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Estávamos precisando

 

Em 2013 o Brasil foi homenageado na Feira do Livro de Frankfurt. A mídia destacou os pontos críticos. O tamanho excessivo da delegação de escritores. A ausência de honras oficiais a Paulo Coelho, de tanto sucesso no mundo. Um discurso inflamado de Luiz Ruffato, com forte crítica social, considerada incompatível com a ocasião. A falta de autores brasileiros negros, já que os mestiços presentes podiam passar por brancos.

Nunca faltam pretextos para resmungar ou protestar, de modo a manter viva a chama do espírito de porco de plantão. Os milhares de visitantes, porém, se encantaram mesmo foi com o grande estande brasileiro, criação de Daniela Thomas. Era feito de papel, justamente o suporte em que livros são impressos. Papelão corrugado e prensado formava balcões, mesas, bancos, divisórias.

Entre dobraduras e molduras de papelão, mostravam-se capas e ilustrações de livros ou vídeos com paisagens de nossos romances e poe- mas, que podiam ser ouvidos em fones. Redes se cruzavam e permitiam uma de nossas delícias: deitar para saborear um texto bem escrito. Grandes colunas de folhas de papel impresso, montados em imensos blocos colados em uma lombada, homenageavam personagens da nossa literatura.

O visitante passava, destacava a página de cima (bilíngue e ilustrada), e ia lendo ou levava para casa esse cartão de visitas literário que o fazia conhecer Capitu ou Diadorim, o capitão Rodrigo ou Macunaíma, Emília ou Quincas Berro D’água. Nem dá para citar tudo o que era lindamente oferecido, a mostrar quem somos e o que escrevemos e publicamos. A criatividade do conjunto era inesquecível. Tanto que não foi esquecida.

Em março deste ano, na Feira do Livro Infantil em Bolonha, o país homenageado foi a Alemanha. O estande de sua mostra de ilustradores era todo em papelão corrugado e prensado. Em maio, a ideia foi novamente aproveitada em dois pavilhões, de países diferentes, na Feira Internacional do Livro de Bogotá. Ao recusar o luxo e inventar originalidades, o Brasil abre um caminho que sabe explorar — dos folguedos populares e brinquedos de material reciclado nas feiras nordestinas às lições carnavalescas de Joãosinho Trinta e Fernando Pamplona ou dos blocos de sujo.

Nesse sentido, a festa de abertura da Olimpíada foi uma reafirmação de coisas nossas, sustentadas por artistas criadores comprovados, sintetizados no trabalho sólido de Fernando Meirelles e Andrucha Waddington, Daniela Thomas e Deborah Colker, e tantos outros, com trilha sonora inteligente, iluminação perfeita, aposta numa soma de talentos individuais — da elegância minimalista do hino com Paulinho e seu violão à apoteose de Benjor comandando a massa a entoar “Mas que beleza!”.

Foi uma bela festa, a mostrar que temos valores originais e dignos, não precisamos copiar moldes alheios. E, ao mesmo tempo, a inaugurar um tempo rigoroso, em que o esporte exige que as regras sejam as mesmas para todos. Estávamos precisando disso. De celebrar a vida por meio da cultura e do esporte. De abranger uma enorme gama de variações individuais, diversidade vivida na prática, e não apenas em slogans zangados e vazios.

De premiar quem chegou lá por mérito próprio. De saber perder. De saber ganhar. De reconhecer talento. De relevar erros. De valorizar a emulação, admirando o adversário que nos serve de estímulo. De entender que as vitórias não são apenas as medalhas e o ouro, mas estão ao longo de todo o caminho, no trabalho constante, no foco, na persistência, na dedicação de cada dia, na superação dos obstáculos.

Na Grécia Antiga, as Olimpíadas determinavam o calendário. É a força que tem Cronos, o deus do tempo. Os Jogos não são anuais, ninguém aguentaria. Os campeões não são repentinos. Os recordes não são súbitos. Toda vitória é lentamente construída, tijolo por tijolo num desenho mágico. Não à toa, “Construção”, de Chico Buarque, foi lembrada na festa.

A inspiração atua para o futuro. Para ter bosques, há que reservar espaços e plantar sementes. O menino que hoje tira selfie com o campeão pode um dia estar na raia ao lado e vencê- lo — esse episódio ocorrido agora com Michael Phelps sublinha que a vida é um revezamento. Não é só na política que uma geração deve passar o bastão.

Em matéria de metáforas, estivemos bem servidos. A primeira medalha nossa nesta terra de balas perdidas foi no tiro. A segunda foi de uma mulher negra e pobre que venceu na luta. Mas não é justo inventar histórias que permitam se apropriar de cada campeão. O momento não é de ranzinzice, cobrança ou mesquinharia.

É de grandeza, respeito aos outros, aceitação de fragilidades e acasos, reconhecimento do trabalho sério, consagração da meritocracia. Passada a festa, quem sabe?, talvez a originalidade de nossas próprias virtudes e talentos agora garimpados se some aos valores universais que os Jogos demandam. Podem ser parte do legado a que teremos de recorrer já, nos dias decisivos que aguardam o país. Vamos precisar, e muito.

O Globo, 20/08/2016