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A judicialização da vida

 

Em recente palestra nos Estados Unidos, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, falando sobre o papel das Cortes Constitucionais no mundo moderno, fez uma definição que explica bem o momento que vivemos: “Uma característica dos tempos atuais pelo mundo afora é a judicialização da vida”.

Embora as questões políticas sejam as mais candentes, especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil, ele ressaltou que “algumas das grandes questões políticas, sociais e morais estão tendo o seu último capítulo decidido perante Supremas Cortes ou Tribunais Constitucionais”.  

Deixou de ser entre nós um tabu a discussão de temas políticos em público pelos ministros do Tribunais Superiores, e hoje mesmo estamos às voltas com um caso palpitante devido a um comentário do ministro Ricardo Lewandowski em uma aula na USP. Para ele, o processo de impechment da ex-presidente Dilma “foi um tropeço de nossa democracia”.

Se vindo de um ministro do STF a declaração já é bombástica, vindo de quem presidiu o julgamento no Senado torna-se mais polêmica ainda, e inexplicável. Outro ministro do Supremo, Gilmar Mendes, reagiu de público afirmando que o único tropeço acontecido no processo foi o fatiamento da Constituição, que permitiu que a presidente fosse impedida de governar, mas não tivesse a punição de inelegibilidade contida na regra constitucional claramente, até mesmo pelo português.

Uma interpretação política defendida pelo presidente do Senado Renan Calheiros e chancelada por Lewandowski transformou a inelegibilidade em pena acessória, fazendo com que a, para muitos surpreendente, imparcialidade com que o ministro Lewandowski vinha atuando no julgamento se transformasse numa manobra política que beneficiou a ex-presidente.

A reação pública de Gilmar Mendes corresponde à sua atuação cotidiana de verbalizar suas posições, especialmente para se contrapor a pensamentos político-jurídicos que considere prejudiciais à democracia.

Diferentemente, os demais ministros do Supremo, embora tenham se surpreendido com o comentário de Lewandowski, e mesmo que considerem que os comentários em aula devessem ser privados, estranharam que, tendo presidido o julgamento no Senado, ele tenha feito críticas a um processo que foi referendado pelo Supremo.

E notam que ele presidiu o julgamento por ser o presidente do Supremo, e não por qualquer destaque pessoal, circunstância que deveria fazê-lo restringir os comentários pessoais e ater-se à sua missão constitucional.

Na palestra recente, num escritório de advocacia em Washington em que trabalhou, o ministro Barroso deu exemplos de judicialização da vida, de questões políticas ou morais que se multiplicam pelo mundo, em casos de grande visibilidade, e citou entre os casos políticos o fato de, no Brasil, ter sido a Suprema Corte que estabeleceu o procedimento que o impeachment da Presidente da República deveria seguir, como que reafirmando a lisura do processo. Assim como, nos Estados Unidos, foi a Suprema Corte que decidiu as eleições de 2000.

O ministro Luís Roberto Barroso admite que “a fronteira entre direito e política” ficou bastante menos nítida nas últimas décadas, mas ressalta que “a separação entre uma coisa e outra continua a ser essencial no Estado constitucional democrático”. E explica: “A política é o espaço da vontade da maioria. Já no direito deve prevalecer a razão, a razão pública. A despeito da clara percepção teórica de que são coisas diferentes, no mundo real nem sempre é fácil distinguir o espaço que é próprio da interpretação constitucional e aquele que deve ser reservado para a discricionariedade do legislador”.

Para ele, “Cortes constitucionais não devem ser nem excessivamente tímidas nem tampouco arrogantes. Devem ser capazes de captar o sentimento social, mas não podem ser populistas”.

O Globo, 30/09/2016