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Alimentando fantasmas

 

É impressionante a irresponsabilidade do presidente Bolsonaro no trato da coisa pública, comportamento que nunca teve maior repercussão nos seus 27 anos de mandatos populares porque ele nunca teve importância política. Todos os assuntos são tratados com leviandade própria dos que cuidam apenas da próxima eleição.

 Afirmar que a pandemia do Covid-19 é um exagero que a “grande mídia propaga pelo mundo” é no mínimo uma imprudência governamental que pode gerar uma crise de saúde pública no país. Tão pernicioso quanto a “marolinha” de Lula na crise financeira de 2008.

Se fosse levado a sério a tempo, o mal teria sido cortado pela raiz. Circulam na internet vários vídeos com barbaridades defendidas por Bolsonaro durante sua carreira de deputado federal, inclusive não pagar impostos, sonegação que se hoje fosse adotada por seus seguidores fiéis quebraria o governo que ele preside.

Essas mesmas barbaridades foram ditas e reditas durante a campanha eleitoral, e ele só chegou com chances no segundo turno porque até o último momento seus adversários acreditavam que acabaria perdendo fôlego.

 Não contavam com o acirramento da polarização antipetista, e muito menos com a facada, trágico atentado que até hoje prejudica a saúde de Bolsonaro e, na campanha, protegeu-o dos debates.

Temos então um presidente doentiamente paranóico que não sabe o limite entre o populismo eleitoral e a presidência de uma Nação, que precisaria neste momento de crise mundial de uma liderança equilibrada que investisse na unidade, e não na divisão.

Mas Bolsonaro vive da discórdia, se alimenta de intrigas e deixa por onde passa um rastro de destruição moral. Explora as dificuldades do brasileiro comum culpando sempre outros por seus fracassos, que frustram os que ainda crêem nele.

Sua força política é originária dessa frustração de um povo que, de tempos em tempos, busca um salvador da pátria e invariavelmente encontra pela frente um pilantra político pronto a usá-lo em benefício pessoal.

O caso das emendas impositivas, que dão ao Congresso uma autonomia em relação a parte considerável do orçamento da União, é exemplar da maneira sub-reptícia com que Bolsonaro se movimenta no jogo político, dilapidando a confiança que deveria existir entre o chefe do Executivo e os demais chefes de poderes.

 Quantas vezes Bolsonaro foi e voltou nesse debate, ora fazendo acordo com o Congresso, para logo depois anunciar que não fizera acordo nenhum? Quantas negou ter avalizado a manifestação contra o Congresso, para depois assumir essa convocação fingindo que não era contra os políticos, mas a favor das reformas?

Até que assumiu a verdadeira intenção ao sugerir que se o Congresso abrisse mão de comandar a verba de R$ 15 bilhões do orçamento, poderia negociar o cancelamento das manifestações, que ele diz que são espontâneas e sem liderança do governo.

Uma chantagem explícita, em que assume a mesma posição que criticou nos políticos, e também a coordenação tácita das manifestações. Bolsonaro gosta de dizer que não tem controle sobre seus seguidores nos meios sociais, insinuando que essa rede de intrigas e ódio tem vida própria para defendê-lo.

Mas a CPI das Fake News está demonstrando que a origem dos ataques das milícias digitais está sempre ligada a seus filhos e assessores que formam o já conhecido Gabinete do Ódio instalado no Palácio do Planalto.

E o que dizer da denúncia de que ganhou no primeiro turno em 2018, mas teve que disputar o segundo turno por fraude na contagem dos votos na urna eletrônica? É de uma irresponsabilidade surpreendente até mesmo para os seus padrões.

Ele já havia jogado essa carta durante a campanha, prevenindo-se de um revés que nunca esteve próximo. Hoje, retoma o tema apenas para manter viva a polarização com a esquerda, que supostamente ainda é uma ameaça à democracia brasileira.

Bolsonaro ataca a democracia a pretexto de protegê-la de fantasmas que vai alimentando, ajudando a instabilidade política do país no momento em que uma liderança madura e adulta seria necessária.       

O Globo, 11/03/2020