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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Celso Vieira

RESPOSTA DO SR. CELSO VIEIRA

SENHOR Vítor Viana:

Conta-se que um homem de Estado, em Londres, opinando sobre um homem de imprensa, rematara o elogio das suas qualidades amáveis com as seguintes palavras:

– Muito cortês, muito gentil. É pena tratar-se de um jornalista.
Ora, os jornalistas do mundo anglo-saxônio, que tanto admirais, ou do mundo neolatino, a que pertenceis, embora não se afidalguem todos como esse gentil-homem da publicidade, nem todos se imortalizem nas academias, são criaturas espirituosas, conscientes da sua força. Riram do menosprezo. E anos depois, abençoando os peregrinos do jornalismo, entre as formas e as cores da Renascença, no Vaticano, dizia-lhes Pio XI com a verdade infalível da Igreja:

– No século XX, meus filhos, São Paulo seria jornalista.
Assim, revivendo para o seu apostolado, São Paulo escreveria hoje os editoriais do Osservatore Romano, como traçava epístolas sublimes, outrora, aos Coríntios e Efésios. Não duvidemos. O lugar do evangelho e do sacrifício, da grande fé absorvente, da grande ação militante, conforme o Santo Padre, é no momento a boa imprensa, onde os pecadores se arrependem e se fazem apóstolos, à maneira de Saulo.

O JORNALISMO

Desse tumultuoso reino de evangelizadores e panfletários, catequistas e polemistas – o jornalismo – vindes para a serenidade acadêmica das letras.

No entanto, à Casa de Machado de Assis e Joaquim Nabuco, aureolada pelo sol de outros dias, não trazeis unicamente a febre da atualidade, que tudo empolga e acelera, tudo refaz e vulgariza. Polígrafo ajustado aos recursos da nova técnica e às forças do pensamento contemporâneo, sois deveras o simplificador e animador da vida corrente, o exemplo de valorização dinâmica da cultura, não perdendo um minuto do vosso horário nem uma parcela da vossa energia. Concebeis o mundo por instantâneos, abreviais em relâmpago o tempo. Mas a estirpe vos detém, por vezes, nessa rapidez ultramoderna, com o prestígio das sombras familiares, transmitindo ao publicista da vanguarda o culto de origens distantes ou imagens desfeitas.

Aluno do vosso pai, Dr. Araújo Viana, professor de História das Artes Plásticas e de arqueologia artística na Escola Nacional de Belas Artes, homem de raciocínio estético e severos princípios morais, aprendestes com ele a decifrar os epitáfios monumentais do velho Rio, descobrir no passado a beleza heráldica da urbs imperial, quase evanescente. Depois disso, ante a efígie do vosso bisavô, Marques de Sapucaí, reconstituístes a majestade crepuscular do Segundo Império com os mesmo ensinamentos paternos. A vocação literária despertou no âmbito das cousas extintas, na galeria dos vultos memoráveis. Quando o moço Vítor Viana surpreendeu os leitores d’A Imprensa, um dia, colorindo na minudência arqueológica dos seus comentários a máscara de uma cidade morta, já o espírito lhe andava, desde muito, seduzido pelo claro-escuro da tradição, pelo nevoento e difuso mistério das ruínas.
Seduzido, mas não subjugado, transpusestes pouco depois o limiar da cidade mágica de Osvaldo Cruz e Pereira Passos. Os elegantes do quatriênio Rodrigues Alves, que Bilac denominara os trezentos de Gedeão, inauguravam aqui o mundanismo europeu com outro guarda-roupa e outra linguagem. Fostes um deles, cronista de mundanidades em uma seção d’O País, britanicamente apurado no estilo e nas maneiras, exemplificando aos jovens tropicais a elegância up to date das rodas londrinas. Civilizava-se o Rio, binoculizado por Figueiredo Pimentel na Gazeta de Notícias. Janotas e casquilhos, peraltas e francelhos eram vocábulos mortos, espectros do glossário. Cada peralvilho de subúrbio, frisado pela mestiçagem, queria vestir-se como Brummel, conviva e modelo do Príncipe de Gales. Nascera das espumas de Copacabana ou do Flamengo a nossa primeira miss para os concursos de beleza. Paulo Barreto, anunciando a era do automóvel, traduzira com urgência o Leque de Lady Windermare, e o vosso inglesismo de precursor da elegância carioca flamejava na seção d’O País. Não posso figurar-vos no começo da era automobilística, Sr. Vítor Viana, sem monóculo, polainas, um exemplar de guia da cidade e uma exclamação britânica, revendo as paineiras do Corcovado ou medindo a grandeza do Bico do Papagaio: Very fine!

Esse artificialismo, porém, fora apenas uma diversão fugaz da inteligência, adestrada pouco depois, em sérios estudos, para habitar e possuir maiores domínios: a civitas gentium máxima do Direito, a urbs imperatória da arte, a cidadela de ouro do capital e a cidade subterrânea do trabalho na economia política. Jornalista imberbe, vivestes o primeiro instante da metamorfose coletiva em crônicas de rua e de salão; pensador ilustre, amadurecido pela idade e pela ciência, passastes a viver fecundamente em livros e jornais, congressos econômicos e conselhos administrativos, as horas mais intensas do no Brasil-república. Só estas? Não. Também as horas dramáticas do novo ciclo internacional, desde 1914, o ano da vossa grande revelação estratégica, porque fostes na imprensa, a despeito do vosso feitio plácido, o homem revelado pela grande guerra, ao troar das bocas de artilharia pesada ou ligeira, descrevendo-lhe o cenário e os episódios, prenunciando-lhe as operações e o desfecho.

