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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Carlos de Laet

SENHOR D. Silvério:

Tudo é extraordinário nesta vossa entrada para a Academia: extraordinário, admirável, quase diria estupendo, se não receasse empregar um epíteto demasiado forte nesta Casa de expressões moderadas e comedidas.

Se elevadas posições sociais – o que aliás não afirmo – acaso têm favorecido algumas candidaturas a esta douta companhia, não assim convosco sucedeu. Muito ao invés disto, vossa alta dignidade prelatícia, indissoluvelmente ligada à fé que ambos professamos, parecia contraindicar-vos aos sufrágios de vários acadêmicos infelizmente dissociados do grêmio católico.

Por outro lado, vossa grande anciania – porque sois um pouco menos jovem do que eu – igualmente se afigurava empecilho num país de precocidades, em que os pais de família se julgam roubados quando lhes não alvorecem doutores os filhos imberbes, e onde aos trinta e cinco anos já se pode ter assento nesse conselho de anciãos, que é o Senado da República.

Finalmente, Senhor Dom Silvério, vossa incorrigível modéstia e excessivo retraimento, pondo-vos fora do contato e do bulício do mundo, claramente de vós fazia o mais impossível dos candidatos a um posto para cuja obtenção, ad instar do praticado em França, é condição indispensável a solicitação do interessado.

De todas essas dificuldades, porém, com seu tino superior, louvável tolerância e pertinaz energia, zombou a Academia Brasileira de Letras, que por minha boca vos está falando. Cultora assídua do belo, soube ela compreender que a religião também é uma bela cousa. Em vez de aguardar a vossa iniciativa, pediu-vos que aspirásseis a ser um dos nossos. Ao vosso modesto escrúpulo ponderou haver certas honras que não é lícito recusar, pois tanto enaltecem o distinguido quanto o ideal que ele representa. E para tranqüilizar a vossa velhice mandou-vos ao encontro alguém que de vós, na idade, não muito se distanciasse, e, no tocante às idéias, vos assegurasse que neste habitáculo das letras a tolerância (de pessoas, note-se bem, que não de princípios) não é somente uma virtude, mas uma exigência impreterível para serenidade em nossos debates, mesmo naqueles que mais nos encandecem, isto é, os da questão ortográfica.

Há mais ainda para demonstrar o caráter excepcional da vossa entrada. Quando fostes proclamado membro efetivo, um frêmito de jubiloso alvoroço percorreu as fileiras acadêmicas. Todos se reputavam felizes podendo chamar-vos colega, e em muitíssimos semblantes se estampava o desejo de ser o indicado para a grande honra de receber-vos. Como não ignorais, à presidência, logo após a votação, compete nomear o orador. Terrível o embaraço em que então me achei! – e já tencionava empregar o antigo processo da eleição de el-rei Saul, o sorteio (processo eleitoral abandonado, mas que ainda hoje teria suas vantagens, evitando muito despeito palavroso, e até remessa de tropas), queria apelar, ia eu dizendo, para o sorteio, quando de um ateniense, perdido em nossa vasta metrópole, partiu singular alvitre, tão singular quão inesperado. O Sr. Afrânio Peixoto, esse o proponente, sugeriu, e unanimemente foi aprovado, que desta feita não fosse o presidente quem nomeasse o orador, mas a Academia quem ao presidente intimasse a honrosíssima tarefa.

Quis relutar, ponderando exação na observância dos Estatutos... Mas em vão.  Havia um precedente, o de um genial antecessor, que aceitara idêntico encargo, embora depois não o pudesse desempenhar. O precedente em nossa terra, Sr. Dom Silvério, é formidavelmente imperioso. Entra nos tribunais; decide nos conselhos políticos. Em havendo um precedente, tudo se legaliza e fica salvo... Submeti-me, pois, ao precedente, e salvos me ficaram o direito de saudar-vos e a grande honra que disso me provém.

