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Viriato Correia

                         A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA

- Assisti tudo e tudo, dizia-me o velho Joaquim Gonçalves, uma tarde em que conversávamos na varanda de sua casa em Santa Teresa. Conheço a proclamação da República como testemunha visual. Eu era, como ainda sou, republicano. Sabia de tudo e tudo acompanhei.

- Conte-me isso.

- A história da proclamação da República ainda por aí muito embrulhada. Contam-na sem a verdade exata, apesar de ainda haver hoje vivas muitas das figuras principais do movimento. Quer ouvir-me?

- Com todo o prazer.

- No começo do mês de novembro de 1889 sentia-se que a Monarquia estava profundamente abalada. A propaganda da República havia chegado ao seu ponto culminante. Benjamin Constant, Quintino, Deodoro, Lopes Trovão, etc., eram os homens do dia. Para não me alongar começarei da véspera do célebre dia 15, em que o trono foi posto abaixo.

Ao anoitecer de 14, corria na rua do Ouvidor a notícia da prisão de Benjamin e de Deodoro. Dizia-se que o governo, considerando esses dois militares perigosos ao regímen, mandara-os encerrar numa fortaleza. O boato era falso. Tinha-o espalhado o major Sólon, com o intuito apenas de precipitar os acontecimentos. A coletividade republicana, com o boato, ferveu nas ruas, nas redações dos jornais e nos quartéis. Os batalhões sublevaram-se. Pela madrugada os chefes da propaganda tiveram que ser acordados em suas casas, para vir à rua comandar o movimento. Ao amanhecer de 15, a coluna revolucionária, tendo Benjamin à frente, descia a Rua Visconde de Itaúna em direção ao Campo de Santana. Nas proximidades do gasômetro, Deodoro, que passava de carro, uniu-se à tropa. O velho marechal voltava do quartel do 1º Regimento de Cavalaria, onde não mais encontrara a força para comandar. Ao dobrar a Rua Visconde de Itaúna para o campo de Santana, Deodoro salta do carro e monta o cavalo do alferes Eduardo Barbosa. Era já dia claro. A frente da coluna vai entrando no campo. No ângulo da estação da estrada de ferro estão colocados batalhões dos imperiais marinheiros e da polícia da corte que o governo ali mandara estacionar, para repelir a força revoltosa. O chefe revolucionário vai passando. Quer a polícia, quer os marinheiros não sabem o que fazer. Ele interpela-os violentamente:

         - Então não fazem continência?

O major Valadão, que comandava a polícia, gritou um viva ao levante. O batalhão inteiro correspondeu-o.

O Visconde de Ouro Preto, chefe do gabinete, tinha reunido no quartel do campo de Santana os generais do estado-maior do ministro da Guerra. Sabia que as forças revolucionárias marchavam para ali, e era urgente uma medida, urgentíssimo que se enviassem tropas para bater os rebeldes em caminho. Floriano Peixoto, o Barão do Rio Apa, o Visconde de Maracaju, todos os generais, dissuadiram-no. As forças do quartel não se podiam mover de maneira tão rápida.

E quando Deodoro se postou com os seus batalhões defronte da fachada do quartel, o Visconde, nervoso, tornou a reunir os generais. Não se tomava medida alguma? Não se desajolavam aqueles homens dali? Não havia meios e forças para os pôr fora?

         - Não, respondeu Floriano.

         - Não, confirmou Maracaju.

         - Não, foi também a resposta do Barão.

Ouro Preto percebeu tudo. A revolta estava ramificada pelo quartel adentro, pelo exército inteiro. Não podia confiar numa só farda. Resistência não havia nenhuma possível.

E sentou-se para redigir o telegrama em que depôs nas mãos do Imperador, em Petrópolis, o pedido de demissão do gabinete.

Às 8 horas da manhã, Deodoro, terminando de dispor a tropa, vai colocar-se com Benjamin e com o seu estado-maior em frente ao portão central do quartel general. Quintino Bocaiúva chega, a cavalo, para unir-se às forças da revolução. Dentre a soldadesca, ao aparecer o jornalista, há brados, vivando a República. Deodoro, contrariado com os vivas, agita o braço e ordena silêncio.

