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Brasil, terra dos presidentes improváveis

 

Se pegarmos os sete presidentes brasileiros que exerceram a função desde a redemocratização em 1985, eleitos diretamente pelo voto ou colocados na cadeira presidencial por fatores externos - como doença ou morte - ou políticos, como impeachment, veremos que todos eles, de uma maneira ou de outra, são presidentes improváveis.

Esse fenômeno pode ter ocorrido devido à quebra da estrutura partidária vigente antes da ditadura militar, período em que os acordos políticos obedeciam a parâmetros destruídos durante os 21 anos do período militar.

As oligarquias regionais que não foram para o exílio permaneceram praticamente intocadas, acomodaram-se nos partidos criados pelo regime militar – Arena, depois PDS, e MDB, depois PMDB. Mas o período da redemocratização foi dominado por PT e PSDB, que protagonizaram a disputa político-partidária por 23 dos 33 anos.

Os líderes tradicionais da política antes da ditadura, Brizola, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Covas, Arraes, ficaram pelo caminho na pós-democratização, reavendo o poder regional, muitos de volta do exílio, mas sem atingirem o poder central, pela renovação partidária ou pela confirmação de que presidência da República é destino.

Foi esse destino que levou ao Palácio do Planalto sete presidentes acidentais, embora o único que tenha admitido publicamente essa condição, para explicitar que não era um político profissional, tenha sido Fernando Henrique Cardoso, que se classificou assim no título de um livro de memórias na versão em inglês. 
O primeiro presidente da República improvável foi José Sarney, presidente nacional do PDS, antiga Arena, partido de sustentação dos governos militares, que rompeu com o governo Figueiredo por não concordar com a candidatura de Paulo Maluf à presidência, e foi apoiar a candidatura oposicionista de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.

Ao ser escolhido candidato a vice pela Frente Liberal, Sarney revelou a amigos que pretendia dedicar seu tempo como vice aos romances e à pintura. Ao saber disso, Tancredo comentou, sarcástico: “Ele vai ter muito tempo livre”. Não teve.

Na véspera de assumir a presidência, Tancredo Neves foi submetido a uma operação de emergência e acabou falecendo meses depois, numa agonia acompanhada pelo país em choque.

Tancredo seria o menos improvável dos presidentes pós-redemocratização, por seu protagonismo na vida política do país. Mas chegou à presidência pela via indireta do Colégio Eleitoral, o mais improvável dos seus caminhos, e morreu eleito, mas sem assumir a presidência.

Sarney garantiu a transição democrática, o que lhe dá um lugar na História, e esteve perto, com o Plano Cruzado, de antecipar o Plano Real e dar fim à hiperinflação. Mas sucumbiu às velhas práticas eleitorais, não fez os reajustes necessários. Atingiu seu objetivo: o MDB elegeu na eleição de 1986 todos os governadores, com exceção de um. Mas terminou o governo tragado pela impopularidade com o fracasso do Plano Cruzado.

 Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito pelo voto direto depois da ditadura militar, foi também um presidente improvável. Embora político de carreira, e de uma família de políticos, seu raio de ação sempre se circunscreveu a Alagoas.

Até que, numa ação política ousada, captou o espírito da época e lançou-se a uma campanha de marketing bem sucedida encarnando o caçador de marajás. Derrotou as principais lideranças políticas – Brizola, Ulysses, Covas, Aureliano, e por aí vai – e enfrentou outra novidade política, o líder sindical Lula, suplantando-o num segundo turno aguerrido.

Impedido por acusações de corrupção, deu lugar a seu vice, Itamar Franco, que dificilmente se elegeria para algum posto além de senador que era. Escolhido por simbolizar o político honesto, acabou presidente da República, entrando para a história com o Plano Real elaborado por seu quarto e improvável ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso.

Foi depois governador de Minas e embaixador em Portugal, Itália e OEA. O Plano Real levou Fernando Henrique à presidência num momento em que pensava se candidatar a deputado federal, pois a chance de se reeleger senador era mínima.