Notai bem, Sr. Dom Silvério, quantas argúcias podem caber numa proposta de ateniense. Às vossas palavras sempre bem meditadas não responderiam estuosas apóstrofes, arriscadas hipérboles, vivas enargueias de algum paredro entusiasta. Maior perigo, outrossim, não haveria, quanto ao dogma e aos costumes, na pálida, mas cautelosa resposta de um antigo escrevedor católico... E, por fim, reservadas a outros acadêmicos as recepções difíceis, ao mais débil e fatigado se deixaria a fácil incumbência do vosso elogio.

Sim, Sr. Dom Silvério, porquanto, ainda que todos na Academia sejamos imortalmente célebres, não vale negar que muito entre nós varia essa qualidade que pedantescamente denominarei – receptividade acadêmica. Por figurar um bom exemplo, suponhamos o caso de um dos mais difíceis de receber, e seja o de quem ora vos dirige a palavra. Imaginando-se que eu não fosse um dos primitivos e já todo feito não tivesse vindo dos remotos tempos da monarquia, – que trabalhão não fora o de quem me houvesse de receber! Que afanosa busca nos jornais onde esparsos, sepultos e merecidamente olvidados jazem os meus pobres artigos! Que esforços para justificar como fui julgado digno deste alto posto! Convosco, porém, absolutamente não... Tudo se aplaina, tudo se explica, tudo se evidencia.

Efetivamente, só insensatos desconhecem, no movimento social do nosso Brasil, a relevância do influxo católico. Cego decerto seria quem nesse influxo não descobrisse a brilhante galeria de varões apostólicos, que é o Episcopado Nacional. Nem olhos teria de ver quem nesse grupo de beneméritos logo não divisasse o Arcebispo de Mariana. Assim, por um conjunto de circunstâncias, em cujo centro figura o vosso grande mérito, nada mais fácil do que saudar-vos, quando, como régios batedores, vos precedem fama e renome, e guarda de honra vos fazem sessenta anos de serviços à religião e à pátria.

Em todo discurso qual o que há pouco proferistes, e embevecidos ouvimos, há, Sr. Dom Silvério, um arcabouço comum. Sem falarmos dos acessórios adornos de pensamento e de estilo, é preciso que o novo acadêmico algum tanto se ocupe do padroeiro da sua cátedra, e com certa longura trate do seu imediato antecessor. Desse duplo encargo maravilhosamente vos desempenhastes.

Com relação ao patrono da vossa Cadeira, fostes devidamente justo. Joaquim Caetano da Silva é o tipo desses brasileiros sisudos, circunspectos, austeros, cuja fôrma parece haver-se perdido no tumulto das revoluções. Pessoalmente o conheci quando ele era Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte, de 1861 a 1867, quadra em que no Colégio Pedro II fiz o meu curso de Letras. Com seu porte majestoso e basta cabeleira reproduzia uma dessas figuras que emolduradas vivem séculos nos quadros antigos. Era um literato, um poliglota, um diplomata e, mais que tudo, um patriota. Dele se pode afirmar que foi um dos precursores da conquista do Amapá; e, antes que sobre esse litígio secular se houvesse travado a derradeira pugna sob a chefia de Rio Branco, já em profundíssimos estudos e alentados volumes tinha Joaquim Caetano firmado o nosso direito.

Quando, Sr. Dom Silvério, a justiça histórica, tardia, mas inevitável, tiver decidido que para a glorificação do segundo Rio Branco não bastam as placas de ferro de uma avenida; quando em uma das nossas praças públicas se erigir a estátua do grande homem que tornou o Brasil, em território, maior do que jamais fora – então no pedestal do monumento hão de figurar duas nobres efígies: uma, a de Joaquim Caetano; e também a de Teixeira de Melo, que foi consócio nosso, menos conhecido, porém não menos eficaz preparador de outra incruenta vitória – a do Contestado das Missões.

