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A feb e os canibais

 

Há quase setenta anos terminava o flagelo da Segunda Guerra, com um número impensável de crimes contra a humanidade. Basta recorrer aos livros de Primo Levi ou de Imre Kertész para alcançar o horror dos campos de extermínio.     

Ouvi desde pequeno a história da Guerra contada por meus pais. Nasceram ambos em Massarosa, pequena cidade da Toscana, situada entre Pisa e Lucca.  Como explicá-la,  sem citar as termas de Nero, sem lembrar as belas colinas, salpicadas de igrejas românicas, ou sem mencionar o lago de Massaciuccoli, de que Puccini era íntimo?  Foi a primeira cidade libertada pela FEB, na tarde do dia 16 de setembro de 1944.       

As narrativas de meu pai eram em preto-e-branco, mais sentidas, talvez, mais espinhosas, no fim de sua adolescência, ao passo que as histórias de  minha mãe, menina ainda, eram coloridas, cheias de inconfundível graça infantil, para recusar, decerto, os absurdos que então feriam seus olhos. Uma diferença de oito anos separava os narradores, a matéria e a espessura das coisas que viveram. 

Vejo meu pai caminhando com destemor, debaixo do bombardeio americano, em  Pisa, quando perdeu todos os colegas de turma, em 31 de agosto de 1943. Vejo minha mãe morder com raiva os dedos de um soldado alemão, que sadicamente aproximava e afastava de sua boca um pedaço de chocolate (sonho das crianças naquela carestia) enquanto ele puxava com vigor suas tranças louras.  Faltou pouco para uma reação desproporcional não atingir toda a família.   

Meu avô materno vivia da terra e mandara enterrar trigo e tratores, a fim de que não fossem parar nas mãos dos nazistas. Passavam fome (como quase todos durante a guerra), apesar da provisão, mas de pé, cheios de brio. Um de seus primos foi levado à força para a Alemanha e nunca mais voltou.       

Quando os nazistas começaram a retirada, para formar a conhecida linha gótica, tiveram o cuidado de recomendar os brasileiros, como selvagens e perigosos, que não respeitavam sequer velhos, mulheres e crianças. 

Como não se podia confiar nos soldados alemães, deixavam um rastro de dúvida e de espanto. Com a chegada dos brasileiros, as mães fizeram um cordão de isolamento, de mãos dadas, para proteger as crianças dos supostos canibais.  Nossos soldados gritavam, num italiano improvisado: “Venire qua! Ser bom!” E como as mães não baixavam a guarda, os brasileiros começaram a jogar chicletes, balas e chocolates e as crianças romperam, incontidas, o cerco materno.           

No mesmo dia, o alto comando brasileiro decidiu ficar na casa de meu avô. Ao ver o piano, o general Zenóbio da Costa fez chegar a minha mãe umas partituras cariocas. Os pracinhas consolidaram as relações do Brasil com a Itália.  Oito anos depois, meus pais vieram morar no Rio de Janeiro. 

A Segunda Guerra acabou, mas sua memória não pode terminar, somos todos, direta ou indiretamente, sobreviventes do Holocausto.             

 

O Globo, 01/04/2015