Certo, não vos elegeu o estado-maior das letras nacionais como professor de tática, ensaísta do belicoso gênero von Goltz ou von Bernhardi, nem divisareis na Academia um terreno propício à marcha das vossas colunas de aço, ao desdobramento das vossas cortinas de fogo. Mas na imprensa diária, em estado de guerra, a temerosa verdade é que ninguém poderia dar-nos, como fazíeis num artigo, o espelho incandescente das carnificinas. Sortilégio da vossa pena, faiscando entre as armas brancas ou negras, longe do canhoneio. E em estado de paz, jornalisticamente, poucos mestres rivalizariam com o autor dessas perfeitas sínteses, nacionais ou internacionais, tão vossas e tão inesperadas, quando pensamos naquele artífice da nota social d’O País, que desviara o carioca de francesismo para o anglicismo e impunha aos andarilhos o footing, enquanto não surgia no requebro dos nossos volteadores o dancing.

Se a especialização nos circunscreve ou nos caracteriza a individualidade, personificais a irradiação jornalística e enciclopédica de um povo através das letras, das artes, das indústrias, do comércio, da ciência econômica e da ciência política, do nevoeiro e do labirinto sobre os quais nos ofereceis, cada manhã, a límpida imagem volante das anotações ou dos resumos.

Alcindo Guanabara, cuja ilustração era quase um sistema, objetou certa vez ao redator, que veio alegar-lhe o desconhecimento do assunto, distribuído para o comentário:

– “Ora essa! O jornalista foi exatamente feito para escrever sobre o que ele desconhece.” A vossa concepção difere: o jornalista deve estudar sem descanso, a fim de produzir sem limite. Superprodução, nesse caso, pressupõe logicamente supernutrição. E devorais, por dia, não sei quantos volumes, em três ou quatro idiomas, possuindo como leitor os dois segredos de Camilo Castelo Branco: absorção infatigável, assimilação instantânea. Nem todos os papiros da biblioteca de Alexandria, queimada pelo vosso inimigo Eróstrato, saciaram a fome dessa espécie voraz...
Houve quem dissesse do erudito e arguto Remy de Gourmont:

– “Ele concentrou a inteligência de uma época...” Discordariam talvez os juízos. A inquestionável certeza, porém, é que ele fez a leitura de várias épocas e recolheu a ciência das cousas humanas para escrever na sua revista – o Mercure de France. – Nada vos aproxima da literatura gourmontiana, mas, recordando num sentindo menos clássico e menos crítico a variedade fascinadora das excursões intelectuais de Gourmont, desde a física do amor aos artigos sobre a guerra, quase estou a dizer, ante a policromia cultural da vossa tarefa de sociólogo, de economistas, de historiógrafo, que também folheastes a vetustez silenciosa de muitas bibliotecas e aprendestes cousas inumeráveis para escrever no Jornal do Commercio. Quantas lições improvisadas, ao apelo do telefone ou do telégrafo, nessa escola de publicidade universitária, brilhantemente regida por um dos vossos colegas da Academia, o Sr. Félix Pacheco! Mas nem todos sabem que, depois de José Veríssimo, como antes e depois de Medeiros e Albuquerque, vos coube no Jornal do Commercio, anonimamente, a formidável tarefa da crítica literária. Revoam-me aos olhos, de passagem, as folhas avulsas do livro sem fim, publicado o vosso nome. Escritores e poetas brasileiros, mesmo os poetas menores, não pagaram ainda, em recolhimento, o que vos devem como simpatia, compreensão, estímulo, apoio mental na penetrante análise das suas obras.
Dia a dia, o vosso espírito ilumina, em tipo miúdo, a colunata do órgão benemérito, advertindo, orientando, esclarecendo o Brasil. Que responsabilidade! Vai desde o relativismo de Einstein até à crônica musical, se o cronista adoece e as estrelas da ópera gorjeiam. Que dutilidade! Sob a monarquia, atribuiu-se ao Jornal do Commercio o destino de um ministério, e outro não é, ainda hoje, o ministério culminante da opinião pública no mais difícil dos governos – o das idéias sobre as massas. Esse governo representa, na vossa tribuna jornalística, um curso de aplicação dos princípios firmados na tribuna escolar de 1918. Orador da turma dos bacharelandos em Direito, o bisneto do Marquês de Sapucaí já situava os problemas nacionais com o mesmo tato, o mesmo savoir faire do estadista, cujo patriotismo saldou os compromissos financeiros da Independência e obteve o equilíbrio dos orçamentos, impossível milagre nos dias republicanos. Tecendo o elogio dos bacharéis, sob a láurea da formatura, observastes, então, literalmente, por atenuar o vosso panegírico e o nosso receio, que “muitos deles se fazem agricultores, industriais ou comerciantes... Benditos bacharéis!” Sim, devemos bendizer com o mujik Bondareff e o piedoso Tolstoi da fase rural todos quantos lavram a terra e amassam o pão. Mas a virtude específica do vosso discurso não foi o louvor dos bacharéis agrários. Foi a lucidez com que exprimistes o pensamento justo da nova geração: elevar o nível moral dos poderes públicos, enobrecer moralmente as instituições, cuidando sem cessar, as mesmo tempo, da higiene, do crédito, da riqueza, da instrução, do voto, da justiça, dos meios produtores e das armas defensivas, num sistema de realidades sociais e diretrizes correspondentes, firmadas pela técnica do Estado liberal. Nacionalizastes há dezenove anos, assim, o profundo conceito de Le Play: – “A geração que consegue dar ao seu país o pensamento justo, o pensamento coordenador do seu próprio destino, presta-lhe mais serviços do que lhe prestariam outras, anexando províncias inteiras.”