Vosso imediato predecessor, Sr. Dom Silvério, na Cadeira que hoje vindes ocupar, foi bem feliz em vos ter antecedido. Com máxima solicitude, com aquele esmero que pondes em todas as vossas obras de caridade, perlustrastes cuidadoso os escritos do notável jornalista e atraente orador que ele soube ser, e neles descobristes o quantum satis para a todos os espíritos generosos – e entre eles requeiro um lugar – levar a convicção de um cristianismo que passara talvez despercebido, mas que ora já não o está, depois que sobre ele projetastes o luminoso feixe da vossa crítica. Inquisidor benévolo, aí sublinhastes solenes profissões de fé, clarões de esperança, suavíssimos arroubos de piedade. Vossos esforços em tal sentido eu os considero coroados de pleno êxito; e tanto me convenceram que de modo nenhum me sorririam, neste lugar e nesta ocasião, as penosas funções que nos processos de canonização cabem ao advocatus diaboli – funções aliás necessárias, e absolutamente não desairosas, como não o são as dos órgãos do ministério público nos juízos criminais. Delas entretanto abro mão, Sr. Dom Silvério, primeiro porque, como já disse, não há resistir à vossa demonstração; e, depois, porque altamente me sensibiliza o afeto com que estudais os homens, não investigando culpas para as acusar, mas esmerilhando bondades para abençoá-las.

Fui contemporâneo e franco adversário do vosso antecessor; terríveis e sem tréguas os combates em que nos empenhamos; mas pronto me acho para, diante de seu túmulo, abater a minha espada e fazer-lhe continência, desde que, com a vossa grande autoridade, nos dais a segurança de que ali, naquela sepultura entreaberta, repousa um pensador cristão.

Assim esgotado, Sr. Dom Silvério, este delicadíssimo assunto, permiti que, não como vosso conselheiro, que não ousaria ser, mas pela íntima confiança que deve reinar entre confrades nas letras, eu vos ponha de sobreaviso quanto a futuros julgamentos relativos a jornalistas e políticos, e notadamente a políticos jornalistas.

Pelo seu diuturno contato com as turbas, essa espécie de letrados adquire uma curiosa natureza psicológica. Eu já me explico.

As revoluções, que se jactam de ter acabado com a tirania dos príncipes, engendraram nas multidões outras e mais poderosas tiranias. Isto, aliás, é humano, e já o tinha previsto esse grande gênio que foi Shakespeare. Quando, na sua tragédia Julio César, o povo, amotinado, sabe que fora morto o ambicioso ditador, imediatamente rodeia o assassino e frenético exclama: “Seja agora Bruto o nosso rei!” Que quer isto dizer? Que os povos, quando repousadamente não se educaram para a liberdade, em lhes faltando um senhor, procuram logo outro. Todos, antigamente, se inclinavam ante a vontade, nem sempre razoável, dos monarcas absolutos; tremem hoje todos ante os ditames das sociedades de resistência. Lisonjeavam-se outrora os cabeças coroadas: parlamenteia-se hoje com o monstro de mil cabeças. Ora, o jornalista moderno, colocado em frente da hidra, deixa de ter pensamento próprio para em si mesmo gerar a multiplicidade de opiniões. Passa a ter muitas almas. Homo duplex, escreveu Buffon; mas Buffon não conhecia a evolução, melhormente eu diria a involução, da democracia: Homo multiplex, escreveria ele hoje.

O jornalista político, segundo a necessidade inelutável de acompanhar a onda da opinião, e de não a contrariar opondo-lhe a dele, o que desastradamente lhe angariaria antipatias e diminuiria a circulação da folia, longe de ser o diretor, é o joguete das maiorias, e, por isto, não raro lhe sucede, antes de escrever, indagar como e em que sentido o faça.

Sabeis, Sr. Dom Silvério, que nós, os velhos, muito gostamos de contar histórias, do que nos não devemos envergonhar, porque também as contava, e encantadoras, Jesus Cristo, nosso Mestre e Senhor. Ouvi, portanto, uma, que não deixa de ter graça, e talvez nos traga lição.

