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Crivella e a omissão de socorro

 

Ao fugir do carnaval como o diabo da cruz, Marcelo Crivella acabou fugindo também da verdade. Faltou com ela ao afirmar em vídeo que estava em visita oficial à sede da Agência Espacial Europeia (ESA), na Alemanha. “Estamos trabalhando muito, pegando muita informação para saber o que é mais moderno em termos de vigilância”, anunciou, sem contar que seria desmentido. 

Entrevistando funcionários da ESA, a repórter Graça Magalhães-Ruether descobriu logo que a tal visita tinha “caráter puramente privado”. Eles se mostraram constrangidos com a versão fantasiosa do prefeito. Um deles chamou de “badalação” a iniciativa classificada por Crivella de “contribuição para melhorar a segurança no Rio”.

Desde que ele viajou no domingo para curtir sua “folguinha de carnaval”, a cidade sofreu, em escala maior, com o que já está acostumada nesta época do ano — desordem urbana, sujeira, assaltos, arrastões — e com um temporal como há décadas não se via igual, com rajadas de ventos de até 100km/h e cerca de sete mil raios. 

O caos nos transportes públicos e nas vias expressas paralisou a cidade com 96 quilômetros de engarrafamento. Houve queda de mais um trecho da Ciclovia Tim Maia e o fechamento de vários ramais de trens. O VLT esteve parado, e o BRT enfrentou problemas para circular por causa das ruas alagadas e a falta de motoristas. Vários bairros ficaram sem luz, afetando 16 hospitais e UPAs, cujas máquinas de oxigênio pararam de funcionar. 

Em situações como essa, as autoridades em geral procuram estar próximas das vítimas, quando nada, por solidariedade. Por isso, esperava-se que Crivella — senão como prefeito, pelo menos como pastor — pegasse o primeiro avião e voltasse para junto de suas ovelhas. Não só não fez isso, como enviou mensagens engraçadinhas pelas redes sociais, como as da Suécia: “Oi, pessoal, tudo bem?”

Já que sabia como se encontrava o “pessoal”, a pergunta soava como deboche. Em outro vídeo, ele procura ressaltar o que a sua alegre e saltitante caravana estava enfrentando: “É frio pra chuchu, aqui tá gelado, é neve. Mas nós estamos cumprindo nossa missão de buscar tecnologia”. Uns heróis, né?

Do ponto de vista humanitário, o que mais chocou nessa viagem que custou ao contribuinte R$ 130 mil não foi nem o abandono do barco, mas a omissão de socorro, um crime previsto no Código Penal para quem — com “o dever e o poder de agir” — deixa de atender os que estão em situação de “vulnerabilidade”.

E vulnerabilidade foi o que não faltou no Rio esta semana. Segundo a Defesa Civil, além dos estragos materiais, o temporal causou quatro mortes e desabrigou e desamparou duas mil pessoas.

O Globo, 17/02/2018