O SOCIÓLOGO-ECONOMISTA

Semelhante justeza de pensamento, quer pela noção jurídica da ordem, quer pelo ideal progressista da unidade brasileira, já imortalizara a plêiade em que sobressaía o vosso egrégio antepassado, Marquês de Sapucaí, poeta das Violetas e estadista da Regência, preceptor e conselheiro de Pedro II. O fidalgo do Império construiu e consolidou a sua obra no terreno das instituições, mas não quero lembrar senão alguns traços de espírito e cultura do retrato, que lhe fez o próprio descendente: – “Era tão sábio, escrevestes, quanto retraído. Poliglota, as principais línguas da Europa e todas as línguas antigas não tinham segredos para ele. Na sua biblioteca se encontrava de tudo e tudo lia e anotava. As perguntas por escrito que o seu imperial discípulo (Pedro II) lhe fez durante tantos anos... versam sobre os mais variados assuntos: questões de hebraico, de grego e de latim, de literatura moderna, de legislação, de prática administrativa ou de teoria política. Jornalista como Feijó... ele próprio escrevia em defesa do seu gabinete. Publicou então artigos que esclarecem definitivamente muitos episódios do seu tempo, das lutas da nossa unificação nacional e da formação econômica do país.”

Atualizando-lhe a fotografia, distanciai-vos do conselho de Estado e das línguas mortas; imaginai com as suas perguntas infindáveis outro soberano – o público – em face de Sapucaí rejuvenescido, em frente à sua erudição, transportada para as colunas do Jornal do Commercio, e tereis aí o bisneto, Vítor Viana. Tereis no lugar do estadista, no próprio serviço do Ministério da Fazenda, o ensaísta do primeiro centenário da independência, que nos deu o – Histórico da Formação Econômica do Brasil. Agora mesmo, deveis sentir nessa continuidade ou metamorfose que o brasão e o solar da progênie se adornam com os lauréis da vitória acadêmica – a do escritor e do livro ardentemente consagrados pelo juízo de Coelho Neto. Recordemos no vosso triunfo as palavras de ouro do Mestre:

Desde quando se dispersa em artigos de primoroso lavor, de fina observação crítica, de erudição vária e sempre profunda sobre os mais diversos assuntos o espírito formoso e dúctil desse escritor de raça? [...] dá-nos Vítor Viana [...], sob o título: Histórico da Formação Econômica do Brasil, uma verdadeira gema de alto valor intrínseco realçado pela forma lapidária na qual resplendem as múltiplas facetas do escritor, tão profundo no estudo quão brilhante na forma.

Assim vos enalteceu a forma e as idéias um príncipe das letras, mas deixemos o elogio ofuscante pela modesta impressão de um leitor. Considerado o vosso livro em aspectos gerais, dir-se-ia que os indivíduos e episódios se apagam na urdidura magistral dos pensamentos: só deparamos aí, encadeados, fenômenos e causas; induzidos, princípios e leis. Tudo se encaminha para uma série lógica de teoremas e demonstrações. Pela primeira vez, mostrastes com o Histórico da Formação Econômica do Brasil:

– que as teorias mercantilistas indicaram aqui à metrópole um protecionismo traduzido em regime de proibição rigorosa;
– que o mercantilismo apressou o progresso da América, fazendo-a diferente, suplantado como foi ele, ao impedir no solo americano as culturas e indústrias européias, por diferenciações agrárias e extrativas da colônia, as quais substituíam os produtos do Oriente e nos asseguravam a clientela da Europa;
– que as doutrinas de Adam Smith e Jean-Baptiste Say precipitaram a independência do Brasil, como de toda a América, não tendo a nossa história crítica e sociológica, mesmo de leve, tocado nessa influência, antes do vosso livro. “A história tem sido feita erradamente, concluís, porque em geral os autores vêem homens, regimes, lutas, mas não vêem idéias, princípios.”

Sob os princípios e as idéias, contudo, reaparece mais energicamente a vida em outras sínteses humanas.
Tanto pode a imaginação neste lugar, não obstante as fórmulas abstratas, que, a despeito de tudo, revejo nos capítulos do vosso grande livro, como reviu Wells na trajetória das civilizações, personificando-as, a complexa aventura emocionante de um homem, através do espaço e do tempo. Livre no seu deserto, o homem da era colonial é o demiurgo do novo mundo: sonho do Eldorado e caça de bugres, em começo; depois, lavoura extensiva na queima das florestas. Ele transplanta da madeira o canavial, de outras ilhas a pecuária, da África a humanidade servil. Faz do presídio o engenho, de algumas reses insulares o rebanho, do negro, do índio e da prole mestiça as cariátides fortes de uma sociedade cristianizada. O intercâmbio desenvolve-se para as suas capitanias, feudos mais tarde unificados, sob o vago absolutismo dos reis de além-mar. No século XVII já o homem brasileiro se define por sentimentos heróicos: o de expansão com que alarga o território, ao Sul, e o de nacionalidade que expulsa do Norte o holandês intruso; no século XVIII, após a descoberta das lavras de ouro e diamantes, ele centraliza a onda migratória, sangue e força plasmando o coração do Brasil. Impavidamente, segue o conquistador da riqueza, através de canaviais apendoados, jazidas auríferas, cafezais sussurrantes. Como que em desafio ao poder metropolitano e ultramarino dos vice-reis, funda a nossa aristocracia territorial, dissipadora e escravocrata, não raro belicosa e altaneira, cujos filhos já instruídos, já diplomados por universidades européias, constituem, afinal, o espírito novo – espírito aberto no princípio do século XIX, por um lado, às ciências naturais e políticas de José Bonifácio, por outro, à ciência econômica de José da Silva Lisboa, espírito não só atraído pelas conquistas do Parlamentarismo Inglês, da Revolução Francesa e da Federação Norte-Americana, mas, também, amoldado ao liberalismo da escola clássica de Adam Smith e de Jean-Baptiste Say. Em 1808, com o Brasil-reino, esse homem coletivo obtém o franqueamento dos portos, a extinção dos monopólios, a liberdade plena das indústrias e do comércio; finalmente, com a independência, verá o predomínio do liberalismo econômico e social no seu país.

