moedas. Designava o edifício em que se guardava o tesouro público. Aplicado  no jargão técnico, ‘erário’ dispensa o auxílio do adjetivo  ‘público’. Mas como denominação desse tesouro, isto é, já usado como termo pertencente ao léxico da língua comum,  não técnica, aceita perfeitamente o concurso do adjetivo ‘público’, para que a nossa denominação se torne mais compreensiva àqueles que não são membros do tesouro nacional, ou que  não têm implicação mais estreita com ele. É o adjetivo explicitador de uma noção especial da terminologia técnica e, por isso mesmo, pode escapar à compreensão imediata do homem comum. Pela informação correta do nosso leitor, a terminologia do Direito Constitucional e do Direito Administrativo especializou a aplicação da palavra ‘erário’ ao ‘erário público’, ‘ao tesouro nacional’, de modo que, nestas circunstâncias, não cabe acrescentar ao substantivo o adjetivo ‘público’.

Já para a linguagem não técnica, o uso dos falantes não leva em conta essa exigência  terminológica. Dão testemunho disto os seguintes exemplos, colhidos em nossos melhores escritores: “Dentre pessoas que se  exilavam como soberano,  nem uma deixou de receber o soldo pelo grande sacrifício  daquela assaz apressada viagem. E, como eram indivíduos, na sua imensa maioria, de nenhumas posses ou de parcos haveres, cada qual vinha necessariamente abrir um sangradouro nas represas do erário público”  (Goulart de Andrade, ‘Sementeira e colheita’, pág. 110); “E nunca logrei obter adotação de uma verba para auxílio do meu trabalho. Fecharam-me sempre as portas do erário público, inclusive na minha luta em prol do ensino em nossa terra”. (Herberto Sales, ‘Dados biográficos do finado Marcelino’, pág. 98); “[...] e mais a contribuição de cada um destes [HABITANTES] para o erário público”. (Roberto Simonsen, ‘Ensaios sociais, políticos e econômicos’, pág. 154); “[...] esbanjador do erário público [...]“. (Dias Gomes, ‘Apenas um subversivo’, pág. 187).

Em resumo: estamos diante do emprego de ‘erário’ em terminologia técnica, em que  significa ‘erário público’, tesouro nacional, e de ‘erário’ no léxico comum, em que pode ser explicitado com a presença do adjetivo ‘público’. Não se trata de casos de esquecimento etimológico do substantivo, como em ‘hemorragia de sangue’, ‘decapitar a cabeça’. A referência a sangue e a cabeça está contida em ‘hemorragia’ e ‘decapitar’, respectivamente. Sem levar em conta a expressividade de muitos termos correntes na variante formal da língua, tem injustamente caído sobre eles onda de  excessivos logicismos, que convém evitar. Disto falaremos na próxima semana.

O Dia (RJ), 20/11/2011