Em certo jornal, cujo redator-chefe costumava publicar artigos religiosos na Semana Santa, aconteceu que uma vez não o pôde fazer. Estava ausente, tinha ido à Europa concertar as nossas e suas finanças. Para o substituir foi então convidado um jornalista emérito. Erudição, talento, estilo, nada lhe faltava. Em breve ficou tudo ajustado: dimensões do artigo, local em que seria estampado, e também o preço da colaboração, porque dignus est operarius mercede sua... Mas o articulista, por vezo do ofício, tinha muitas almas, e, antes de se despedir, indagou qual delas conviria no momento. – “Já sei, disse, que tenho de escrever sobre o Cristo: mas pró ou contra?”

Este caso, Sr. Dom Silvério, provavelmente nunca se passou. Mera ficção, podemos, a nosso talante, localizá-la no espaço e no tempo. Fique, pois, assentado que sucedeu na Ucrânia, cinqüenta anos anteriormente ao fim da Grande Guerra, isto é, meio, século antes que o navalismo inglês tivesse aniquilado o militarismo germânico.

Seja como for, convenhamos que seria um curioso espécimen de teratologia psicológica; mas se o acoimardes de artificial e, prudente observador, quiserdes in situ surpreender a natureza, não vos há de faltar azado ensejo. Lede, por exemplo, atentamente os discursos que este ou aquele festejado orador tenha declamado em assembléias de incréus, vociferando contra a fé católica; e cotejai-os com as expressões maviosas em que se derrama no meio dos bons padres e colegiais. Arroubados então ficam devotos clérigos, extasiam-se cônegos, monsenhores, e deles há que logo correm a felicitar o Onipotente pelas simpatias do potentado ou pela adesão do conselheiro... Eis porque, Sr. Dom Silvério, ouso premunir-vos quanto a futuros julgamentos. Acertastes hoje, poderíeis enganar-vos amanhã... Em se vos deparando alguma dessas multíplices personagens, imitai o avarento de Molière, e, quando o homem vos tiver mostrado duas mãos, quero dizer, duas almas, perguntai-lhe ainda pelas outras.

Em rápida enumeração das vossas obras, Sr. Dom Silvério, aparece em primeiro lugar, por ordem cronológica, o livro a que pusestes como título: – Prática da Confissão.

O tribunal da penitência! Especialíssimo tribunal, em que não há promotor, nem advogado, nem oficiais de justiça, nem soldados em armas; onde o réu é quem se denuncia e acusa, e o juiz quem anima e consola; onde se ajoelha o remorso e se levanta a paz de consciência! Para isto, Sr. Dom Silvério, traçastes o bom caminho. Felizes os que por ele corajosos enveredam! Deploremos os que recalcitram discutindo; porém mais ainda os que, de olhos fechados, se contentam de sorrir!

Escusado é notar que, nesse vosso trabalho, à certeza doutrinal aliastes as graças do bem-dizer; nem de outra opinião foi alguém de indiscutível autoridade, aquele venerado bispo do Pará, Dom Antônio de Macedo Costa, tão brilhante orador quão vigoroso polemista.

“É um livrinho – escreveu ele em setembro de 1874, da sua prisão da ilha das Cobras – é um livrinho, no meu ver, de ouro, não só pelo claro, metódico e seguro da doutrina, – dote este último que não se acha em muitos de nossos tratados – senão também pelo mimo e suavidade do estilo, tão perfumado daquela ingênua elegância dos nossos velhos clássicos que não duvidaria chamar a Vossa Reverendíssima de nosso Brasileiro Bernardes, se porventura para tais batismos literários me não falecesse completamente jurisdição.” (P. 10 da 2.a edição.)

Mais tarde, após a morte de Dom Antônio Ferreira Viçoso, oitavo bispo de Mariana, escrevestes a Vida desse colendíssimo prelado. Estoutro livro, de que conheço duas edições, não é somente uma excelente obra: foi uma boa ação.  Mostrara-se Dom Viçoso vosso amigo e protetor, quando, aos quinze anos de idade, pela casa vos entrou a morte, tirando-vos o pai, e em seu lugar deixando lágrimas, penúria, viuvez e orfandade. Aproveitou-vos Dom Viçoso a vocação e fez-vos seminarista. Deus vos fez padre e bispo. O que em amparo recebestes, melhormente não o poderíeis pagar do que como o fizestes: com a moeda da gratidão e o prêmio da fama imorredoura.