Mas poderia o homem brasileiro viver na terra natal sem decálogos próprios? Evidentemente, não. Se os idólatras receberam das mãos de Moisés, por duas vezes, os dez preceitos insculpidos em duas tábuas de pedra, é justo que ele possua, além de outros, o decálogo traçado no vosso livro à sociologia nacional: I. Não há raças inferiores. II. Não há climas hostis à civilização. III. A grandeza dos povos decorre da acumulação nacional de culturas antigas e estranhas. IV. A fortuna de uma nação depende do momento histórico, das condições do comércio mundial e do aparelho técnico. V. Os povos triunfadores são mesclados, possuindo cultura maior que a dos seus vizinhos. VI. O grau de civilização dos povos corresponde às culturas assimiladas e desenvolvidas por esforço autônomo. VII. Os fatores de riqueza variam na dupla escala da técnica e da permuta. VIII. A situação geográfica influi, desde que ela aumente as possibilidades naturais de intercâmbio. IX. O declínio das raças tem a sua causa no decrescimento do comércio e da cultura. X. A fortuna dos povos está subordinada ao equilíbrio jurídico e à disciplina das forças econômicas e sociais.

Nesta súmula de graves conceitos, luminosa e original, quando vos seria muito mais fácil copiar o esquema de Gobineau, o selecionamento de Lapouge ou mesmo o pan-germanismo de Chamberlain, esculpistes a tábua da esperança, a primeira lei moldada pela vontade enérgica do Brasil. Não me associo de todo às vossas idéias: com os biologistas e os seus quadros, tenho a perdoável fraqueza de acreditar nas virtudes inatas da seiva e do sangue, na preponderância visível do cruzamento de tipos superiores em relação às plantas, aos bichos e aos homens. Deixarei intangível, porém, o vosso decálogo, sobreposto aos heptálogos ou dodecálogos com que os reformadores e os contemplativos brasileiros nos edificam. Uns e outros, sim: eu mesmo já perpetrei um decálogo tremendo, que os jornais divulgaram – o da república social de Alberto Torres. Não me arrependo. Entre os passadistas e os futuristas, não vai mal a um homem de letras, depois do meio século, esquecer Marinetti na Itália para imitar Moisés no Sinai. Claro está que os decálogos, com as suas generalizações, eternizam o debate das sinagogas e que só o primeiro deles, com os seus mandamentos, ainda constitui a base das sociedades para Le Play, a base da sociologia para Izoulet. Esse precursor gaulês do poder judaico-espiritual, composto de igrejas e universidades, propagando a sociologia glorificada e santificada por Zangwill na Voz de Jerusalém, a sociologia filha do Decálogo, sugere um golpe de Estado moral, um dogma-fé, um decreto-lei, como se diz agora, tudo isso para inscrever nas escolas da França, em grande livro aberto, desde a cimalha ao teto, os dez mandamentos da lei de Deus. Melhor seria que a humanidade os trouxesse, invisíveis, mas indeléveis, no sagrado recesso da consciência.
Sem golpe de Estado, permanecestes fiel ao vosso decálogo e publicastes, depois do Histórico da Formação Econômica do Brasil, em 1926, o Banco do Brasil, montanhoso volume de 1.036 páginas, onde o espírito pode fatigar-se, às vezes, mas donde se descortina, como nos alcantis, o círculo maior dos horizontes da nossa terra. Desde os tempos acadêmicos, Sr. Vítor Viana, a economia política foi sempre uma das minhas leituras prediletas, e o mecanismo dos bancos, descrito por Charles Gide, mestre da escola cooperativista, um dos meus enlevos de neófito desse curso. Nunca suspeitaria eu, porém, antes de ler o vosso trabalho, que a especialidade bancária pudesse arrebatar-nos aos cimos da própria ideologia nacional.

Civilizar é povoar, já o escrevera Alberdi, lançando as bases do federalismo argentino. Civilizar no Brasil é comunicar, pensastes, e através da barbaria, do caciquismo, da rotina, induzistes que “o problema do sertão é, antes de tudo, comercial e bancário”. Para nivelar num plano de cultura e de riqueza os centros isolados, a vossa física social retomou a lei dos vasos comunicantes. Os destinos do Banco do Brasil, poderoso instrumento desse método nivelador, identificam-se aí com os da pátria, e os deveres bancários são para ele dois imperativos nacionais: robustecer pelo crédito as atividades produtoras; valorizar o meio circulante pela metalização.

