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Apelando ao padroeiro

 

Casado com brasileira, pai de uma carioca, vice-cônsul no Rio nos anos 70, meu amigo alemão quer saber como a cidade atingiu esse ponto de degradação. Depois de algum tempo longe, ele veio passear com a mulher, nascida em SP, mas “carioca de coração”, e chegou no momento em que estamos fazendo a mesma pergunta. Ele ama tanto o Rio que, em 1981, já como embaixador na África, fez questão de vir para que a filha nascesse aqui. Esta semana, recordamos com saudade aquela cidade amena e tranquila onde ele serviu profissionalmente.

Na época, o país era pior, porque havia tortura, censura, prisões arbitrárias por subversão, enfim, tudo o que uma cruel ditadura nos impunha. Mas a violência urbana era menor do que a do Estado, exercida através do seu implacável aparelho de repressão. Temia-se mais a polícia do que os bandidos, e essa situação foi expressa com ironia por Chico Buarque em “Acorda amor”. Ele sonha que estão batendo no portão de manhã: “Era a dura, numa muito escura viatura/Minha nossa santa criatura/chame, o ladrão, chame o ladrão”. Hoje é uma cena impensável, mas naquela altura fazia sentido.

Imagina o choque do nosso diplomata ao se deparar na primeira página do jornal com as fotos, no alto, do enterro de três PMs, elevando para 48 o número dos que morreram em serviço só este ano. Abaixo das fotos, a informação de que Maria Eduarda, de 13 anos, morreu ao ser atingida dentro da escola por disparos de fuzil que é usado pela PM. Nas várias cidades em que viveu, ele talvez não tenha encontrado uma polícia capaz de matar e morrer com tamanha facilidade. Na mesma página, como que para mostrar outra dimensão de nossas mazelas, aparece Pezão em Brasília pedindo socorro para quitar salários atrasados do funcionalismo público. Uma parte foi paga com os R$ 300 milhões que o ex-governador desviou dos cofres públicos e teve que devolver. E havia ainda a notícia sobre os cinco dos sete conselheiros do TCE que estão presos por corrupção (não há espaço que chegue para cobrir nossos escândalos). Quando ele saiu daqui transferido, cantava-se o hino de amor que Gilberto Gil fez em forma de abraço, ao deixar a cadeia, preso por subversão, e partir para o exílio: “O Rio de Janeiro continua lindo”. Ainda continua, mas maltratado e às voltas com uma crise ao mesmo tempo política, econômica e moral longe de terminar. Hoje, para dar conta do nosso estado de espírito, só apelando ao nosso padroeiro, como fez Milton Nascimento, em feitio de oração a quem, mesmo flechado, não perdeu a serenidade: “Diante da tua imagem/ Tão castigada e tão bela/Penso na tua cidade/Peço que olhes por ela”.

O Globo, 08/04/2017