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Visconde do Rio Branco

                                 AO AMIGO AUSENTE

                                        Primeira Carta

                                                              Corte, 22 de dezembro de 1850.

 

Prezado amigo e Sr. - A falta de letras suas me tem sobremodo inquietado, e, não podendo atribuí-la a moléstia, só encontro a causa de mal tão sensível a esta mísera criatura na inconstância com que Vm., qual Judeu Errante, não toma pé em terra alguma deste brasíleo império. Devo ao Jornal do Comércio este meio, que de hoje em diante seguirei para transmitir-lhe a salvo notícias desta corte, que tão vivamente lhe interessam. Li em um artigo do Jornal dos Debates, cuja tradução aqui se publicou, que alguns britânicos espertos, para escaparem à finta do correio, em vez de cartearem-se, correspondem-se por meio dos jornais em anúncios de tal sorte redigidos , que são para os profanos verdadeiros enigmas. Aproveitei da idéia o que ela tem de mais simples e inocente, sujeitando-me a maior porte, o da impressão, mas segurando por este modo as minhas cartas, que lhe chegarão às mãos sem que levem sobrescrito, e onde quer que Vm. esteja, graças à ubiqüidade de que também goza este gigante da nossa imprensa. Se até aqui, na mais íntima confiança da amizade, eu não entregava ao papel meus sentimentos e idéias acerca dos homens e das coisas políticas desta terra, em que aliás vimos ambos a luz, devassada como fica a nossa correspondência doravante, só como historiador de fatos tocarei em matéria que se refira à bifaceira política do belo, fértil, mas infeliz Brasil. A crônica do que nesta pequena Babel se passar de mais notável e divertido, e que puder ser tirada à luz sem ofensa da moral e da decência pública, e sem perigo para o incógnito cronista, é o assunto sobre que versarão as minhas missivas a datar desta, que, nem por ser a primeira, escapou aos meus inveterados hábitos de escrever tarde, e, portanto, muito de afogadilho.

Um fato, que profundamente comoveu-me, e ainda aperta o coração de muitos amigos e conhecidos, que são numerosos, é a morte prematura do Dr. Francisco Júlio Xavier, lente da cadeira de partos da Escola de Medicina desta corte, um dos seus primeiros clínicos, incontestavelmente o mais hábil parteiro do império. Simpático, dotado de espírito agudo, de uma expressão clara e elegante, de temperamento o mais fleumático, indiferente às grandezas transitórias deste mundo, o Dr. Júlio captou a estima e consideração de todos os que tiveram ocasião de com ele praticar. Como criatura humana, tinha seu lado fraco, que é de esperar mereça de Deus a indulgência que os próprios homens lhe não recusavam. Sua clínica era das mais rendosas, mas viveu sempre precisado, o mais modestamente possível, e deixou sua família na indigência, de que só a gratidão e a generosidade dos amigos a poderão resgatar. No momento em que a vida se lhe mostrava mais segura, bem disposto, vigoroso e alegre, de volta da casa de um amigo em que cuja festividade doméstica havia tomado parte, a morte acometeu-o uma congestão cerebral, e em pouco mais de uma hora triunfou de existência tão preciosa ou fosse porque assim estivesse escrito no livro dos destinos, ou fosse por erro de alguém que primeiro lhe acudira em caminho e o conduzira até ao seio da família, entre a qual expirou, sem outro lenitivo que um mudo e expressivo adeus aos cinco filhinhos, que iam ficar em mísera orfandade.

A morte do Dr. Júlio veio dar-nos mais uma prova do que valem neste mundo as qualidades que em tão subido grau ele possuía. Ninguém lhe recusou uma expressão de dor, uma lágrima de saudade. O mais puro e odorífero incenso tem sido queimado em torno de seu túmulo, por inúmeros poetas cujas produções correm impressas neste e nos demais jornais e periódicos desta cidade. Mas não era este o único e mais valioso que a memória do ilustre finado devia esperar dos amigos e da generosidade pública, cinco inocentes órfão saí estavam entregues à indigência, e estéreis seriam a compaixão e a saudade que ante quadro tão chocante se limitassem a lágrimas e elogios póstumos. Uma subscrição está sendo agenciada por alguns amigos do célebre parteiro entre os quais se distinguem como principais coletores o Sr. Francisco de Paula Brito, bem conhecido como tipógrafo e poeta, e o Sr. Dr. José Maurício Nunes Garcia, colega do finado por mais de um título como professor da Escola de Medicina, e como acreditado parteiro. Além deste auxílio, promoveu-se um benefício para os cinco órfãos no Teatro de S. Pedro de Alcântara, o qual teve lugar na noite de 20 do corrente. O concurso excedeu do ordinário, e sendo de esperar que as jóias dos camarotes e cadeiras se elevem acima do preço fixo, o produto do benefício provavelmente corresponderá aos esforços dos seus filantrópicos diretores e à religião do fim para que é destinado.

