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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Afonso d´E. Taunay

RESPOSTA DO SR. AFONSO TAUNAY

SENHOR Rodolfo Garcia.

Ao exprimir-vos a saudação regimental com que a Academia Brasileira vos recebe, impõe-se-me, por associação de ideias, uma paráfrase da divisa célebre, procedente de dois dos mais gloriosos de nossos maiores nesta Casa: Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga:
Justitia quae sera tamen...

Chamando-vos à nossa intimidade quisemos dar satisfação a um reclamo repetido em todos os cantos do país. – Como? pois até agora não elegeu a Academia Brasileira a Rodolfo Garcia?
Maravilhoso instinto de justiça orienta o grande corpo eleitoral da opinião pública, cujos veredictos apontam os futuros titulares das nossas cadeiras.

E este eleitorado instituído pelo censo alto da cultura muito raramente se equivoca, ao fazer as indicações insinuadas ao nosso colégio. Nestes escrutínios prévios, e simbólicos, predomina o verdadeiro reconhecimento dos valores.

Qual de vós, meus prezados colegas, passa alguns dias sem ouvir sugestões desses eleitores do primeiro grau dos nossos comícios? enunciadas numa escala que se, por vezes, exprime a mera instigação da curiosidade, chega, também, a assumir o feitio da impertinência molesta?

– O que a Academia precisa é quanto antes eleger a V... – aventam os apaixonados dos estudos filosóficos e sociológicos.
– E a X... – rememoram os amantes das letras puras.
– E a Z... – reclamam outros, para quem só tem valor o cultivo dos assuntos brasileiros.
– E a W... – expendem os que preconizam o critério exponencial.
Este juízo, claro e exato, dos valores dos nossos academizáveis, de outro aspecto às vezes se reveste.
Expande-se em recriminações, frequentemente acerbas até, por se referirem a irreparáveis fatos.
Foi o que, ainda há pouco, novamente observei ao ocorrer o passamento de Calógeras.
– Deixou a Academia de chamar a si quem ao Brasil legou tão valiosa obra escrita, ouvi objetarem, amargamente, muitos destes zelosos do prestígio de nossa companhia.
E não temos o que responder a estas increpações, força é convir. Injustiça se cometera, e grave, comparável a outras, praticadas dentro das mesmas normas, para com diversos brasileiros dos mais notáveis.

Entre eles não incluo, porém, o nosso mestre Capistrano. Não foi nosso porque não o quis, fugindo aos encargos de membro voluntário de segunda academia, sócio involuntário que o haviam feito de uma outra, a humana.

No caso de Calógeras, jamais houve, de nossa parte, a menor atribuição depreciativa de seus extraordinários títulos e méritos.

Ocorreu apenas um embate de circunstâncias inconcordáveis.
São as nossas eleições raras e algo complicadas. E os seus processos, talvez um tanto arcaicos, em sua sábia reserva de experiência secular. Assim não se coadunam com alguns temperamentos de extremada susceptibilidade.

Não havendo ocorrido concessões recíprocas entre a retração do candidato ilustre e a inflexibilidade do regimento acadêmico, com isto sofremos rude perda, não se tendo inscrito em nosso cadastro o nome eminente de João Pandiá Calógeras.
Coloca-o hoje a opinião nacional em nossa Cadeira quadragésima primeira, de todas a mais gloriosa, onde, entre os mais recentes titulares, incluem-se Alfredo de Carvalho, Alberto Torres e Martim Francisco III.

*  *  *

Viestes trazer-nos, Sr. Rodolfo Garcia, o remate de uma vida, consagrada à nobreza dos serviços à nossa pátria e coroados pela ampliação, que é quase um refazimento, de um dos maiores padrões de nossas letras: a História Geral de Varnhagen.

Às excelências da mentalidade, soubestes apor o sigilo do culto da honra, do dever e do labor.
Esta Cadeira, que é hoje a vossa, instituiu-a Oliveira Lima. Ao historiador ilustre de D. João VI sucedeu o fino espírito de Alberto de Faria. Seguiu-se-lhes o erudito, o trabalhador indefesso, o homem cheio de dignidade que foi Rocha Pombo.

Sois agora o titular e o mantenedor da integridade do prestígio de uma poltrona criada sob o patrocínio da grande memória de Francisco Adolfo de Varnhagen, onde sempre se assentaram, pois, representantes eminentes das nossas letras históricas.

Foi Oliveira Lima um destes trabalhadores, volúpticos do trabalho, sujeitos à autointoxicação do exacerbamento de um estímulo que tudo avassala. Correu-lhe a vida em condições de poder satisfazer ao império das preferências do espírito.

Daí a extensão de sua obra construtiva, cheia de argúcia, consciência e respeito à verdade.
Com ele muito privastes, e dele recebestes estímulos e provas do maior apreço.
Praticando, como Rio Branco e como Varnhagen, o Ubique Brasiliae memor, encheu Oliveira Lima os quadros de nosso corpo diplomático com a alta reputação de seu nome.

Por todos os países onde dignificou os créditos de nossa representação imprimiu o cunho de sua superioridade mental e cultural. Valeu-lhe ela a prestigiosa antonomásia conferida por personalidade ilustre da Europa moderna: embaixador da inteligência brasileira.
Impetuoso, talvez mais do que convinha a um historiador, nunca soube Oliveira Lima transigir com o que lhe parecia a expressão da verdade.

A rude expansão no manifestar das ideias e a crueza dos conceitos valerem-lhe ásperas críticas e algumas malquerenças sérias, políticas e literárias.
Não atingiu o ápice de sua carreira como tanto lhe era devido.