Lá de dentro do quartel mandam-lhe dizer que a metralhadora que o governo ali colocara para combater a sublevação, está às suas ordens. Pouco depois o chefe do movimento conferencia com o brigadeiro Almeida Barreto, que volta a colocar-se à frente das forças do governo. Ordena ao tenente coronel Silva Telles que suba ao quartel para intimar o ministério, que lá dentro está reunido, a abandonar o seu posto. Minutos mais tarde Floriano Peixoto vem conferenciar com o marechal revolucionário.

São 9 horas da manhã. O governo lá em cima parece que se não decide a deixar o poder. Deodoro está impaciente, todos estão agitados. O velho soldado tem um gesto resoluto. Com o seu estado-maior e um piquete aproxima-se do portão, que se conserva fechado. O capitão Pedro Paulo abre as duas imensas portas de ferro. Deodoro entra a galope quartel adentro. Ao passar em frente à metralhadora que lhe tinham mandado oferecer, ordena ao oficial que a comanda:

         - Tirem daqui este trambolho.

Segue em direção do 7º Batalhão de Infantaria, que ali está para combatê-lo, e manda a música tocar. Um capitão do 7º grita um viva ao velho marechal e a tropa inteira o aclama. Todas as forças que estão dentro do quartel vivam o chefe revolucionário. Há um ruído ensurdecedor de músicas e brados festivos.

Lá dentro, na sala em que está reunido o ministério, ouve-se tudo aquilo silenciosamente, trocando olhares. Ouro Preto acaba de verificar, com mais segurança, que não tem ninguém ao lado do governo. O próprio Floriano, com quem o ministério tanto contara, revelara-se um conspirador.

Passam-se alguns minutos dilaceradores.

No pé da escada aparece Deodoro com o seu cortejo. Os ministros esperavam-no. Ao entrar na sala, o velho soldado saúda ligeiramente com a cabeça a Maracaju:

         - Adeus, primo Rufino!

A sala tinha-se enchido num segundo; militares, titulares, políticos, homens do povo e um único jornalista, o repórter da Gazeta de Notícias, rapaz que eu conhecia de vista.

Deodoro encaminha-se para o presidente do gabinete. Era um silêncio de esfriar. O chefe revolucionário, com uma eloquência que ninguém lhe conhecia, começa a falar. Ali estava, à frente do exército, para vingar as injustiças inexplicáveis que o governo vinha fazendo ao soldado brasileiro.

         - À armada também! repete Deodoro.

E continuou. Estava doente, estava de cama, mas ao saber que os seus camaradas queriam que dirigisse aquele movimento, teve forças para levantar-se do leito. Não era homem que temesse perigos, pois só temia a Deus. As afrontas que o exército, e também a armada, - acrescentou ao novo aparte de Benjamin - vinham sofrendo do governo chegavam ao seu termo. Estava ali para não mais consenti-las. Não se compreendia que homens políticos, que só cuidavam de interesses pessoais, maltratassem os soldados, os verdadeiros, os únicos defensores da pátria. Ele, que ali estava falando, crescera e se fizera, não pisando as pedras das ruas do Rio de Janeiro, mas nos campos de batalha, ao zunir das balas e ao troar dos canhões. Tinha serviços que o Visconde, como simples político, nunca podia compreender e avaliar. Durante três dias e três noites, para aludir ao acaso a uma passagem da sua vida militar, combatera no Paraguai, dentro de um lodaçal, com água pelos joelhos. Eram serviços que lhe davam direito a chefiar o levante que tinham por fim acabar com as diminuições que se faziam à honra do exército.

         - Está o ministério deposto, conclui. Vamos organizar outro, de acordo com as indicações que vou levar ao Imperador. Os ministros podem retirar-se.

E apontando o Visconde:

         - Menos o senhor e menos o ministro da Justiça, que ficarão presos, a fim de que, sejam deportados para a Europa.E passeando pela sala, no meio do silêncio geral:

         - O Visconde é teimoso, mas eu sou muito mais teimoso que o Visconde.

Ouro Preto ouve tudo silenciosamente, sem um gesto, numa impassibilidade de nobreza ofendida, agitando o trancelim do pincenê. E, quando Deodoro não tem mais nada que dizer, fala:

         - Não é só no campo da batalha que se serve à pátria e por ela se fazem sacrifícios. Estar aqui ouvindo as suas palavras, neste momento, não é menos penoso que passar alguns dias e noites num pantanal.

E antes que o outro retruque:

         - Fico ciente do que resolveu a meu respeito. É o vencedor, pode fazer o que lhe aprouver. Submeto-me à força.