Sei bem, Sr. Dom Silvério, que pela vossa, pela minha maneira de ver, pouco interessa ao justo esse fantasma de vida afeitado pelo positivismo com o pomposo letreiro de imortalidade subjetiva; – pensamento nosso que com formosa imagem otimamente expressou Lamartine, quando perguntou que é que ao cisne, em surto às alturas, acaso importa a sombra que ainda projeta sobre a relva do prado... Mas, humana, literariamente falando, eu vos asseguro que Dom Viçoso irá vivendo no vosso livro, enquanto se fale português, tempos tão alongados quanto os de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires nas páginas de Frei Luiz de Souza.

Porventura, Sr. Dom Silvério, com vos elogiar, sincera e vorazmente, a limpidez e a singeleza estilística, assim vos recomendo aos leitores contemporâneos?

Receio que tal não seja.

O gosto dominante é, com efeito, o do rebuscado, estrepitoso, bombástico, extravagante, escandaloso, nas letras e nas artes, que umas e outras são aspectos da alma social. Percorrei as nossas avenidas, e vereis, no mais horripilante ecletismo, torrinhas, minaretes, cúpulas aceboladas, zimbórios bizantinos a coroarem casas que são pesadelos arquitetônicos. A grande pintura, a pintura histórica, morta depois de Victor Meireles e Pedro Américo, que cantaram na tela a epopéia da guerra paraguaia, tornou-se caprichosa, mas muito caprichosamente decorativa... Na estatuária, há bandeiras flutuantes de bronze, donde emergem cabecinhas de heróis. A dança, que entre os gregos era arte bela e patriótica, pede esgares e contorsões lascivas ao populacho das tavernas... E se, sem deslustre, pudésseis freqüentar os nossos cinemas, teríeis curiosa impressão daquilo em que desandou a música orquestral. Há nela agora uns guizos, chocalhos, matracas e maracás, instrumentos bárbaros que imitam o coaxar das rãs, o silvo da cobra, o pipocar da girândola, o estouro da mina, miaus de onça, berros de feras enraivadas... O povo, que com isto se deleita, dormira ouvindo um noturno de Chopin, ou vaiara melodias de Bellini. Todo o meu receio, portanto, é que, viciado pelas disfonias da moda, esses tais vos achem dessaborida a dicção, por não ser neologista, pernóstica, excêntrica, exótica, nevrótica, histericamente impressionista. Depois que os srs. médicos lhes meteram em cabeça que o gênio é uma nevrose, muitos se fazem malucos por ver se acabam geniais... Quero esperar, contudo, que ao menos nesta Academia, acrópole, último reduto das boas letras nessa invasão do mau gosto, devidamente apreciadas sejam as qualidades do escritor que Macedo Costa cognominou Bernardes Brasileiro, e para quem eu hoje, tão menos competente, e antes de mim já muitos outros, reclamamos as láureas do autor da Vida do Arcebispo.

Que dizer, Sr. Dom Silvério, das vossas pastorais, tantas, tão repetidas, quantos os dias em que se vos faz necessário corrigir, afastar do mal, corroborar no bem os povos sob vossa jurisdição paternal? Tive a feliz idéia de solicitar que do vosso Arcebispado me as enviassem, e de lá me vieram não menos de vinte e tantos opúsculos – opúsculos no tamanho, porque não sois dos que gastam palavras só pelo gosto de escrever, – mas verdadeiras obras bem acabadas, modelos no seu gênero, austeras nos ensinamentos, e sempre com as naturais louçanias que vos caracterizam o frasear.

Nos estreitos limites de um discurso... perdão! nos acanhados moldes destes períodos com que vos estou recebendo, não cabe a detida análise dessas vossas produções; mas permiti que ao menos de uma eu desentranhe pequenino trecho, em que como que se estereotipa a nota distinta da vossa individualidade.