Se o tempo não me permite acompanhar-vos ao longo de 1.036 páginas, através de quatro Bancos do Brasil, devo inclinar-me perante a grandeza do último deles, ainda mesmo na fase insolúvel dos congelados. Deus lhe conserve a solidez e preserve o metal com que ele possa reerguer o câmbio e sustentar a moeda, empresa tão fácil, mediante a observância de alguns conselhos vossos, tão simples, ao Brasil econômico e financeiro. Somente, a facilidade e a simplicidade encantadoras dessas regras não acham neste país de financistas (por isso mesmo um país de finanças caóticas), o Estado e o indivíduo temperantes, cautelosos e comedidos, afeitos à parcimônia. Governantes e governados, somos todos mais ou menos pródigos, mais ou menos dissipadores e deficitários, como os senhores de engenhos, que o nosso André João Antonil, há 224 anos, bem contados e mal vividos, repreendeu na Cultura e Opulência do Brasil:

– “Cavalos de respeito mais do que bastão, charameleiros, trombeteiros, tangedores, e lacaios mimosos não servem para ajuntar fazenda, mas para diminuí-la em pouco tempo, com obrigações e empenhos. E muito menos servem as galas, as serpentinas, e o jogo. E por este caminho alguns em poucos em poucos anos do estado de senhores ricos chegarão ao de pobres, e arrastados lavradores, sem terem que dar de dotes às filhas, nem modo para encaminhar honestamente os filhos. Mau é ter o nome de avarento: mas não é glória digna de louvor o ser pródigo.” Com essa prodigalidade vimos sumir-se o ouro colonial; revemos o Brasil financeiro, sob o aspecto ibseniano das grandes casas endividadas. Aliás, na passagem da ordem econômica à ordem moral do vosso livro, não faltam exemplos de sobriedade, equilíbrio e ponderação, consubstanciados nos valores e nas virtudes da elite, que, antes e depois da Regência, desde a infância até a velhice de D. Pedro II, patriarca e soberano, modelou e enriqueceu o Brasil, instituiu o ensino, a literatura, os símbolos e as concepções originais da nossa História, delimitou as fronteiras do Prata, expandiu as culturas agrárias, ergueu a monarquia liberal e estável, quando o furioso tropel do caudilhismo ressoava nas fronteiras. Esperemos que a ciência da conduta, a disciplina do caráter, o desenvolvimento da opinião pública e o eugenismo ascendente da raça em tipos mais nobres recomponham soberbas elites nacionais.

O LIBERAL-DEMOCRATA

Dessa ordem moral do Banco do Brasil, contado um lustro, evolveis para o novo direito público, e os vossos trabalhos sucedem-se agora como revelações da arte de legislar num ciclo tempestuoso. Uma Constituição do Século XX (o Código de Weimar e a moderna Alemanha); A Nova Constituição Espanhola (Liberalismo-democracia); A Constituição Inglesa (O liberalismo e os partidos políticos); A Constituição Austríaca (A nacionalização do poder e a representação de classes); O Regime Fascista e a Democracia (A utopia reacionária e as realidades brasileiras); A Constituição dos Estados Unidos (As lições de uma longa experiência. Federalismo norte-americano e federalismo brasileiro).

Compreendestes que era tempo de lançar nas alturas da inteligência um protesto, sem dubiedade, contra os poderes ilimitados e opressores, o extremismo nacional da direita e o extremismo internacional da esquerda, a velha ditadura dos ricos e a nova ditadura dos pobres. As vossas monografias admiráveis, onde o pensador investiga e resume o Direito Constitucional de vários povos, não desenvolvem apenas teses versadas com autoridade por um jurista-sociólogo, orientado excepcionalmente no dédalo ou no turbilhão, que é o mundo europeu-americano, depois da grande guerra. Além do professor, dissertando sobre a matéria do curso, há em quase todas essas páginas o lidador, batendo-se pela sua doutrina, pelo seu ideal, pela sua fé – o liberalismo – com inesgotável, redobrado vigor expositivo e demonstrativo.

Embora me seja impossível pormenorizar convosco todos os movimentos e conquistas liberais, desde as origens anglo-saxônias e multisseculares da Magna Carta, deferida no século XIII, bem podemos encontrar-nos os dois, Sr. Vítor Viana, à sombra dos vossos livros, após a Reforma, a Renascença e a Revolução Francesa. Que avistamos nos fundamentos e nas culminâncias da cidade moderna senão a batalha do espírito livre, em sucessivas gerações, contra o feudalismo dos nobres, o dogmatismo dos padres, o absolutismo dos reis, e agora o capitalismo dos plutocratas? É lutando pelos direitos do homem, sobre a ruína de privilégios inumanos ou de autocracias degradantes, que se elevam as sociedades, emancipadas, na relatividade necessária do seu aperfeiçoamento, na consciência iniludível das suas limitações. Mas nesses limites, gradualmente afastados, vemos elaborar-se todo o progresso das ciências positivas, da filosofia crítica, das artes, das indústrias e do comércio, difundir-se o império de todos os valores máximos – higiene, instrução, beleza, conforto e solidarismo, – através do mundo ocidental, cujas formas políticas se renovam e se democratizam com incessante energia no século XIX. O coro popular, segundo a frase do eminente Bourdeau, ocupa daí por diante a boca da cena. – “Os antigos protagonistas, reis, ministros de Estado, cingem-se agora ao papel subalterno de intérpretes da sua vontade.” E a vida moderna, como os novos bens desconhecidos pela multidão servil de outras épocas, é uma conquista dos liberais – a sua dádiva ao futuro. Como já o dissestes, eloqüentemente, e apraz-me repetir nesta imperfeita democracia sul-americana, o liberal da escola inglesa é sobretudo um homem de consciência: – “Sendo rico, deu direito ao pobre; sendo nobre, reconheceu a força do povo; sendo anglicano, proclamou a liberdade das outras igrejas; sendo produtor, votou a liberdade de comerciar e de produzir [...] Nunca foi um egoísta. Despertou o povo, os povos, as raças para reivindicar os seus direitos.”