Até ali não se tinha ouvido uma só palavra, a mais vaga alusão à República. O que havia era justamente o contrário, era a declaração de Deodoro de que ia levar ao Imperador as indicações para o novo ministério, que ia organizar com os seus companheiros do movimento.

                                               ***

         - Depois disso, continuou o velho Joaquim Gonçalves, Deodoro retirou-se para a sua residência. Estava seriamente doente. Tinha estado de cama nos dias anteriores e da cama se levantara para chefiar o movimento.

Ao chegar à porta de casa, ali mesmo no Campo de Santana n. 99, fraquejavam-lhe as pernas e doía-lhe o corpo. Aquilo fora uma imprudência para a sua saúde.

Para subir as escadas de sua casa teve que apoiar-se aos ombros de dois homens.

A esposa, Dona Marianinha, veio recebê-lo à porta do quarto e, vendo-o naquele abatimento, alarmou-se, mandando fechar imediatamente a cancela da rua. Ali não lhe entraria ninguém para visitar o marido!

Nas rodas republicanas a decepção era horrível. O movimento tinha sido feito com o fim único de derribar o trono e, em momento nenhum, Deodoro falara em República. Sempre aquela história da deposição do ministério!

Que se devia fazer? Aproveitar o levante para dar a República como proclamada? Não seria perigoso? Não seria impossível?

As ligações de Deodoro com o Imperador eram as mais estreitas e o monarca talvez tivesse meios de dominar o velho soldado, invocando a sua antiga fidelidade.

Naquela situação de mãe de São Pedro é que se não podia ficar. Seria o ridículo estrondoso, a vergonha irremediável.

Estavam os republicanos reunidos no campo da Aclamação n. 17, no Instituto dos Cegos, que Benjamin Constant dirigia.

Para muitos deles, o trono estava logicamente derrubado. Que importava que o chefe da insurreição não tivesse aludido à República, se a insurreição fora, um movimento de republicanos?!

Havia necessidade de tomar-se uma medida pronta e decisiva. E que medida seria essa? O manifesto da República, a única.

Mas ninguém se decidia. Os propagandistas olhavam-se, entreolhavam-se, aos grupos, cochichando. O cair da tarde ia enchendo a sala de sombras.

Benjamin levantou-se. Estava visivelmente fatigado das vigílias da noite anterior e das impressões violentas daquele dia. Levantou-se e, encaminhando-se para uma das portas, disse com um bocejo:

         - Estou muito cansado, vou tomar um banho morno.

O coronel Jaime Benévolo, que estava sentado a dois passos, ergueu-se de súbito, atravessando-se-lhe à frente, tomando-lhe a passagem numa energia surpreendente:

         - Não! O senhor não toma banho nenhum. Vamos, sim, redigir o manifesto da República e organizar o ministério!

Benjamin caiu em si. Realmente era preciso fazer-se alguma coisa. Era quase noite e nada ainda se tinha feito para firmar o caráter do movimento.

E veio sentar-se à mesa. Os camaradas de propaganda cercaram-no. Redigiu-se o manifesto, lavraram-se as nomeações.

Aquilo devia ser levado a Deodoro para ser assinado. Com os papéis na mão, Benjamin perguntou no meio da sala:

         - Quem leva isto ao velho?

Jaime Benévolo adiantou-se:

         - Eu!

E partiu. Era já noite fechada.

À porta do chefe revolucionário a luta foi tremenda. Estava fechada a cancela, ninguém a podia transpor. Eram ordens de Dona Marianinha. Benévolo teve que empregar violência para chegar ao quarto do enfermo. Deodoro, numa crise de dispneia, sofria, com a esposa ao lado, a agitar-lhe uma ventarola.

Jaime Benévolo expôs-lhe a situação. O velho soldado repeliu o manifesto e os decretos de nomeação dos ministros. Não, não! Ele não faria aquilo.

O emissário, porém, não era homem de esmorecer. Pintou impressionantemente o ridículo que ia cair sobre a cabeça dos militares e sobre toda a propaganda republicana. Embora ele, Deodoro, não tivesse falado em República, todo o mundo sabia que aquilo era um levante de republicanos. Já corria pela cidade que a República havia sido proclamada...

         - Não! não! repetia o velho. O ministério já não existe; amanhã vou falar ao Imperador.