Bem poucos, e pela maior parte fracos negociantes, são os franceses que aqui existem no Rio de Janeiro, e, todavia, feridos nos mesmos afetos, sua filantropia e patriotismo se manifestaram de uma maneira assaz recomendável. Tributaram todas as homenagens de consideração moral às virtudes e serviços do muito conhecido Dr. Sénechal, mas não pararam aí; valeram a sua filha, que ficará sem recursos, com o produto de uma coleta, para a qual contribuíram também brasileiros, e que subiu à não pequena soma de dez contos de réis. No cemitério da Gamboa foi inaugurado segunda-feira próxima passada um simples e tocante túmulo de mármore, assentado sobre uma lápide, e cercado por quatro cadeias que se prendem a outras tantas colunas de pedra. Sobre a lápide desse túmulo lê-se a seguinte inscrição, que recorda os louváveis sentimentos dos amigos daquele distinto médico, que, como Dr. Júlio, gozava de numerosas simpatias:

 

AU DOCTEUR SÉNECHAL
MEMBRE DE LA LÉGION D’HONNEUR
SES AMIS RECONNAISSANTS.

Nós esperamos que os fluminenses que sem esse edificante exemplo outrora procederam tão cavalheira e generosamente para com a família do Dr. Otaviano da Rosa, agora não ficarão aquém da fraternidade e gratidão dos franceses.

Estamos presentemente em tempo de férias, e, portanto, na quadra característica da zona tórrida que habitamos. As escolas já se fecharam: e nas duas academias militares, na de Medicina, e no Colégio de Pedro II até os exames e conseqüentes bacharelatos e doutoramentos estão concluídos. Temos mais 37 médicos investidos do direito de curar ou matar, oito engenheiros militares e um poder de bacharéis, com os quais todos bem se poderia criar uma povoação no interior de nossas províncias. Mas, a julgar pelos precedentes, uns e outros por que se deixarão ficar, prejudicado-se mutuamente, e engrossando as fileiras do corpo de aspirantes aos empregos públicos. Felizmente, se devo crer no que por aí dizem, daqui em diante o gênero bacharel obterá mais consumo nos empregos de fazenda, e mesmo nos das secretarias de Estado em geral.

Os alunos do templo de Hipócrates deram uma sentimental demonstração pela perda do seu ilustre mestre o Dr. Júlio, a quem alguns haviam tomado por paraninfo de suas teses. Não só, segundo me referiu alguém que o podia saber ao certo, se não prestaram para tornar solenidade do doutoramento igual em brilho às destes últimos anos, como, depois de terem recebido a investidura hipocrática, dirigiram-se para o cemitério de Catumbi, onde repousam os restos mortais daquele insigne médico e sobre sua humilde campa depositaram uma capela de jasmins e saudades. Alguns dos membros da faculdade acompanharam os novos doutores nessa efusão de tão nobres e patéticos sentimentos.

Disse-lhe que estávamos em férias, mas não pense que só me refiro ao mundo escolar. A política também parece estar de verão. O Brasil cessou de publicar-se por tempo indefinido, e por circunstâncias imprevistas; as outras folhas políticas não se mostram muito fecundas. Mas isto é nada; o que me convence de que a política cairá em completa pasmaceira é o receio que os calores de dezembro vão incutindo, e a presença da febre amarela, ou coisa que o valha, na cidade de Campos. Até alguns ministros vão tomar ar, o que, não só confirma aquele meu prognóstico, senão ainda revela que os temores de guerra externa se esvaeceram, bem que continuem as medidas preventivas. O Ministro da Fazenda, J.J. Rodrigues Torres, retira-se com licença para sua fazenda; o da Guerra vai gozar a branda temperatura das Paineiras; o da Justiça, já lá está no Engenho Velho; o do Império passa-se para o Jardim Botânico, e o de Estrangeiros para o Macaco. Se a nau do Estado não corresse por mares calmos e conhecidos, os timoneiros estariam mais próximos ao leme, e mais atentos ao tempo e à agulha.

