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Cultura de Paz

 

Passei os últimos dias visitando os sites do al-Ahram, al-Jazira, Hezbollah  e  Fraternidade Muçulmana. Um território vasto e irregular das leituras sobre a  praça Tahrir. Os ventos da mudança sopram a oriente e a ocidente do histórico vale do Nilo, considerado um livro de vastas proporções, ao longo do qual os povos antigos escreveram em suas margens. Essa ideia é do prêmio Nobel Nagib Mahfuz e fui buscá-la em sua casa, dois anos depois do atentado sofrido no Cairo e do qual aos poucos se recuperava, cercado por um forte aparato de segurança. Ele e a esposa receberam-me em pleno Ramadã. Haverá no mundo árabe celebração mais bela do que o Ramadã no Egito?  Não creio.

O amálgama de milênios entre cultura e religião perfaz um todo que impressiona. O Natal dos cristãos coptas mal havia terminado e o jejum se iniciava para as duas fés, herança de país multicultural e de raízes abertas.    Antes da visita a Mahfuz, eu me perdi em al-Gamalia, bairro de sua obra,  contemplando as mesquitas de Sayedna al-Hussein e de al-Azhar, a  capital do mundo sunita.  Reconheço nas personagens de Mahfuz o rosto dos que protestam nesse começo de 2011. Lembro, na famosa Trilogia, do desaparecimento de Fahmi, jovem intelectual que sonhara com um futuro digno para o Egito, mortalmente alvejado na pacífica manifestação contra a Inglaterra.
 
Deixo de lado esses rostos de papel e tenho a esperança de que a assim chamada revolução de lótus seja escrita apenas com o vermelho do Vale dos Reis, não com o sangue dos mártires, apesar das incitações deploráveis da al-Qaeda, mal vista no Egito e também condenada pela irmandade muçulmana – esta que assumiu nos últimos anos uma série de programas sociais de alto valor, dentro de um discurso algo mais moderado há quase uma década. Mas é preciso esperar para compreender ao certo os rumos da fraternidade, composta de várias perspectivas.

Seja como for, para os que ocupam a praça, o futuro deixa de ser uma ferida aberta, se comparado à idade de ouro do Islã, perdida para sempre, ao menos neste mundo, como disse um poeta. Sentem saudades do futuro e fome  de mudanças. 

Para o historiador Samir Qassir, a infelicidade árabe (título do livro publicado pouco antes de entrar para o rol de intelectuais assassinados) deve ser enfrentada a partir de uma legítima aceitação do pluralismo  cultural, segundo um equilibrado ajuste de contas com os tempos modernos, incorporando suas vantagens, sem, no entanto, perder as raízes mais profundas.

Herdeiros de uma civilização que olhava para o futuro, os povos árabes devem constituir as bases de uma leitura crítica e renovadora do mundo em que vivem. E, nesse sentido, a posição do Egito é formidável, por sua histórica liderança, antes e depois de Nasser.
   
O desafio não se esgota na praça e há de levar tempo  a construção de uma sólida base para o regime  democrático. A transição mostra-se altamente delicada, mas é, dentre todas, a única saída. E também a melhor, com todos os riscos, mesmo para Estados Unidos e Israel. Se temem perder algo no início, ganharão depois. E não será pouco. Se o Oriente Médio e o Magreb formarem um cinturão de países democráticos, não será impossível pensar, a médio prazo, uma cultura da paz.
 
O momento é desafiador. Mas o Egito há de superar esse impasse, como o fez ao longo da História, segundo me disse Mahfuz, para quem o egípcio herdou a fibra  milenar do velho do camponês, a paciência e a obstinação do felá.

Leio uma velha entrevista de Mahfuz e imagino  uma espécie  de telegrama póstumo, dirigido aos ocupantes físicos e virtuais da praça Tahrir: “o papel do povo deve ser o de exigir a prestação de contas dos que foram eleitos. Só assim haverá no país uma espécie de unidade e solidariedade que se materializem com a participação popular nas tomadas de decisão”.
 
Creio no Egito. E hoje meu coração também se perde naquela praça.

O Globo, 16/02/2011