Benévolo não se dava por vencido. Amanhã, quando se soubesse que a revolta conseguira apenas derribar o ministério, e não o trono, como era o desejo de todos, ninguém levaria a sério o exército. E o ridículo maior cairia sobre ele, Deodoro, como o chefe da tropa. Ninguém conseguiria convencer o país de que o movimento não tinha sido feito para proclamar a República...

Ou por se ter convencido, ou por se ter cansado, Deodoro começou a amolecer. Benévolo insistia. Mostrava a necessidade de aproveitar-se a vitória para um feito grandioso, mostrava o glorioso papel que o velho militar teria na história do futuro. Àquela hora, no paço, o Imperador cercado dos seus estava a organizar o ministério sob a indicação de Ouro Preto.

         - Mas é o Ouro Preto quem vai indicar o seu substituto? perguntou o marechal escandalizado.

         - É! Já indicou o Silveira Martins!

Deodoro ergueu-se. O ministério de Silveira Martins seria a mesma coisa que o de Ouro Preto! O soldado, o verdadeiro defensor da pátria, continuaria diminuído, humilhado... Não era possível! Era um abuso! E falou, falou, falou. E quando, com um novo acesso de dispneia, acabou de falar, Benévolo passou-lhe às mãos os papéis.

         - Uma pena, pediu o velho para dentro.

Trouxeram-lhe a pena e o tinteiro. Assinou a proclamação da República e a nomeação dos primeiros ministros do novo regímen.

Nas rodas monárquicas o desnorteamento não era menor. Chamado com urgência de Petrópolis, D. Pedro II descera, para o paço cercado das figuras eminentes da monarquia.

Ouro Preto apresentou-lhe a demissão do ministério. E como o Imperador lhe pedisse a indicação do seu substituto, o Visconde lembrou o nome de Silveira Martins. Ficou assentado que Silveira Martins chefiaria o novo gabinete.

Era já noite e ninguém, no paço, imaginava que o golpe daquela manhã tivesse fins republicanos. Unicamente a deposição do ministério.

A não ser a entrada e saída das grandes figuras da monarquia, nada havia de anormal nas vizinhanças do paço. Às 9 da noite entrou o Conselheiro Saraiva para falar ao Imperador, e só saiu às 11. Até essa hora não se tinha podido reunir o Conselho de Estado. Só depois das 11, o Conselho se reuniu. D. Pedro nada sabia ainda do manifesto de Deodoro. O conselheiro Andrade Figueira pô-lo então a par de tudo. Acabava de saber pelo seu genro, o major-de-engenheiros Roberto Trompowsky, que os propagandistas haviam conseguido que Deodoro transformasse a revolta numa vitória da República. Estava proclamado o novo regímen.

Aquela notícia faz prolongar a reunião. O Imperador parece não acreditar na queda do trono. Em vez de Silveira Martins, resolve confiar a chefia do gabinete ao Conselheiro Saraiva. São quase duas da madrugada. Saraiva, chamado com urgência, vem imediatamente. Aceita o gabinete, mas em primeiro lugar precisa saber as intenções de Deodoro. Vai escrever-lhe uma carta e, pela resposta, saberá se é verdade ou não que ele proclamou a República.

Senta-se e escreve ao chefe revolucionário, comunicando-lhe que estava encarregado de organizar o novo ministério, mas que o não queria fazer sem com ele entender-se. E conclui convidando-o a vir ao paço no dia seguinte.

O major Trompowsky, a pedido do sogro, vai levar a carta a Deodoro, no campo da Aclamação. São três da manhã. À porta do proclamador há guardas. O major consegue ser levado ao quarto do novo chefe de Estado. Deodoro lê a carta. Nada tem que responder. Já havia proclamado a República!

         - Proclamei-a sem sangue, sem desacato à família imperial, para evitar que mais tarde ela fosse feita de modo contrário.

E o velho Joaquim Gonçalves concluiu:

         - Foi assim que se fez a República. Eu vi tudo. Eu sabia de tudo.

                                                         (Contos da História do Brasil, 1921.)

              

                MINHA TERRA, MINHA CASA E MINHA GENTE

O povoado em que eu nasci era um dos lugarejos mais pequenos, mais pobres e mais humildes do mundo. Ficava à margem do Itapicuru no Maranhão, no alto da ribanceira do rio.

Uma ruazinha apenas, com umas vinte ou trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores e nada mais. Nem igreja, nem farmácia, nem vigário. De civilização a escola, apenas.

