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A Escola de Morrer Cedo

 

Fomos morar no Rio, uma cidade nesse tempo tão fagueira e tão amena. Os sambistas cantavam ''a favela dos meus amores'', num tom ainda sentimental. Nem brincando se pensava então no ''crime organizado'' e, embora as desigualdades sociais fossem crescentes, a miséria não estava tão exposta. E os estudantes, embora meio amotinados, fizeram-me um convite lírico, para que eu fosse falar-lhes sobre os românticos.


Tarde azul. E eu ia me debruçar sobre o mais cinzento dos poetas: Álvares de Azevedo, um paulista que detestava São Paulo. E que acabou compondo com Gonçalves Dias, Fagundes Varela e Castro Alves a mais luminosa constelação da nossa escola romântica, batizada por Carlos Drummond de Andrade com um nome de inspiração máxima: a Escola de Morrer Cedo.


No século 19, a garoenta província de São Paulo tinha pouco mais de 15 mil habitantes. O casario pasmado, de austeras rótulas nas janelas baixas e telhados enegrecidos. O trânsito escasso: uma beata de mantilha negra em direção à igreja e um pai de família com o ''cebolão'' preso à corrente do bolso do colete, voltando da farmácia com as últimas novidades da ''corte''. Um burrico com os cestos no lombo, conduzido por um escravo. Os sapatos coaxando no Vale do Anhangabaú. E o silêncio.


Nas noites escuras, acendiam-se os lampiões das ruas, mas, se a noite estava clara, a cidade se iluminava apenas pela luz do luar. Depois da novena, acontecia, às vezes, um bailinho na Sociedade Concórdia. Animado mesmo era o Largo de São Francisco, mas só no período da manhã, quando os acadêmicos de Direito se reuniam no pátio da escola que fora um antigo convento franciscano.


A Escola de Morrer Cedo era freqüentada pelos moços das capas pretas, colhidos em plena juventude pelo famoso Anjo das Asas Escuras: Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu morreram com 21 anos; Junqueira Freire, com 23; Castro Alves, com apenas 24; Adelino Fontoura, com 25; Pardal Mallet e Manuel Antônio de Almeida, 30; Teófilo Dias e Raul Pompéia, 32; Martins Pena, 33; Fagundes Varela, 34; Tavares Bastos, 36; Laurindo Rabelo, 38; e Gonçalves Dias, ''o mais maduro da plêiade'', naquele naufrágio, tinha 41 anos.


Todos escolhidos para patronos das cadeiras da Academia Brasileira de Letras - aliás, quando foi fundada, já estavam mortos (não podendo provocar queixas ou mágoas nas suas escolhas) -, moços, tinham morrido com poucos anos de vida, quase todos ceifados pelo ''Mal do Século'', a tuberculose, numa época em que não havia ainda os antibióticos, e que assim muito matava.


Era a própria mocidade poética paraninfando a imortalidade acadêmica.


Na Europa desse mesmo tempo, o descabelado romantismo já estava cansando. Com o fim do ideal clássico, o homem fora eleito o novo modelo do ideal de beleza. E daí? Esgotada a taça do intimismo lírico, a tendência foi fazer uma pausa na avaliação dos exageros da intuição e da fantasia. Lord Byron e Goethe, Leopardi e Shelley, Heine e Musset, Victor Hugo e tantos outros já davam sinais de enfaro.


Mas aqui, nas lonjuras, a revolução estava apenas começando.


Pronto, eis aí os nossos poetas excitadíssimos, e entre eles o jovem que conhecia várias línguas. Era estudioso e atento, esse pálido estudante de olhar ardente, o Maneco, como Álvares de Azevedo se chamava na família. Morou numa república, mas, segundo a versão familiar, não participou da vida boêmia dessas repúblicas. Era recatado. Contemplativo, escrevia muito, estudava bastante e lia com sofreguidão, mas costumava dormir cedo. Na sua mesa-de-cabeceira, além da Bíblia, livros de Byron e Shakespeare.


Ora, infeliz parecia ser esse Maneco, nas cartas escritas à sua mãe, sobre ''essa província, onde a vida é um bocejar infinito'', mais queixas contra ''o tédio, essa terra de caipiras e de formigas''.


Infeliz o jovem byroniano parecia ser, mas apaixonado? Não tinha namoradas visíveis. Nem invisíveis, segundo testemunho dos poucos amigos, porque quem as conheceu de fato foi Castro Alves.


Medo? Do amor sexual? Quer dizer então que esse Álvares de Azevedo, um poeta tão cheio de ardências, era virgem? ''Virgentíssimo!'', respondeu Mário de Andrade.


Mas existe outra versão, corrente nas Arcadas: Álvares de Azevedo era um fingidor e um sonso. Participava das maiores farras. E depois escrevia bonzinho para mamãe, no Rio, chegando até a confessar que fizera o sinal da cruz na porta das Gomides, porque essas senhoras tinham má reputação.


O poeta Paulo Bonfim aceita as duas teses: a do romântico casto e a do boêmio pulador de janelas e muros para divertir-se nas festinhas secretas da Rua da Palha ou nos descaminhos das serenatas. ''Eu sou as duas coisas juntas'', confessava o ídolo Byron.


Maneco estava de férias no Rio quando de repente se sentiu mal. Desconfiou-se da tuberculose, com ''pulmões afetados'', como era moda na época. Mas é operado de um tumor na fossa ilíaca, numa cirurgia sem anestesia e sem um gemido, como acontecera com Castro Alves, que, sem nenhum anestésico, também não gemera naquela amputação do pé atingido por um tiro de espingarda.


Eram dois moços das capas pretas e da antiga lição greco-romana do estoicismo, ah, essa Escola de Morrer Cedo.


No presságio de sua morte, e sabendo que morria muito jovem, Maneco quer poupar a mãe e pede-lhe que saia do quarto do hospital. E aperta a mão do pai: ''Que fatalidade, meu pai!''


 


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 25/05/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 25/05/2005