A família imperial vai passar o verão em Petrópolis.

Sinto dizer-lhe que a Comissão de Higiene Pública, cuja criação tantos discursos parlamentares e antiparlamentares custou ao Tesouro, ainda se não constituiu. Ontem é que se espalhou, não sei com que dados, a nomeação do Dr. Francisco de Paula Cândido para presidente da cuja. Dr. Paula Cândido foi um dos campeões do projeto de lei de salubridade pública, e passa por um dos nossos mais hábeis químicos. Seja quem for o nomeado, Deus queira que alguma coisa se faça para aquele fim, que interessa a todos. É altamente notável que nenhum passo mais se desse desde que cessou o terrível flagelo, cujos efeitos, aliás, ainda sofre o comércio. Essa inação somente se explica pelas dificuldades que em nosso país o individualismo a tudo opõe.

A polêmica Ferraz-Leopoldo-Ferreira, etc. ainda continua, e, a falar a verdade, com fastio geral. Os serviços e os erros do inspetor da Alfândega estão mais que muito discutidos; a discussão nada mais de sério pode apresentar, e vai degenerando em chufas e doestos que nem acreditam aos que socorrem-se a tais meios, nem podem ofender o alvo a que são atirados.

[...]

O comércio desta praça há pouco tempo que se acha sob a ação dos novos regulamentos e decretos. A bondade destes ainda não pode ser sentida, nem se tornaram visíveis os seus senões. Mas a opinião dos negociantes bem intencionados e probos é que a nova legislação comercial há de trazer-nos benefícios muito reais, sendo de esperar que o governo se mostre dócil em matéria de tanta gravidade e que só as indicações da experiência podem tornar completa. A Junta dos Corretores, que, como sabe, é composta de cinco membros eleitos por todos os que legitimamente pertencem a essa classe, representou há algum tempo contra certo corretor, que, segundo essa, lhe faltara com o devido respeito. Qualquer que tenha sido o motivo, provavelmente a longa fieira de informantes por que passam tais negócios, o certo é que a representação não foi ainda decidida pelo governo. Em conseqüência deste fato, os membros que compõem a junta atual recusaram a reeleição; e o motivo da escusa sendo conhecido, os que se lhe seguiram foram sucessivamente esquivando-se, de sorte que a nova Junta de Corretores que deve servir no ano próximo ainda se não pôde organizar.

A Comissão da Praça do Comércio esteve ameaçada de sofrer igual contratempo. Não tendo aceitado o encargo os membros brasileiros que primeiro foram eleitos, nem os seus imediatos em votos, força foi proceder a uma nova eleição, e obtiveram maioria de votos os negociantes Teófilo Benedito Otoni e Antônio Gomes Neto.

Por hoje aqui o ponto final, adotando por assinatura o sinal dos cristãos, com que afugento as tentações, e que, demais, é também aquela de que se valem os analfabetos, que pouco menos são do que este seu ingênuo amigo e muito humilde criado.

 

                                      DÉCIMA-NONA CARTA

                                                                 Corte, 19 de abril de 1851

Está quase a desaparecer a Semana Santa, em que, a par da sincera devoção, tantas profanações se praticam, tantas ridicularias aparecem, que revoltam a um consciencioso cristão e tiram o siso ao mais austero beato.

Não sou dos que melhor podem apreciar o ranger de um vestido de sarja, as oscilações de um brinco de brilhantes, as pregas duvidosas de um véu pudibundo, as palpitações de um seio de alabastro entredescoberto e oculto. Embirro com o desgracioso capote e lenço com que se cobrem certas beatitudes, ou alguma devota menos socorrida; embirro tanto ou mais com as roupetas de que certos janotas se apavoram, entretanto que assim ficam transformados na pública-forma de um sacristão.

Mas o que sobretudo me causa quase invencíveis frenesis é ver pelas ruas uma casaca envergonhada de se achar sobre os ombros de um desgraçado, profano, ouvir os queixumes patéticos de umas luvas pretas impostas, a umas mãos asselvajadas, e a estrangulação voluntária de alguns pintalegretes numa gravata infinitamente apertada.