Depois de anunciardes, como era mister, a vossa exaltação ao sólio episcopal de Mariana, em 1897: “Quanto me confunde, exclamastes, quanto que confunde e abate este pregão solene! E é de força que eu o faça. O pobre filho de Antônio Alves Pimenta e Porcina Gomes de Araújo é hoje Bispo de Mariana! Altos juízos de Deus!”

E logo disto tirando consectário para proveito espiritual:

Aqui tendes, queridos irmãos, uma confirmação eloqüente do sistema observado por Jesus Cristo desde a fundação da sua Igreja, que é escolher instrumentos tão desproporcionados aos efeitos desejados que entre pelos olhos de todos ser o braço de Deus quem tudo faz, e que o homem é nada.

Basta... Quanto são diferentes, Sr. Dom Silvério, os nossos e os vossos processos! Nós, os do mundo, quando exumamos antepassados, é para dos seus sarcófagos tirar insígnias e veneras com que nos adornemos; vós, no momento em que a Igreja vos aclama seu príncipe, lembráveis os nomes obscuros de vossos pais para na vossa humilhação glorificar a Deus! Mas não importa... Longe de vos abaterdes, vós vos exaltastes, e também a eles... Eu não sei, Sr. Arcebispo, se faço mal acreditando que lá do etéreo assento, como disse Camões, não só memória, mas também visão se consente deste mundo – visão que, aliás, segundo a Escritura, não se recusa aos Anjos, testemunhas que são dos variados lances das lutas terrenas... Pois bem! se assim é, mais de uma vez, nos seus modestos  jazigos, terão exultado os ossos de vossos maiores – et exultabunt ossa humiliata – e eles, os vossos pais bem-amados, aí, agora, se acham convosco, assistindo, como no dia da vossa exaltação episcopal, à vossa sagração nas letras!

Em seguida às pastorais, permiti que eu mencione um dos vossos menos conhecidos trabalhos, aquele que em 1885 publicastes com o título: – À Morte de Minha Mãe – e que nunca mais reimprimistes, no que fizestes muito bem, porque não se repetem os transes em que quase todos havemos agonizado junto ao leito de morte de entes idolatrados.

A um dos vossos irmãos no Episcopado, o egrégio Dom João Esberard, de quem me ufano de ter sido íntimo amigo, estranhei certo dia, amistosamente, o prolongar das lágrimas com que pranteava sua santa Mãe; ao que com dolorida razão me contestou: “Filho, vós outros que tendes esposa e prole, com muitos repartis o vosso afeto. Não assim o padre católico, cujas ternuras todas se volvem para os pais e mães que os acarinharam...”

Tal também devera ter sido, Sr. Dom Silvério, a vossa dor imensa, e imprudente eu me tornaria se, depois de tantos anos, mais me detivesse nesta página lutuosa.

A isto prefiro saudar-vos com dois títulos que, fora do círculo, aliás amplíssimo, dos vossos mais próximos, talvez não sejam bem conhecidos pelo que afrancesadamente se costuma chamar o grande público. Ora bem, a este revelo que haveis poetado, não digo em vernáculo, o que bem pode ser que haja sucedido, mas no opulento idioma do Lácio. Em versos latinos vossa justeza da metrificação (hoje descurada, mesmo nos cursos oficiais) pede meças à inspiração. E jornalista igualmente o fostes, Sr. Dom Silvério, “em tempo de tormenta e vento esquivo” para a nave católica.

Como Davi, não duvidastes baixar ao campo da batalha e apedrejar o incircunciso que afrontava as hostes de Israel. Homens da nossa idade, e mesmo muito mais moços, devem ter lembrança dos combates que na imprensa do Rio e na das províncias travou com o Episcopado o maçonismo chefiado por Saldanha Marinho, sob o pseudônimo de Ganganelli. Os poderes públicos tomaram então partido contra os bispos, e, assim malferindo essa grande escola de autoridade que é a Igreja Católica, inconscientes desfecharam o primeiro golpe contra a monarquia. Vossos valentes artigos, claro está, pleitearam a boa causa, que era a da liberdade de consciência ante o regalismo absorvente. Não sei se, depois disso, ainda freqüentastes o jornalismo... Quer parecer-me que não... Tanto pior para o jornalismo!

