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Depois do Inferno

 

O Instituto Moreira Salles abriu neste fim de semana duas exposições dedicadas ao trabalho memorável de Nise da Silveira. Salta aos olhos a coragem da ”psiquiatra rebelde”, como propõe o itinerário de leitura de Luiz Carlos Mello, sendo impossível não sair de lá emocionado. Não sair arrebatado com as obras realmente fascinantes de Emygdio e Raphael, considerados, por Heloísa Espada e Rodrigo Naves, “dois modernos no Engenho de Dentro”.

Lembro-me da voz pequena e frágil da doutora Nise, de olhos severos e agudos, ao defender uma nova ética dentro do hospital. Nise tomou emprestada de uma paciente a expressão que definia aquela visão renovadora, conhecida como a “emoção de lidar”.   Toda uma postura diante da fragilidade existencial dos que habitam as entranhas do manicômio.

O tempo não diminui em nada a centelha poética das pesquisas da doutora Nise. Ela permanece visceralmente atual, dentro de uma ética inegociável e das intuições que abriram caminhos impensados, em que hoje se movem os profissionais da área da saúde mental.

Quase na véspera da abertura da exposição do Instituto Moreira Salles, a justiça concedeu liminar – a pedido do Ministério Público estadual –, determinando a transferência de todos os pacientes da Clínica das Amendoeiras, em Jacarepaguá, para outras unidades de saúde conveniadas ao Sistema Único de Saúde. A promotora Anabelle Macedo da Silva relatou a O Globo um total abandono dos pacientes, “pessoas nuas se arrastando no chão sobre as fezes”, alimentação precária,  portas trancadas, ambiente sombrio, longe de qualquer atendimento psíquico. Abandono deplorável que não destoa do histórico dos últimos anos da instituição, mas que contrasta vivamente com o conteúdo do site a respeito dos serviços prestados aos clientes.

Se a resposta inequívoca do Ministério Público cumpre claramente suas atribuições legais, a sociedade civil não deve perder essa ocasião para  ampliar a vigilância e zelar pelo cumprimento da lei sobre a rotina de um  número expressivo de clínicas psiquiátricas, credenciadas ou não ao SUS.
 
Deixemos de lado a hipocrisia. O problema não se esgota em escala episódica ou varejista. Temos uma epidemia de casas suspeitas. É preciso combater o monopólio da infâmia, que conta muitas vezes com a parceria do estado, como sócio e corréu no crime atacadista perpetrado contra a saúde mental em nosso país. Uso termos de escala comercial,  porque não é outra a vocação desse monstruoso holocausto, feito de modo discreto, quase invisível, em conta-gotas, onde a tortura a que são submetidos os pacientes é prática  considerada natural. Muitas vezes bem mais sutil do que se possa imaginar, como no uso das camisas de força químicas, diagnosticadas e combatidas pela doutora Nise: os pacientes vegetam noite e dia sem dar trabalho, porque dopados em doses estratosféricas. Na qualidade de biodigestores de uma farmácia homicida. Ou, ainda, através do exercício de uma terapia fria e sem compromisso. Terapia meramente protocolar, visando a atender requisitos de convênio, ou preencher lacunas politicamente corretas, onde o paciente é pouco mais que uma peça publicitária, produto  desprotegido pela sociedade e pelos olhos míopes do estado.
    
Cito as palavras de Nise a respeito de Fernando Diniz no hospital do Engenho de Dentro, quando à desagregação da personalidade se somavam outros riscos: “Todo o curso de sua vida foi demasiado trágico e os métodos de tratamento usados no hospital psiquiátrico paradoxalmente massacraram cada vez mais sua autoimagem”.
 
Não podemos permitir o modelo dessas casas de extermínio,  físico ou mental depois da lei Paulo Delgado e da implantação dos  Centros de Atenção Psicossocial. Vivemos uma fase de transição. De ajustes e de alguma teimosa esperança. Como dizia Nise, “é necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade.”

O Globo, 18/07/2012