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Atraso secular

 

A discussão que começou ontem no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre prisão em segunda instância repete o que ocorreu em 1827, quando Bernardo Pereira de Vasconcelos, jornalista e deputado do Império, subiu à tribuna para criticar o que considerava um excesso de recursos no sistema judicial brasileiro. Passaram-se 192 anos, e ainda não chegamos a uma conclusão. 

A mudança da jurisprudência em pouco tempo é outro obstáculo para uma decisão sensata. A prisão em segunda instância foi proibida apenas em 2009, quando passou a vigorar o entendimento de que somente depois do trânsito em julgado poderia ser decretada a prisão de um condenado.  Em 2016, formou-se uma nova maioria a favor da volta da jurisprudência que permitia a prisão em segunda instância, que prevalecera muitos anos antes da mudança.

Agora, querem mudar novamente, pois o ministro Gilmar Mendes fez a maioria de um voto pender para o trânsito em julgado. Tudo indica que no próximo ano, quando o ministro Celso de Mello, favorável ao trânsito em julgado, se aposentar, a maioria poderá mudar novamente, dependendo de quem o presidente Bolsonaro indicar para o STF. E pode mudar novamente no ano seguinte, quando o ministro Marco Aurélio Mello, também favorável ao trânsito em julgado, for substituído.

 Essa profusão de instâncias recursais é herança de nossa colonização portuguesa, quando chegou a haver quatro ou cinco instâncias: a primeira, uma segunda, que era o Tribunal da Relação, uma terceira, a Casa da Suplicação, uma quarta, o Supremo Tribunal de Justiça, que originou o STF, e a graça Real, o último recurso ao Rei.

Bernardo de Vasconcelos, autor do projeto legislativo do Código Criminal do Império, em vigor em janeiro de 1831, defendia que os recursos não deveriam suspender a condenação, exceto em pena de morte: “o contrário é estabelecer o reinado da chicana”.

A constituição de 1824 e o sistema recursal do Império só admitiam duas instâncias, a do juiz monocrático e a do tribunal da relação como corte de apelação. Reagia-se contra o excesso de recursos do Antigo Regime visto como garantidor de privilégios e impunidade.

Hoje, temos quatro recursos, o último sendo ao STF, o nosso Rei. A grande data do Judiciário brasileiro é o 10 de maio de 1808, quando foi criada a Casa de Suplicação do Rio de Janeiro com competência para julgar todos os recursos, inclusive da Casa de Relação da Bahia. Foi quando passamos a ter um judiciário totalmente independente de Portugal, embora baseado no sistema português.

O historiador e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Arno Wheling foi quem encontrou esse atualíssimo discurso de Bernardo de Vasconcelos, justamente em pesquisa para um livro que está escrevendo sobre a Casa da Suplicação.

O código de Bernardo de Vasconcelos, segundo os estudiosos, representou a primeira codificação criminal autenticamente nacional, definindo princípios hoje consagrados em toda legislação criminal do ocidente: princípio da legalidade, anterioridade, proporcionalidade e cumulação das penas, assim como a imprescritibilidade.

 Vários juristas estrangeiros aprenderam português para ler no original o código, que inovou em vários aspectos, até mesmo no tratamento da maioridade penal, que não era abordada por nenhum código ocidental.

Aqui no Brasil, continuamos a discussão sobre quatro instâncias recursais, e quem apóia o trânsito em julgado, defendido ontem pelo relator, ministro Marco Aurélio Mello, alega a injustiça potencial de que um inocente possa cumprir pena. Valeria retardar o processo, pois, para só levar à cadeia quem fosse indiscutivelmente culpado.

 O jurista José Paulo Cavalcanti argumenta que, ao mesmo tempo, esses mesmos Ministros do Supremo admitem a prisão provisória. “Na condenação em três instâncias, o processo passou por um juiz, três desembargadores de tribunais estaduais ou federais, e ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nove julgadores, portanto”.

Ainda assim, pela presunção de inocência, deveriam, segundo eles, ficar soltos. Só que, na prisão provisória, vale a decisão de apenas um juiz. Com muitíssimo mais razão não deveriam admitir que alguém possa ficar preso, durante anos até, a partir de um único juiz. “A lógica sugere que com muito mais razão, esse réu jamais deveria ficar preso”, analisa José Paulo Cavalcanti. 

O Globo, 18/10/2019