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Fantasma da facada

 

Muitos estão convencidos de que a facada de Adélio Bispo foi a verdadeira razão da vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2018. Além do impacto emocional no eleitorado, permitiu que ele não se expusesse nos debates.

É uma maneira de menosprezar a liderança intuitiva de um politico populista que estava no lugar certo, na hora certa, para galvanizar o sentimento majoritário dos brasileiros. Mas a facada pode, sim, ter tido um papel fundamental, do ponto de vista psicológico, nas futuras atuações do presidente eleito.

Na entrevista à revista Veja desta semana, Bolsonaro chorou ao relembrar a facada, e está convencido de que por trás de Adelio havia uma grande conspiração.

O presidente contou também que chora durante a noite, angustiado pela situação do país. Naquela mesma semana, havia comparecido ao programa de Danilo Gentili e abriu a camisa para mostrar a enorme cicatriz decorrente do atentado que sofreu.

O fantasma do drama vivido naqueles dias não abandona o presidente nem seus filhos. Carlos, o filho 02, o mais ligado ao pai depois de terem ficado anos sem se falar, é também o mais emotivo. Seu depoimento a Leda Nagle sobre o atentado e os dias subsequentes são reveladores do sentimento que domina a família até hoje.

Lutando para não chorar, ele descreveu o pavor que viveu ao lado do pai. Primeiro, no momento da facada, levando-o para o hospital tentando que não desfalecesse. Depois, conta que viu o coração do pai parar e ser ressuscitado duas vezes. Viu suas vísceras serem retiradas do corpo. E desabafa: “Ainda tem f da p que diz que a facada foi fake”.

Bolsonaro e o filho Carlos podem estar sofrendo de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que ocorre em pessoas que sofrem situações com risco de morrer, ou presenciam situações em que outros sofrem este risco ou mesmo morrem.  O tema foi aventado pela primeira vez no blog do Saboya, nos primeiros meses do governo, quando começaram as crises internas.

Há médicos que descrevem como decorrência do TEPT transtornos de ansiedade, de humor, anorexia nervosa, paranóia, narcisismo. Antonio Egidio Nardi, professor titular do Instituto de Psiquiatrias da UFRJ, diz que o TEPT é “um sofrimento psíquico muito comum em nossa sociedade violenta, e às vezes menosprezado ou desconhecido, o que retarda o tratamento e prejudica muito a qualidade de vida das pessoas que sofrem”.

A meu pedido, o professor Nardi falou do transtorno de uma forma técnica, e não do caso especifico de Bolsonaro “que nem conheço e, portanto, nunca examinei”. Diz ele que nos Estados Unidos, a taxa ao longo da vida para TEPT é de 8,7%.

Ocorre mais em veteranos de guerra e outras profissões que aumentem o risco de exposição (policiais, bombeiros, socorristas). Nardi diz que muito dos estudos de TEPT são realizados em veteranos de guerra, “mas hoje, com a violência urbana, os quadros clínicos são rotina nos consultórios de psiquiatras e psicólogos”.

O TEPT pode ocorrer em qualquer idade após a exposição a episódio concreto ou ameaça de morte, lesão grave ou violência sexual. “A pessoa começa a vivenciar diretamente o evento traumático em situações diversas através de lembranças intrusivas angustiantes, recorrentes e involuntárias do evento traumático, que pode surgir em qualquer hora do dia e trazer grande sofrimento e desespero”.

Ele exemplifica que ocorrem pesadelos nos quais o conteúdo e/ou o sentimento estão relacionados ao evento traumático. “O indivíduo começa a evitar situações que lembrem o evento, pessoas, lugares, conversas, atividades, objetos, situações que despertem recordações, pensamentos ou sentimentos angustiantes acerca de ou associados ao evento traumático. A ênfase é nas lembranças recorrentes do evento, as quais normalmente incluem componentes emocionais e físicos”.

O professor Antonio Nardi diz que os sintomas mais comuns de revivência são pesadelos que repetem o evento em si. “O tratamento envolve psicoterapia e uso de medicamento. O prognóstico é muito bom”

É bom ressaltar que o transtorno se reflete no campo psíquico, podendo ter efeitos físicos, mas não tem interferência no pensamento cognitivo e ideológico do paciente.

O Globo, 02/06/2019