Que se façam versos ao divino, que se ore devotamente na igreja, que tome luto a cristandade em solene comemoração da paixão de Cristo, penso que é um dever imperioso para uns e uma missão sagrada para outros. Mas que as romarias se transformem em passeios de ostentação profanas, que a devoção degenere em folia e as casas do Senhor se convertam em salões de aparatos e vaidades humanas; que se proscrevam todas as regras do bom senso, que se atente contra a verdade dos mistérios da nossa crença é certamente não só para lastimar, como até para fazer admirar até onde chega a vaidade de uma carolice, que, se é sincera, não é de certo esclarecida pala leitura dos livros sagrados.

Há um ano que a população fluminense terrificada por uma cruel epidemia, ferida em suas mais caras afeições, mal pôde dirigir-se aos templos para orar pelo Senhor e por aqueles que a morte acabava de roubar-lhe. As ruas eram quase ermas, e as igrejas poucos fiéis contavam em seu seio nas horas de fervor religioso.

Este ano a mudança não podia ser mais completa. O flagelo deixou-nos, e queira Deus que para sempre; um céu azulado, um luar como dia, uma fresca brisa, paz e tranquilidade geral, tudo convidava à romaria e às práticas religiosas.

Dar-lhe-ia todos os meus remanescentes destes últimos dez anos, e até. se o possuísse, todo o império do Grão-Mogol, se me enviasse pelo primeiro correio um termo com que para outra vez lhe pudesse pintar o atropelo em que a multidão de fiéis e curiosos invadiu os templos abertos nas noites de quinta e sexta-feira santas, e principalmente o paço imperial. Deste até a igreja de S. Francisco de Paula, pelas ruas Direita e do Ouvidor, era tal a massa negra que se movia em todos os sentidos, que quem do alto de qualquer edifício lhe fitasse os olhos, julgaria ver em noite tempestuosa encapeladas ondas como que em mal ferida luta esforçando-se por mergulharem-se reciprocamente.

Aqui gritava um ancião pela filha, que se desgarrava do rancho. Ali era a mãe ou a tia que gritava “para onde olhas Henriqueta? Vê se te esbarras com algum valdevino!” Acolá era a moça que clamava pelo lenço ou pelo leque, que mão ligeira gafara, e ela julgava ter deixado onde para descansar ajoelhara. Mais adiante era uma esperta beleza que se fingia atarantada, e a ponto de ser levada pela torrente, para sorrateiramente empalmar, e rapidamente guardar na algibeira, uma epístola sentimental, engraçada em essência e destinada a sossegar as palpitações impacientes de um coração apaixonado.

No paço apenas caiu a noite, foi saguão invadido pelo turbilhão que em tal ocasião é admitido - assim desencadernadamente - aos salões do monarca. Era a entrada pelas portas que olham para o mal seguro aterro, que em vez de cais a ilustríssima ali fez construir, e pelas duas que lhes ficam laterais. Três vezes tentei subir, três vezes fui repelido! Da primeira estorvaram-me as sentinelas, parodiando o mui conhecido brado da velha guarda: on ne passe pas, porque o monarca ainda não havia saído. Da segunda tive medo de asfixiar-me pelo condensado de cologne que exalavam corpos de descomunais volumes e que nessas ocasiões surgem só eles sabem donde. Da terceira recuei espavorido pelo arreganho de um bravo de bigodes, que trazia dois estreitos galões nos punhos da farda, a razão à cinta, e duas damas a reboque: arremetendo e acotovelando homens e senhoras, abria espaço aos medonhos gritos de licença, meus senhores! licença, meus senhores! Veni, vidi, vinci, disse ele por certo às suas Dulcineias quando as tinha posto a salvo e em segura praça; e de feito, mostrou no paço que era tenente! Mais cinco como este nas fileiras do nosso exército, e adeus Rosas, adeus Palermo e seus fuzilamentos.

Um respeitável ancião que ali esperava aberta para satisfazer a curiosidade de suas filhas, tendo podido arrancá-las ao furor do nosso Cesar, dizia muito comovido: “É a na morada da paz e do respeito que se veem estas coisas!”