Que deste formais verdadeiro conceito, compreendendo-lhe a força, lastimando-lhe os excessos, desejando vê-lo encarreirado ao bem – assaz o comprova, Sr.  Dom Silvério, o que tão lucidamente expusestes, deprecando o apoio da Academia para a imprensa digna deste nome e que não minta à sua missão: nem pelos nobres corações a quem vos endereçastes, deixará de ser atendido o patriótico apelo.

Poeta e jornalista – essas as últimas facetas que mostrei do cristal da vossa inteligência; mas ainda me resta acentuar que, da palavra, cujo elogio tecestes, não somente a escrita haveis cultivado, ou mesmo só a falada do alto da cátedra sacra, e logo repercutida em jornais, mas também a palavra santamente humilde, com que de contínuo, opportune ac importune, ides ao encontro das almas aflitas e periclitantes nesse intérmino jornadear que são as vossas visitas pastorais. Ora, permiti que a tal respeito eu evoque uma impressão pessoal.

Quando o Marechal Floriano (a quem Deus tenha em glória) entendeu que à minha saúde, e à de outros concidadãos melhormente convinham as alterosas montanhas de Minas, não empestadas pelo estado de sítio, durante onze meses me alberguei no coração de ouro desse gigante de ferro, para me servir de uma bela imagem de Gorceix; e de povoado em povoado às vezes divagava, por disfarçar o tédio e a melancolia da minha situação. Certo dia, ao cair da tarde, toda a gente do lugar onde eu pousava entrou a movimentar-se. Havia no êxodo uma curiosa mescla de meios de condução. Vagarosos e chiantes carros de bois recordavam tempos dos Merovíngios. Trêfegos cavalos e meditativos muares transportavam mancebos, velhos e damas, de quem nunca se diz a idade. Caminhava alegre a pé a mor parte da multidão. O céu era límpido, daquele azul safíreo que só têm as terras altas e secas. Deliciosa frescura repassava o ambiente. Do lado oposto ao sol no ocaso já cintilavam estrelas, como por não desampararem de luz a amplidão celeste; e contra a zona oposta e luminosa se destacavam os braços negros de um cruzeiro, desses que a religião dos mineiros planta sobre os cômoros, dominantes as suas aldeias e cidades... Súbito, o gilvaz de um rojão listrou de fogo a celeste abóbada... Mais outro, mais outro... Procurei então com a vista, no grupo que se aproximava, o potentado cuja vinda era dessarte saudada por todo aquele povo... E éreis vós, Sr. Dom Silvério, vós que não comandais um soldado, que não tendes empregos a dar, que nunca vos enredastes em política, mas que ali, nos vossos domínios arquiepiscopais, como aliás em toda parte onde vos acheis, exerceis a mais tirânica das autoridades – a autocracia da fé, o despotismo do amor.

Assim tem sido a vossa obra: – una, constante, invariavelmente dirigida ao alto. “Toda ciência (quem o disse foi, não um Padre da Igreja, mas o libérrimo Victor Hugo) toda ciência acaba em adoração.” Vossas letras, Sr. Dom Silvério, são uma adoração perene; e por isto, melhor símile não posso para elas achar do que uma dessas catedrais em que na Idade Média colaboravam legiões de arquitetos, escultores e alvanéis.