A rua e os caminhos tinham mais bichos do que gente. Criava-se tudo solto: as galinhas, os porcos, as cabras, os carneiros e os bois.

Vida pacata e simples de gente simples e pacata. Parecia que ali as criaturas formavam uma só família. Se alguém matava um porco, a metade do porco era para distribuir pela vizinhança. Se um morador não tinha em casa café torrado para obsequiar uma visita, mandava-o buscar, sem cerimônia, no vizinho.

A melhor casa de telha era a da minha família, com muitos quartos e largo avarandado na frente e atrás. Chamavam-lhe a Casa Grande por ser realmente a maior do povoado.

Para aquela gente paupérrima, éramos ricos.

Meu pai tinha umas duzentas cabeças de gado no campo, uma engenhoca de moer cana, uma máquina de descaroçar algodão e uma casa de negócios, em que vinham comprar moradores até de quinze ou vinte léguas distantes.

Não havia no lugarejo ninguém mais importante do que meu pai. Era tudo: autoridade policial, juiz, conselheiro, até médico.

A sua figura inspirava respeito; a sua presença serenava discórdias. Se havia uma desordem, mal ele chegava a desordem acabava. Bastava que desse razão a uma pessoa, para que todo o mundo afirmasse que essa pessoa é que estava com a razão. Os seus conselhos faziam marido e mulher, desunidos, voltarem a viver juntos. Ninguém tomava um remédio sem lhe perguntar que remédio devia tomar.

Era um homem inculto, mas com uma inteligência tão viva que se acreditava ter ele cursado escolas. E, ao lado disso, uma alma aberta, franca, alegre, jovial e generosa, que fazia amigos ao primeiro contato.

Nossa casa vivia cheia de gente. Gente da família, gente do povoado, gente de fora.

Meus pais eram padrinhos de quase toda a meninada dos arredores e o maior prazer de minha mãe era criar.

Se uma das suas comadres morria, deixando filhos pequeninos, ela, a pretexto de que as madrinhas devem ser segundas mães, ia buscá-los para que não morressem de abandono e de fome.

Às vezes, pela porta adentro, nos entravam verdadeiras braçadas de fedelhos, enchendo os quartos de alaridos e de berros. E minha mãe os criava com os mesmos cuidados e os mesmos carinhos com que criava os filhos.

Os “gaiolas” (vaporezinhos de roda que faziam a navegação do rio) paravam no povoado para se abastecer de lenha e para embarcar e desembarcar mercadorias e passageiros.

Não sei por quê, os fazendeiros do sertão, quando tinham de tomar passagem para a capital, preferiam aquele porto insignificante. Rara era a semana em que não chegava gente de fora à povoação.

E, como a nossa casa era a maior de todas, era nela que eles se hospedavam.

No interior do Brasil a hospitalidade é um dever sagrado que se cumpre religiosamente. Nossa casa vivia apinhada de criaturas estranhas, vindas de longe.

Às vezes, tarde da noite, ouviam-se rumores no terreiro. Eram hóspedes pedindo pousada.

Ao hóspede que chega não se pergunta de que precisa. Quem vem de longe, através de caminhos difíceis e desertos, certamente tem cansaço e fome. Necessita de alimento e de cama.

À nossa porta, ora à meia-noite, ora mais tarde, chegavam frequentemente dez, doze, quinze pessoas desconhecidas. A essa hora acordavam meu pai e minha mãe para mandar fazer comida para os hóspedes.

Em certos dias, ao amanhecer, eu despertava num quarto que não era o meu e no meio de um punhado de crianças. É que nem sempre havia redes, para todas as pessoas de fora. A família desalojava-se: dormiam duas ou três pessoas juntas, para que não faltasse boa acomodação aos estranhos.

Em outras ocasiões, quando os hóspedes chegavam o “gaiola” havia passado na véspera. Só havia outro, dez ou quinze dias depois.

Dez ou quinze dias ficavam famílias inteiras em nossa casa, morando e comendo tranquilamente.

Ao se despedirem apertavam a mão de minha mãe, apertavam a mão de meu pai, dizendo-lhes “obrigado” e nada mais.

É que nada mais lhes era permitido. No sertão do Brasil, quem perguntar o preço da hospedagem ofende aquele que a deu.

A hospitalidade por lá é uma religião e ninguém se furta a um dever religioso.

                                (Cazuza, memórias de um menino de escola, 1938.)