Eu que também levava pelo braço a minha Eva a quem procuro poupar, porque sei quanto me ela custou, desviei-a com o maior cuidado, e resolvi procurar alguma brecha manos defendida para penetrar na sitiada fortaleza. Em boa hora o fiz, porque num esfregar de olhos pisávamos o abafador tapete, e entrávamos nas salas em que tantos passos se têm perdido.

Enquanto uns contemplavam o trono com respeito, e outras lhe punham a mão por cima a ver se era coisa viva, a avidez ou a inveja destes lançavam vesgos olhados às baixelas, e a coquetterie daquelas se espanejava diante dos espelhos; eu desenganado de possuir aquelas, e desavindo com estes por sua inconstância, fitava os olhos nesse banco, nesse jarro e nessa bacia, que ainda ali davam testemunho da santidade da religião que faz o chefe de uma grande nação depor a majestade, e curvado aos pés de doze pobres lavá-los, e assim provar praticamente que

         "O homem favor e ajuda ao homem deve,

         Mútua beneficência os entes ligue."

Estes três instrumentos resumiram em meu espírito toda religião da Bíblia! E mesmo teria tempo de recordá-la literalmente, porque a turba que me precedia estava presa pelo encanto, e julgava-se no paraíso, aquecida a uma temperatura de 90 graus que lá havia, tão pouco se adiantava! Vencida, porém, a distância entre a porta da entrada e a da saída, caí outra vez no torvelinho das praças e ruas, não sem calcular quanto me levariam o médico e o boticário pela constipação já com tanto custo adquirida; e da qual, mercê de Deus, logo curou-me a marcha forçada com que me recolhi a quartéis.

Quando, antes de fazer pazes com Morfeu, passava em revista de minha imaginação o que tinha visto, ainda não podia crer como escapamos incólumes, eu, minha cara metade e nosso fato de ver a Deus!

Ó! é uma maravilha de que nenhuma das mais civilizadas cidades da velha Europa poderia ufanar-se: trinta mil pessoas pelo menos, de todas as idades e condições, abalroar-se em noite escura sem que uma só fosse molestada, ou visse arrebatar-lhe uma arrecada da orelha, de tantas de ricos brilhantes que haviam é um fato que só se dá no Brasil, e que altamente depõe em favor da doçura de nossos costumes, da riqueza ou do bem-estar dos habitantes desta terra abençoada.

Vinha agora a pelo, mas não falarei mais das miríadas de luzes e da prataria que nos templos deslumbravam os visitantes. Não insistirei nesse mau gosto, nessa religiosa patacoada, que faz da casa do Senhor uma feira de leiloeiro, que adorna os altares e as banquetas com a bacia, o jarro, a salva, o castiçal, que no uso doméstico serviriam para tanta coisa oculta, e areadinhas vão chamar as vistas que só deveriam elevar-se às imagens do Redentor e dos Santos.

         “São modas que vêm com o tempo,

         O tempo as acabará.”

Demos agora um salto de Leucates e vamos banhar-nos às margens do Uruguai. Tendo traçado-lhe as feições da semana, descrito-lhes suas cenas mais divertidas e episódios mais importantes, seja-me lícito entrar um pouco pelo mundo político, subir aos Andes, e das regiões do condor americano observar as riquezas do nosso continente e as desgraças dos nossos vizinhos.

Mas não saltemos de chofre, que correríamos o risco de não vencer o espaço; ganhemos terreno, tomemos carreira de mais longe.

As últimas notícias recebidas do Rio da Prata apertaram o coração de todos os que o tem suscetível de impressões generosas. E se antes as desavenças do império com a fera dos Pampas era objeto que a muitos preocupava, a narração dos novos horrores, coincidindo com a saída da esquadra brasileira, e com a aproximação da abertura da assembléia geral, fez subir de ponto a ansiedade pública a esse respeito.

Que novidades de política interna e externa nos trará a nova sessão legislativa? Apanhará o ministério grande temporal pela proa, levantado mesmo pelos seus Bóreas? Triunfará dos elementos? O que fará a oposição?

Não estou habilitado, cá no meu remoto tugúrio, para responder a nenhuma dessas perguntas, que são o tema político da atualidade; e nem tenho oráculo a que possa recorrer. Direi, porém, quais são as conjeturas de um velho que observa o mundo através de um microscópio, e o que eu próprio nas minhas tímidas excursões hei podido colher.

