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A geografia poética de Cecília Meireles

 

Há 40 anos morria Cecília Meireles. Num famoso verso definiu-se como ''pastora de nuvens'', temperamento propício ao fluido e ao etéreo, viajante perdida do porto de si própria. Daí, portanto, as sucessivas viagens que empreendeu - na tentativa de encontrar no outro, na aventura, a promessa de uma unidade impossível de localizar em si mesma. Dentre os tantos ''outros'' que acolheu em seus versos, destaca-se a cultura do Oriente (em particular, a indiana), que a fez criar um de seus mais belos - e menos conhecidos - livros: os Poemas escritos na Índia. Embora publicados apenas na década de 1960, trazem no subtítulo a menção ao ano de sua escrita: 1953. No ano passado, graças ao notável esforço e competência do ensaísta e tradutor Dilip Loundo, os poemas indianos de Cecília foram impressos em Nova Delhi, em antologia bilíngüe. Informou-me Loundo tratar-se da primeira coletânea de poeta brasileiro editada naquele país.


As viagens de Cecília à Europa também geraram poemas e livros. Basta recordar que a obra inicial de sua fase madura se denomina, exatamente, Viagem (1939), e se abre com a dedicatória: ''A meus amigos portugueses''. Em 1952, a poeta lançaria os belos e densos Doze noturnos da Holanda, mas, no caso, a evocação geográfica do país é mais tênue, servindo de apoio para o núcleo do livro, a saber, uma grave meditação diante da noite e da finitude. Noite metafísica, cujas únicas balizas mais concretas se resumem a uma referência ao Mar do Norte e à descrição de um homem morto, afogado nos canais de Amsterdam.


Muitos outros países, efetivamente visitados, mereceram poemas de Cecília, e um livro inteiro, de publicação póstuma (1968), foi dedicado à Itália. O Oriente, todavia, ocupa um lugar central na geografia poética ceciliana, porque, para além de seu espaço físico, simboliza uma perspectiva de vida e uma lição de cultura que se disseminam, mais ou menos explicitamente, em quase todo o percurso da autora. É oportuno recordar que já o segundo poema da primeira obra da autora (então uma adolescente de 18 anos, em 1919) é um soneto intitulado Brâmane, em cujo epílogo é descrita a figura de um hindu ''Que contempla, extasiado, o firmamento''. E um de seus últimos poemas, escrito a menos de seis meses de sua morte, se chama Breve elegia ao Pandit Nehru. Nas duas extremidades da existência, a Índia.


Nos textos de 1953, o que primeiro avulta é a festa sensorial com que o país se revela à poeta-visitante. Perfumes, sabores, músicas e sobretudo cores, muitas cores - tanto nos espetáculos da natureza quanto nos trajes dos habitantes. Ao lado de poemas que abrigam cores feéricas, a palheta de Cecília também sabe fazer-se econômica em sutis exercícios quase monocromáticos, com variações que oscilam entre o branco, o cinza e o negro, a exemplo do que se lê no admirável Canavial, onde 16 versos efetuam jogos combinatórios de sombra e luminosidade, até o desfecho ''Branco./Branco./É a risada festiva das crianças/ no canavial''.


O reino mineral, em Cecília, tende a ser representado como força superior ou indiferente ao destino humano, enquanto o animal quase sempre comparece em comovente harmonia e solidariedade para com os homens. Daí predominarem as representações de animais domésticos ou domesticáveis, que contenham algo do que de melhor se pode esperar da humanidade: o amor, a amizade, a inocência, a confiança. Assim o elefante, frente às crianças, ''levanta-as na tromba, ri com os olhos, é um avô complacente''.


E, em meio a tantas e tão magníficas paisagens naturais, talvez seja à ''paisagem'' humana da Índia que Cecília dedique sua mais amorosa contemplação. Homens que trabalham, seja na criação de uma beleza presente e material (Canto aos bordadores de Cachemir), seja no delírio da criação profética do futuro (O astrólogo). Crianças que dançam e sorriem. Mulheres na dura labuta de domar a força da pedra. A essa tarefa operária, considerada ''masculina'' no Ocidente, se dedicam as Mulheres de Puri, bem como às mãos do homem cabem os bordados (no Ocidente, ''femininos'') de Cachemir. Talvez não por acaso Cecília tenha, na obra, seqüenciado um texto após o outro, contrapondo e relativizando os conceitos (ou preconceitos) do que seria ''masculino'' ou ''feminino'': convenções de cultura, e não essências atemporais.


Bordadores, astrólogos, pequenos comerciantes... Não é de fausto ou realeza o país que Cecília Meireles evoca: sua inequívoca opção é pela gente humilde. Diante de um universo de extrema simplicidade e de anônima pobreza, não faltam aos versos da escritora reiteradas notas, em surdina, de teor social.


Ao registrar fragmentos e cintilações da cultura e da natureza do Oriente, Cecília Meireles, como todo grande artista, confirma que a lembrança da beleza sobrevive, mais real do que a realidade. Do mesmo modo que nós, seus leitores, passamos, através da poeta, a compartilhar a memória dos mais sólidos monumentos da Índia, erguidos não pela pedra perecível, mas pela inapagável palavra da poesia.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 17/11/2004

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 17/11/2004