Sim, tendes razão: com o exemplo dos Estados Unidos e os princípios de 89, foram despertadas as populações da América do Sul por essa voz libertadora, esse fiat libertas. Já o sentimento da autonomia pessoal, desconhecendo na América inexplorada as mesmas restrições de vassalagem, andara sempre unido às aventuras ou descobertas da nossa imensidade. Mais tarde, o espírito da independência brasileira aprende a ler, politicamente, folheando os textos do liberalismo ocidental, e a nossa democratização é bem o fenômeno de cultura das elites, que tiveram por mestres os publicistas, os economistas liberais, impregnados como estavam de Blackstone e Adam Smith os leaders da monarquia, de Bryce e Hamilton os da república, uns e outros embebidos no parlamentarismo inglês ou no federalismo norte-americano.

Historicamente, sempre nos foi odioso o cativeiro em qualquer das suas formas. A liberdade tinha o valor de uma palavra mágica nas revoltas coloniais do Norte e do Sul; fizemos da emancipação dos silvícolas e dos africanos duas longas cruzadas; batemo-nos contra as ditaduras hispano-americanas; despedimos do governo os heróis, que se colocavam fora da lei; execramos ainda hoje o poder pessoal de oligarcas e tiranetes, caciques e interventores. Nada subleva tanto o coração brasileiro como o arbítrio de um homem, civil ou militar, sobre a existência dos seus concidadãos.

Em boa hora, num país de tradições e estatutos, sentimentos e campanhas liberais, insurgiu-se a vossa mentalidade contra o erro das ideologias extremistas, mais ou menos desvairadas no caos revolucionário. Se o egocentrismo capitalista vai sendo condenado por toda a parte, e a humanidade sedenta de justiça nos envolve como a atmosfera ou nos arrasta como o planeta, encadeados por lei de gravitação irresistível, não foi essa conseqüência humanitária da própria democracia, quer pelo industrialismo assoberbante, quer pela força representativa do voto popular? O estado de saturação democrática, em países modelares a exemplo da Grã-Bretanha, quase determina um estado de socialização econômica indireta, mas incontestável, sem catástrofes, sem horrores, evolutivamente, pelo jogo das atividades legais. Todos querem ali maior justiça no direito das coisas; ninguém aceitaria menor liberdade no domínio inviolável das pessoas. E como se define a alma jurídica do Brasil, desde as nossas origens, sob o influxo de tais princípios, não concebeis que ela se desintegre e resvale, ensandecida ou fanatizada, para a intolerância demagógica do Estado totalitário ou do Estado proletário, modalidades do pseudo Estado novo, o mais obsoleto dos Estados, com ilusórias vestimentas hodiernas, patenteando no mecanismo da sua economia dirigida, no seu exclusivismo partidário, na engrenagem do seu aparelho marcial e compressor, tantas outras variantes do poder absoluto, inerentes à barbaria, incompatíveis com a civilização.

Porque a civilização moderna, conforme evidenciais aos leitores (e deviam ler-vos com afinco, a esta hora, todos os jovens brasileiros), não se arraiga solidamente fora da liberdade. Ainda que ela conserve os instrumentos da riqueza, manejados pelos autômatos da tirania, e as aparências de um progresso quimérico ou de uma paz vacilante, sob o terror, nada supre a falta dos valores morais, dos atributos perdidos com a liberdade de consciência, de pensamento, de manifestação oral e escrita. Se o estado de necessidade ou anarquia das massas, após tremendos flagelos, ocasiona regimes de exceção, volta o espírito livre a irradiar, cedo ou tarde, sobre o rumo dos grandes povos. Quando os facciosos ou os pedantes vos dizem que não há lugar no mundo para os liberais, abris o mapa-múndi, em resposta, e apontais serenamente a Grã-Bretanha, a França, os Estados Unidos, a Suíça, a Holanda, a Bélgica, e os países escandinavos, os domínios britânicos, a geografia das terras civilizadas. Abris uma por uma as constituições da nova Europa e assinalais a vitória do liberalismo em todas elas. Máculas do Sol não o degradam; eclipses do Sol não o apagam na trajetória infinita.