Primeiro, sobre a rocha indestrutível da Verdade assentastes os alicerces dos princípios; e lenta, mas progressivamente, erigistes as paredes da majestosa fábrica. Fizestes o corpo do templo, e nele o santuário, ante o qual acendestes a lâmpada inapagável da nossa fé. Aí vemos colunas que do solo se alteiam, como esses esteios da crença que nem por subirem ao céu desdenham o apoio da razão humana. Há, pelos capitéis e cimalhas, umas grinaldas de anjos e revoadas de flores. Pelas janelas esguias coa-se a luz cromatizada nos vitrais. Uma penumbra de mistério reina ao longo das naves, e lá estão os confessionários, onde ensinastes aos culpados a conquista do perdão. Vedes ali um púlpito, e ele é também domínio vosso, porque dele freqüentes desceram os vossos ensinamentos. Há, sob as lajes de uma capela, um túmulo, o de um santo (perdoai-me agora as antecipações da canonização): é o túmulo de Dom Viçoso e, por vós invocada, revive essa augusta sombra, e ainda nos dá lições.

Não é tudo: a igreja tende a subir, e alça-se em torres, onde há ogivas que são como mãos postas para o céu. Ascendemos para o azul, vamos subindo, subindo – mas ainda é pouco. Atentemos nos bronzes sagrados, e eles nos dirão que, correndo vales e serras, mais longe do que o deles foi o brado das vossas missões. A torre acumina-se, atira para cima a sua flecha, e nesse hastil, já tão próximo do infinito, desabrocha uma flor, a Cruz, que ao mesmo tempo é patíbulo e epinício, supremo abatimento e martírio triunfal!

Eis, Sr. Dom Silvério, o símbolo do que haveis feito. Podem não amá-la, à vossa obra, os que desamam a religião: mas, sob pena de cancelo nos seus diplomas de estetas, lícito não lhes é menosprezarem a solidez e os primores do lavor, nem a perfeita unidade de vossa construção.

Ai de nós, quando a comparamos com as nossas!  Quantos combates havemos ferido, somente propugnando ambições ou vaidades! Quantos esforços despremiados, ou desdenhados pela ingratidão! Vós não, porque pelejastes o bom certame. Não há, porém, comparar o caleidoscópio, de instáveis ou coloridas figurações, com o telescópio, majestosamente assestado às profundezas do cosmos. Nossa escusa única, a dos que talvez errada, mas penosamente labutamos, é que variados e complexos são os nossos ideais, por serem humanos: o vosso é Divino, e por isto chegou para vos encher uma longa vida.

Senhor Dom Silvério! Um jornalista malicioso – defeito da profissão, o qual, felizmente, não se me apegou, – tratando-se da festa em que ora vos recebemos, antecipou conceitos tão graciosos quão verdadeiros. “Teremos, disse, um Arcebispo recebido por um conde, isto é, por um companheiro do Papa. Será delicioso! Vai ser um Te Deum!”

E disse muito bem o jornalista engraçado. Um Te Deum!  Mas um Te Deum é a mais solene e comovente ação de graças ao Deus onipotente e benfazejo. Para haver um Te Deum preciso é que nele colabore a poesia sacra medieva, tão pujante de inspiração quanto a arquitetura contemporânea sua; é preciso o gênio musical de um Palestrina, de um Lulli, de um nosso José Maurício; é preciso o perfumoso encanto dos altares, o fulgor das luzes, o povo em recolhido silêncio, o concerto dos instrumentos apoiando o mais perfeito de todos, que é a voz humana... Um Te Deum! Mas um Te Deum é a expressão mais subida do amor e da gratidão: – do amor que é o nexo de todos os corações bem-nascidos; e da gratidão, que é a mais formosa das pérolas no oceano dos sentimentos!

Seja como for, Sr. Dom Silvério, nosso Te Deum está feito... Podem agora festivos repicar os sinos da publicidade!

Sacerdote de uma religião de paz, de concórdia e de bênçãos, grata vos seja a tolerância dos que não crêem, e todavia vos elegeram; abençoai-nos a nós, os que apesar de tudo ainda cremos, immota fides; e a uns e outros cingi em amistoso amplexo, a todos os que congraçados vos recebemos, e com as modestas palmas da minha palavra exornamos o vosso triunfo. Sede muito bem-vindo!