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A Coroa de Macbeth

 

Houve quem se espantasse com a votação para a abertura de impeachment na Câmara dos Deputados, no último 17 de abril. Tocante o número de corruptos de carteirinha, ‘indignados’ com a corrupção, como se fossem atores improvisados num velho roteiro de chanchada.  Deplorável o elogio ao torturador-mor da Ditadura, feito por conhecido deputado que se investe como cavaleiro que combate o ‘dragão da maldade’ com as armas da mais perversa misoginia: verdadeira – mas não única – voz da barbárie no Parlamento. Indefensável a apologia de agressão física, porque traduz uma resposta fascista a outra igualmente simétrica e irmã. Melancólico o discurso dos deputados-teólogos, rebaixando, de um só golpe, a política e a religião, como se tivessem a obrigação de expulsar um demônio, nos arredores do templo de Jerusalém, com boa dose de histeria. E, no entanto, houve manifestações corretas, dos que votaram sim e não, alguns conscientes do que estava em jogo, sem falar das poucas e nobres abstenções.

Mas o que chocou sobretudo, foi a presença quase inamovível do Presidente da Câmara, que em si mesmo constitui uma total contradição, dando ao processo um grande mal-estar, a sombra escura da má consciência. A mancha indelével do mal de origem entrou para a História. Os tempos judiciais correm vagarosos para quem é réu no STF e velozes, fulminantes, para deliberar o impeachment da presidente da República.  

Eis o fruto amargo dos últimos vinte anos de vazio nesse campo, em que os governos do PT e do PSDB deixaram de realizar as reformas política e eleitoral, como se não passassem de uma perigosa miragem no deserto de ideias, contentando-se, ambos, PT e PSDB, com a prática de uma relação consuetudinária, por assim dizer, ambígua e suspeita para mover suas respectivas bases aliadas.

Porque se trata de um presidencialismo de coalizão, volátil, parasitado por legendas de aluguel, com a propaganda eleitoral como objetivo, favorecendo um permanente assalto ao estado e todo um cardápio de práticas antirrepublicanas, onde a representação das bancadas dos estados é patética, além dos que se tornam deputados e senadores sem voto. Houve um e outro avanço, como foi o caso da proibição de financiamento público de campanha. Mas não basta o varejo, é preciso repensar todo o sistema para uma democracia de qualidade, representativa e direta. 

O Congresso não espelha o país porque suas bancadas dependem de um labirinto de pesos, sem contrapesos, que não atendem a uma democracia mais sólida. O Parlamento não é exatamente o microcosmo do país, mas o retrato perfeito de nossa jovem e incerta democracia, liderado por um Macbeth de terceira.

Quando um dia se mover a floresta de Birnam, não haverá coroa que resista. Porque a História não se escreve para idiotas. Não é surda, nem cega. A História tem olhos de lince. 

O Globo, 04/05/2016