Experimentando a crise universal, mas desconhecendo as crises orgânicas do pauperismo, da guerra e da superprodução, a fereza e a inveja exacerbadas na luta das classes, os temores e as catástrofes sociais, que impeliram outros povos à renúncia da liberdade, não voltemos os olhos, hipnoticamente, para a extrema direita ou a extrema esquerda, tanto vale dizer para os ciclos pretéritos e as formas extintas, ressuscitadas por demagogos e autocratas. Olhemos convosco a civilização, da qual nasceu o Brasil, e a democracia, em que ele trabalha e espera. Se há princípios de socialização nacional, unificadores, que me apartam dos vossos conceitos ultrafederalistas, posso deixar-vos o meu irrestrito aplauso em outro domínio, onde o liberalismo e o socialismo não se entrechocam, valendo o primeiro como força de inspiração ideal, o segundo como força de inspiração prática, no dizer de Carlo Roselli. Humanamente sentimos que a liberdade é o supremo direito, adquirido pelo sacrifício de outras gerações, exercitado no âmbito das leis para o nosso próprio desenvolvimento coletivo, de sorte que o destino dos indivíduos autônomos, não obstante a hierarquia necessária, se revele em cooperação fraternal. Ainda somos dois liberais, Sr. Vítor Viana, enquanto não sois único, recitando alguma tradução, mais ou menos livre, dos vossos queridos alexandrinos hugoanos:

Não restam senão mil? Lutarei, sobranceiro.
Cem? Desafio ainda o tirano e os escravos.
Se apenas somos dez, sou o décimo dos bravos.
E, quando houver só um, serei o derradeiro.

Assim o último dos civilizados acabaria, com as formas superiores de coexistência jurídica, no isolamento do seu desterro. Entre os perigos de que se rodeia, a civilização já foi comparada a uma ínsula, batida pelo oceano tempestuoso. Configurando nela um arquipélago, não ficaríamos longe, talvez, da realidade atual: dessas ilhas encantadas e efêmeras, como as civilizações do Egito, da Grécia e de Roma, abismam-se umas no escarcéu da mesma barbaria, alteiam-se outras na explosão dos incêndios, outras acendem faróis tremeluzentes, sob um velário de brumas, ou apenas emergem das ondas procelosas. Entre o nevoeiro dessa perspectiva e o sobressalto deste momento, assistimos convosco “ao maior embate da História”.

Estaremos acaso na iminência evocadora de uma daquelas culturas perdidas, amortalhadas para os vastos campos de ruínas, sobre os quais desfilam hoje, nebulosamente, os fantasmas da literatura alemã de Eugen Georg? Prefiro deixar aos necromantes literários o caminho das necrópoles e ater-me à clareza dos sistemas de lógica. Nem sempre devemos tomar os vocábulos progresso e progressividade, já ensinou Stuart Mill, como sinônimos de aperfeiçoamento e de tendência à perfeição. Bem pode acontecer que as leis da natureza humana determinem certos desvios, certas mudanças aparentemente inexplicáveis do homem e da sociedade ou mesmo necessitem de tais imperfeições. Para outros pensadores ainda mais reservados, ante as lacunas da nossa perfectibilidade, há tanto progresso como regresso na evolução dos grupos humanos e o eterno conflito do homem com a Natureza, com os semelhantes e consigo próprio faz de cada período um tormento coletivo. Esperemos com Stuart Mill, porém, que se defina a tendência geral para um estado de maior liberdade e perfeição.

Lá fora as ondas rebentam, acachoantes e ameaçadoras. Mas no embate ainda sobrepairam, como sentistes, as idéias em que se cristaliza tudo quanto repassa de fraternidade, justiça e doçura o coração dos homens – as graças helênicas, o cristianismo, a filosofia clássica e a filosofia moderna, a solidariedade humana, a democracia liberal, o socialismo construtor. Lidando por elas, assegurais em meio da batalha que a civilização há de triunfar, sob as asas dessas vitórias incruentas. E para o vosso triunfo pessoal, desde já, ilumina-se a Casa de Machado de Assis, eminência das letras, instituto e ofício de homens livres, pois que os fundadores desta Academia, definidos pelos seus ideais, não compreenderiam o culto da arte sem a paixão da liberdade, comunicada ao espírito moderno, em vibrações de oratória fremente da ágora, pelo gênio estético e social do povo ateniense.

AUGUSTO DE LIMA

Ocupais neste momento a poltrona deixada por Augusto de Lima, o extraordinário poeta das Contemporâneas e dos Símbolos, das Laudas Inéditas e de S. Francisco de Assis, em verdade um grande poeta, que foi um espírito liberal, como o vosso, por vezes militante, por vezes organizador, invariavelmente fecundo, e que viveu dentro do corpo mais robusto a mais enérgica das vidas na magistratura, no professorado, no jornalismo, na política e no governo da terra natal.

Remontando pela ascendência à bandeira dos sertanistas e desbravadores, cuja intrepidez varava as brenhas, feria os montes, em busca das lavras auríferas ou dos ribeirões por onde faiscassem diamantes, ele nascera montanhês, perto do rio das Velhas, entre as baraúnas seculares, quase predestinado à mesma velhice alterosa, orgulho de uma selva ou de uma pátria. Homem das serranias, como que a Natureza lhe vincara o tipo moreno, ao sol dos chapadões, na rigidez informe do sílex ou do ferro, escondendo as cintilações de ouro e cristal da sua magia interior. Ele ouvira na infância as lendas minerais do Brasil subterrâneo e o pausado canto monótono dos bateeiros, que esfarelavam a ganga bruta nos morros do planalto de Congonhas do Sabará ou o leito de cascalho virgem dos rios, à cata de metais e gemas. Quando menino, andara léguas de sertão, cada manhã e cada tarde, por soletrar num banco de escola, remotíssima, o alfabeto do idioma português. Subiu para as letras e para a glória: formigão do Colégio Caraça, o seminarista fez-se mestre de latim e eloqüência; calouro em São Paulo, tornou-se mestre de Direito e poesia, celebrado nove anos depois do trote acadêmico, em 1887, no esplendor meridiano das suas Contemporâneas, por Teófilo Dias e Raimundo Correia, Lívio de Castro e Araripe Júnior.

