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Guerras de Religião?

 

Com o fim da Era dos Extremos e das Torres Gêmeas, postas de pé, eis-nos diante de um novo pluralismo. O mapa-múndi das religiões assiste a uma espécie de mutação transgênica. Los Angeles é a maior cidade budista do mundo. O catolicismo cresce de modo vertiginoso na Ásia. A Inglaterra deve igualar em breve o número de muçulmanos e anglicanos, ao passo que o hinduísmo e o judaísmo realizam um conjunto de aproximação e trocas simbólicas.

O estrangeiro bate à nossa porta. Não há outro caminho senão o diálogo: na energia crescente, no vínculo de relação que o constitui. O diálogo é um tesouro precioso, uma zona de aventura, espanto e inquietação.   

O diálogo deve ser uma zona de passagem, um espaço potencial, uma cartografia inacabada, a que aderem as partes, ciosas de sua identidade, convidadas a pensarem sob uma nova luz. Sem proselitismo. Não para reduzir o outro, não para o convencer de que está errado, mas para aprender com ele, num caminho novo. O diálogo é um ponto de luz, uma porta de saída para o impasse, um gesto solidário.
 
E o centro do diálogo reside na acolhida, na beleza do rosto que contemplo, no olhar do outro que me indaga e me convida a mover os lábios.  Penso no teólogo iraniano Saeid Edalat, quando atribui a Jesus uma santidade incomparável, como reza a tradição muçulmana, de que se afastam os extremistas do Boko Haram, na Nigéria, e do assim chamado Estado Islâmico. Penso no monge cristão Henri le Saux, que foi buscar no hinduísmo um profundo manancial de sabedoria, buscando a nascente do Ganges.   Gosto de pensar no Dalai Lama, quando acolhe um repertório de elementos caros ao mundo judaico. Ou quando Eugenio Scalfari, editor do Jornal italiano La Repubblica, conversa, encantado, com o papa Francisco, sem renunciar um só milímetro de seu ateísmo.
  
Em todos esses casos, o diálogo encarna a virtude maior entre as culturas: a hospitalidade. Pois é preciso abrir as portas da casa, oferecer ao hóspede o quarto mais arejado e luminoso. O diálogo nasce entre dois rostos, entre duas casas, entre duas tradições. E contribui para uma cultura da paz, promove as condições ideais para um ambiente aberto e seguro. Não há fórmula ou estratégia anterior ao diálogo. Antes dele, não existe nada. Depois dele, tudo começa a tomar forma ou destino.  

Penso todas essas coisas como se estivesse falando, nessa primeira semana de dezembro, com meu saudoso amigo Luiz Paulo Horta, porque o diálogo não desaparece entre vivos e mortos. Ao contrário: como se o silêncio adquirisse uma nova e estranha espessura.  Seu último livro foi inteiramente dedicado ao papa Francisco, poeta do diálogo, desde a matriz do judaísmo até a floração do Islã. Para Luiz Paulo, Francisco seria talvez o símbolo de um mundo novo, que brota dos escombros do século XX. Uma pequena luz para formar uma constelação futura, nascida para o diálogo.      

O Globo, 03/12/2014