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Dante e a Justiça

 

Participo em Ravenna de um encontro sobre a Divina comédia. Os restos mortais do poeta encontram-se aqui, na basílica de São Francisco, e, a quase setecentos anos de sua morte, sua obra alcançou dimensão planetária, traduzida para as mais impensáveis línguas do mundo. 

A Divina comédia é um símbolo poderoso, sujeito a diversas releituras e apropriações, mesmo para quem jamais tenha descido ao Inferno de Dante ou alcançado o Paraíso. E não podia ser diferente: assim como dom Quixote, que passou a viver fora de suas páginas, quando se decidiu pela condição de cavaleiro, pode-se dizer o mesmo sobre Dante, que viaja mundo afora, longe de casa, e para sempre, desde que começou a frequentar o reino dos mortos.
Decido apropriar-me da zona franca da Divina comédia e imagino traduzir a cena política do Brasil, segundo as lentes de um Dante redivivo, mantendo a vigilância ética, incômoda, inarredável, com que definiu os crimes deste mundo e as penas do outro. Sem esperança de progressão, no Inferno. Ou com o regime semiaberto, como é o caso do Purgatório.

Alguns agentes públicos arriscariam hospedagem em caldeirões ferventes de piche, no oitavo círculo, torturados pelos demônios, onde são punidos os crimes de peculato, que Dante considerava gravíssimo. Outros maus servidores, intimamente envolvidos com a contravenção, sofreriam uma contínua e dolorosa metamorfose, como ocorre aos ladrões, bem de acordo com seu perfil profissional, em meio a um ninho formado de cobras de toda a espécie, a que incluo, por minha conta e risco, traficantes, milicianos, bicheiros e magistrados – e me refiro aos que não cumprem o dever constitucional e destilam veneno onde se esperava apenas a promoção da justiça.

E assim poderia continuar, Divina comédia adentro, colhendo imagens que se aplicam aos dias de hoje citando criminosos de alta patente, que agem à sombra da República, quando não em suas frágeis engrenagens. Crimes bárbaro: aqueles que a deviam servir, acabam por desservi-la de modo infame e imperdoável. Penso no Lúcifer da Divina comédia, devorando os que traíram o poder que lhes foi conferido, através do lídimo processo democrático. A traição, para o poeta, é o mais grave e repugnante de todos os crimes. Ocupa a parte mais funda do Inferno e a mais afastada de Deus, como se formasse um cordão sanitário, uma zona de segurança.

Partilhamos com Dante a mesma e inadiável fome de justiça, na dupla condição de leitores e cidadãos. E sonhamos com um poder judiciário forte, sólido e pleno, de tal forma que o acesso ao direito se traduza numa cidadania que não ocorra de modo parcial, segundo uma distribuição de tempo justa, um processo eficaz e um sentimento maduro de que o judiciário não é uma nebulosa e nem tampouco bizarra arquitetura faraônica. O judiciário deve representar os pulmões de nossa democracia. O incomparável rosto de Beatriz.

O Globo, 19/09/2012