Descendente de mineradores, garimpeiro ele próprio dos arquivos mineiros, como historiógrafo, a rebuscar e extrair o minério precioso das suas datas, esse homem dos alcantis foi acima de tudo um poeta, sentindo e pensando harmoniosamente o universo. Transposta a meninice, o pequeno andarilho dos sertões, crescendo, iniciado agora no latim do poema De rerum natura, sistema de átomos do cosmo e de forças do gênio, andava léguas de caminho estelar, pelos visos da inspiração lucreciana, com a musa dos campos nativos, donde borbota ainda hoje uma cascata de ouro para o Brasil. Musa sombria chamou-lhe Augusto de Lima; sombria e grave, por vezes, foi chamada também a de Lucrécio; mas ambas esplenderam pelas imagens e pelos ritmos, guardadas as necessárias proporções, entre o poema da Natureza e a ilha de coral do nosso poeta, o cenário de uma cordilheira e a miniatura da Lagoa do Prata, ondeando ao vento, sob os leques das suas palmeiras aquáticas e esbeltas.

Alma lírica, perpetuando a emotividade criadora de arte, em face do mundo e através da vida, exaltada pelo sonho; alma panteísta, reconstituindo por estrofes a “unidade concêntrica dos seres” e o misterioso processo de transformação universal, Augusto de Lima não reviu, contudo, nesse panteísmo o seu destino, como Lucrécio não achou no epicurismo senão a tristeza, que lhe sugere na desordem atômica do mundo e na degradação da matéria a fuga dos seres mortais, em ciclos dolorosos:

Sic rerum summa novatur
Semper, et inter mortales mutua vivunt.

O autor das Contemporâneas plasmara em vibrantes composições a poesia científica e a poesia social. Mas no liminar do século XX, quando as ciências vitoriosas culminavam, o poeta dialogou com a esfinge – Psique intraduzível no reino dos sábios, que lhe não decifram jamais o enigma. Salteada pela dúvida, entretanto, a sua mentalidade não se regela: o pessimismo dele, como o dos fortes louvados por Nietzsche, prende ao arco a seta de ouro apolínea do meio-dia e ei-lo fremente de coragem, dizendo à vida: – sim! à morte: – não. Desiludida em face dos seus ídolos, ao entardecer, a musa de Augusto de Lima ainda retém nos olhos magnéticos a luz impagável da mocidade, na lira os acentos com que poetizara o dever, a justiça, o bem, a concórdia, o trabalho, o amor universal. E ao cair da noite, enfim, perpassa nas sombras como Belkiss, pelo deserto, com os tesouros, e perfumes, e segredos de rainha lendária, que volta da magia para o desencanto, do noivado para o isolamento:

Sangrei meus lábios de beijar quimeras;
cegos de ver miragens tenho os olhos,
e de abraçar o vácuo os braços rotos!

Cedo ou tarde, porém, todos encontram a sua Beatriz Teológica (dizia Eça de Queirós), mesmo na poeira do boulevard. Senhor da métrica e da música, temperamento auditivo da família sonora de Orfeu, o poeta brasileiro encontrou-a no caminho dos heróis e dos cisnes – Lohengrin ou Parsifal. Subjugou a crise pessimista num trecho de ópera lírica – um daqueles trechos wagnerianos, que ele gostava de cantar aos amigos, em surdina – e evolveu para o misticismo do poema final – São Francisco de Assis – com a melodia simples e casta da hiperdulia:

Santa Maria dos Anjos,
Mãe de Deus, Nossa Senhora,
da Porciúncula alma e luz;
sê do poeta inspiradora,
embebe-lhe o estro na aurora
do doce olhar de Jesus.

Nessa claridade e nesse misticismo de aurora cristã, despediu-se dos nossos corações Augusto de Lima, como viajante madrugador, que se alongasse da terra, modulando o Cântico do Sol no seu derradeiro alvorecer. Até aos setenta e cinco anos de idade, foi sempre o mesmo andarilho matinal das eminências, bravo e rijo companheiro, que parecia esquivar-se ao tempo e rejuvenescer, mais alegre cada manhã, para inveja das sombras efêmeras e das vidas crepusculares. O poder do talento, da memória e da vontade enobrecia-lhe a robustez, verdadeira blindagem natural de um atleta, já intelectualizado pela cultura e ungido pelo cristianismo. Relembrando-lhe o vigor e a alegria, escreveu Humberto de Campos: “[...] estávamos certos de que ele viveria um século.” Por mim, esperava que ele tivesse a lira encordoada para dois séculos harmoniosos. Ai de nós! Cronos é um deus inexorável, e Augusto de Lima partiu mais depressa do que supúnhamos, depois de haver glorificado nas alturas o Sol e entre os homens a liberdade contra o absolutismo, que se engrandece com toda a pequenez ambiente, diminuindo os seus tristes vassalos:

Tu, Liberdade, não! Planeta sempre novo,
tens o engaste no céu da consciência humana;
por isso, a tua luz serena e soberana
se eleva tanto mais quanto mais alto é um povo.

Ao insigne poeta da liberdade, fonte de renovação histórica, nascente de glórias artísticas, sucede aqui um dos mais fortes e destros paladinos da nossa democracia. Neste recinto das belas formas literárias, servidas e amadas por todos nós, podeis igualmente acompanhar-nos, Sr. Vítor Viana, laureado como os demais no mesmo culto, representando contra os embustes e espectros, que passam com o despotismo, a beleza suprema das idéias liberais, que vencem e ficam.