Foi também presidente por um detalhe político: Antonio Brito, do PMDB, naquele momento ministro da Previdência, preferido por Itamar para sucessor, não aceitou a incumbência.

O Plano Real mostrou-se um cabo eleitoral imbatível, e o ministro da Fazenda que o coordenara, um candidato perfeito para o momento, embora improvável. Eleito senador pelo voto de opinião, não parecia capaz de galvanizar a maioria da população, embora tenha andado de jegue e comido buchada de bode fingindo ser “tripes à la mode de Caen”. Mas o Real valendo mais que o dólar deu o toque popular de sua campanha.  

Depois de oito anos de mandato, eleito duas vezes no primeiro turno derrotando Lula, Fernando Henrique foi substituído pelo líder sindical, um presidente da República improvável, como ele mesmo assumia, com orgulho: nunca na história do país um operário de pouca instrução chegara ao cargo mais alto.

Mas Lula é o menos improvável dessa lista de improváveis presidentes, pois criou um partido político de influência permanente desde a fundação em 1980, foi candidato a governador de São Paulo, deputado constituinte em 1988. Já havia sido derrotado três vezes em eleições presidenciais, por Fernando Collor, e duas por Fernando Henrique. Lutava contra a improbabilidade de chegar ao Palácio do Planalto, subvertendo uma política elitista que reservava a presidência aos seus. A tal ponto que, em 2002, houve um movimento dentro do PT para o partido indicar outro nome.

É verdade que os rebeldes – Cristovam Buarque e Eduardo Suplicy – não tinham maioria no partido, dominado pelo grupo de Lula, e foram massacrados nas prévias internas que exigiram. Na terceira eleição presidencial que disputou, Lula teve que se reinventar para ampliar o eleitorado petista. Surgia aí o personagem Lulinha Paz e Amor, criado pelo marqueteiro Duda Mendonça, e o resto é história. Tornou-se um dois maiores líderes populares do país, mas também o primeiro presidente preso por corrupção.  

História que levou Lula a inventar novo personagem, a gerentona Dilma Rousseff, outro presidente improvável. Sem nunca ter disputado uma eleição majoritária, assim como seu criador, mas sem os dons políticos dele, Dilma chegou à presidência da República para esquentar a cadeira para a volta de Lula.

Mas usou o poder imperial que a Constituição dá ao presidente para disputar a reeleição, sendo impedida no meio de seu segundo mandato por incapacidade política e desvios fiscais que caracterizaram improbidade administrativa.

Michel Temer, vice-presidente por dois mandatos do PT, assumiu a presidência depois de ter disputado sua última eleição popular com dificuldades para se eleger deputado federal. Ficou pouco mais de dois anos no poder e deu lugar a Jair Bolsonaro.

Um parlamentar de sete mandatos que sempre pertenceu ao baixo clero, nunca teve qualquer destaque na atuação na Câmara, a não ser as polêmicas declarações a favor da ditadura militar e da tortura. Ou os sinais exteriores de homofobia ou misoginia. Hoje, é um capitão que chefia generais, alguns seus antigos comandantes. 

De todos presidentes improváveis, o único que se manteve grande líder eleitoral foi Lula, com uma liderança carismática que já foi majoritária, e  comanda a oposição mesmo de dentro da prisão. Fernando Henrique assumiu o papel de grande mentor do PSDB, mas sem participar pessoalmente das disputas eleitorais. 

Sarney, Collor e Itamar continuaram como parlamentares, mas sem possibilidades de vôos mais altos. Itamar até tentou voltar a ser presidente em 2006, mas foi humilhado na convenção do PMDB que decidiu não ter candidato. As veleidades eleitorais de Dilma foram levadas de roldão pelo tsunami Bolsonaro, que agora dá sinais de que pretende substituir Lula como líder populista com sinal trocado. 

Tem a seu favor o tempo, que pode vir a ser também seu maior adversário se revelar mais seus defeitos que eventuais qualidades.  

O Globo, 07/01/2019