Que o ministério tem desafetos, senão também inimigos dentro dos seus próprios acampamentos, não é preciso muito para o saber; basta atender a que já é um velho de mais de trinta meses e portanto com todos os senões e achaques da sua, para nós, longa idade. Mas o que também é certo é que o velho tem muito amor à vida, e é muito acautelado para que se deixe morrer de morte macaca.

Em todo o caso, a política atual não sucumbirá, poderá sofrer modificações de forma e restrições no seu desenvolvimento; porque nem os ventos sopram noutro sentido, nem a oposição anti-saquarema se mostra desejosa do poder (antes parece olhar para ele com horror), e nem é moralmente possível que um novo corpo ministerial da mesma têmpera se formasse sem que nele entrasse, pelo menos, um dos membros do atual.

A honra do partido dominante, e mais do que isso, a honra e os interesses do império exigem que a cabeça que concebeu e principiou a dar execução à nova política brasileira concernente à grave questão do Prata seja a mesma que a dirija até ao seu completo desenvolvimento.

Será muito difícil que esta alta consideração de Estado não abafe todos os ressentimentos que possam existir no seio da família ministerial, tomada esta palavra na sua mais larga acepção política. Consta que alguns desses ressentimentos acham-se muito exaltados e ameaçam explosão: mas não há dúvida de que eles derivam de causas muito insignificantes em relação aos inconvenientes de qualquer desvio na direção dada à política sul-americana, e, bem que eles sejam por si sós impotentes, ante a consideração do apoio moral que assim receberia o nosso inimigo externo.

Três dissidentes, como os mais decididos, dão corpo a essas apreensões que nutrem certos ministeriais de que possa haver entre eles algum escândalo, ou ao menos alguma desagradável querela de família. Quem tiver viva a recordação de certos fatos ocorridos o ano passado nas duas casas do parlamento, quem souber a história de certa administração provincial, e se tiver apercebido de certas manifestações que a imprensa desta cidade há meses revela, não levará muito tempo para atinar com os três indivíduos a quem me refiro.

Por outro lado, qual será o comportamento da diminuta fração oposicionista da Câmara temporária? Não é ela tão diminuta como o foi o ano passado, porque reforça-se com um distinto orador da oposição paulistana, e pode ganhar mais um membro conspícuo da província de Minas, outro do Rio Grande, e com mais probabilidade, um da província da Bahia. No primeiro caso ficará com sete combatentes, no segundo seu número poderá chegar a dez.

Mas não é natural que a oposição parlamentar esteja possuída dos mesmos sentimentos de concórdia, ou pelo menos de moderação, que caracterizam a fisionomia política da quadra atual? Debatidas as grandes questões que o acontecimento de 29 de setembro de 1848 originou, tendo já as paixões obtido largo curso ao seu desafogo, não é muito provável que comece o domínio da razão, e com ele venham as reparações dos estragos causados por uma luta das mais renhidas e desastrosas?

E quando o tempo e seus desenganos não tenham ainda operado a cura moral dos espíritos e extinguido o fogo das odiosidades, quando a tendência utilitária da época não esteja tão generalizada como suponho, a situação do império em relação ao estrangeiro não será incentivo mais que forte para reter em seus impulsos o oposicionista mais ardente?

E minha opinião a guerra entre o império e o tirano de Palermo é inevitável. Ele conta que as dissensões internas, o alucinamento de certos patriotas, virão em seu auxílio, e produzirão resultados análogos aos de 1827 e 1828. Qualquer, porém, que seja a opinião dos adversários do governo sobre a marcha que tem seguido nossa política exterior, no estado a que chegou, não é moralmente possível que haja patriota tão apaixonado que não veja a humilhação a que exporia o país, os transtornos que lhe causaria, se sua voz se elevasse para condenar essa política. Não é evidente que esse procedimento, contra as mais puras intenções de quem o tivesse, seria um apoio indireto prestado ao inimigo do Brasil, ao flagelo das populações do Prata e seus confluentes? A nossa questão com Oribe, tenente do ditador de Buenos Aires, é uma questão de segurança para o presente e para todo o sempre; é uma questão de progresso e civilização para nós, para nossos vizinhos, para a humanidade em geral. Que brasileiro, sem estar possuído de um fanatismo que me custa a compreender seja possível, se atreverá a contrariar o governo do seu país em emprenho tão sagrado?

[...]