Pouco lhe teria custado a obtenção desse desiderato justíssimo. Ninguém lhe pedia subordinação, apenas um pouco mais de disciplina. Mas o homem de selvática independência, que sempre foi, não consentia a mínima quebra daquilo que lhe parecia intangível, em matéria de respeito à dignidade. Preterido, agastou-se, melindrou-se e do mundo se foi, magoadíssimo, em atitude cipiônica para com a sua terra e a sua gente.

*  *  *

Tinha Alberto de Faria múltiplas feições culturais. Causídico de invulgar valor, alta inteligência prática, voltou-se, com a singular adaptação de aptidões, própria das inteligências claras e ágeis, para o estudo das nossas questões econômicas e financeiras em que se consumou mestre.

Mas, ao mesmo tempo, as afinidades do espírito o levaram, dominadoramente, a nunca se esquecer de empunhar a rabeca famosa de Ingres, dela tirando sons que bem sabia quanto podiam ser deliciosos.
Mundano brilhante, conversador, a todos encantando, observador que com rara finura surpreendia os feitios frisantes dos homens e dos fatos, por largo prazo viveu aparentemente alheio àquelas letras que tanto prezava. Dominou-se até o momento julgado oportuno para deixar o naturel revenir au galop e revelar-se aos círculos que legitimamente também eram os seus.

Aquele espírito prático de financista e economista que intimamente se casava ao do apaixonado das coisas da inteligência pura, conduziu-o ao exame demorado de uma personalidade a quem conhecera nos anos da primeira juventude.

E de quem, certamente, recebera a mais viva impressão, apaixonado, como era, das realizações do progresso e da civilização.
A pouco e pouco se foi deixando interessar pelas fácies da grande vida de Irineu de Sousa, tão variada em suas determinantes imperativas quanto fecunda pela obra que representa.
Largamente meditou sobre tão largo e complexo assunto. Compreendeu de relance o que lhe custaria a construção de um monumento à altura do glorificado.

Veio-lhe depois o temor da lues bosweliana a que tão expressivamente se referiu. Sentia em si estas instigações, comuns a nós outros filhos do Brasil, o risco do empolgamento, perturbador da visão exata.
“Não há brasileiro que possa ser biógrafo, – causticava frequentemente o terceiro Martim Francisco. – Nenhum de nós conhece o meio-termo. Ou o biografado vai parar à mão direita de Deus Padre Todo-Poderoso ou em Fernando de Noronha.”

Procurando fugir a tal pecha empenhou-se Alberto de Faria em manter-se dentro desse meio-termo tão antinômico da nossa exuberância tropical, consoante o dizer do Andrada.
E, com a displicência elegante que lhe conhecemos, redigiu os capítulos da biografia notabilíssima que o consagrou. Filha da justiça e nascida de labor, iniludivelmente formidável, sintetiza-se em páginas que trazem o inapagável cunho dos escritores natos.

Dela acabais de nos dar eloquente apanhado, reverenciador exato do nobre espírito a quem se deve o monumental padrão.

*  *  *

A Alberto de Faria sucedeu Rocha Pombo. Cabia-me receber este acadêmico eminente a quem a morte tolheu o preito da nossa máxima solenidade.

Teve a carreira de Rocha Pombo tropeços e dificuldades que os seus antecessores desconheceram. O pundonor dos encargos que a vida lhe fizera assumir impuseram-lhe os sacrifícios de invencíveis inclinações.

O Fado o criara escritor. E a imperiosidade da existência, numa demonstração de quase positiva malevolência, por longo tempo obstinou-se em não consentir que trabalhasse na seara de sua eleição.
A esta contrariedade opôs a inabalável firmeza do caráter e a inamolgável constância do trabalho. Porque, acima de tudo, colocava o repouso da consciência pela intangibilidade da honradez e a nobreza da independência.

Conservou sempre o garbo destes irredutíveis self made men que perlustram a estrada inflexivelmente reta do non possumus! e não as veredas escusas das vitórias da acomodação.

Nos anos da primeira mocidade, naquela linda terra paranaense que era a sua, seduziu-o a vida pública.
Aos vinte anos figurava na Assembleia Provincial, onde assumia posição de destaque. Tudo indicava que continuaria preso à política. Mas as preocupações partidárias tomavam-lhe tempo demais para que lhe sobrassem as horas de convívio com os queridos livros.

Cedo deixou a lide parlamentar, sobretudo depois de perceber a extensão do que o extremismo das lutas partidárias causara à sua circunscrição natal, assolada pela horrorosa guerra civil de 1893 a 1894.
Passando a residir no Rio de Janeiro duros tempos lhe couberam, entregue ao rude labor do magistério.
Durante anos e anos, professou disciplinas que lhe valeram não só a elevada autoridade da palavra como o afeto intenso de numerosíssimos discípulos.

Outro grande magistério paralelamente exercia, o do homem que, à risca, praticava o código da nobreza das obrigações do chefe de família, e do cidadão impecavelmente honesto.
A sua eleição ao nosso grêmio representou verdadeiro preito de acatamento a quem sobremodo dignificava a nossa Nação e as nossas letras.

O que de vosso antecessor dissestes é a bela avaliação da sua existência e da sua obra.
A Rocha Pombo faltou, bem o dissestes, aquele “raro conjunto de felizes circunstâncias” que João Francisco Lisboa amargamente arguia ao venturoso Varnhagen.

Como historiador realizou o que lhe era possível fazer, dentro da contingência dos fatos.
Tamanha a má vontade do Destino para com a sua obra que até lhe impôs a enorme capitis diminutio da péssima apresentação material dos dez tomos da História do Brasil.
Que desânimo incute ao leitor a compacidade de suas páginas in quarto, onde a economia mesquinha do editor suprimiu as aberturas de parágrafo!

Raríssimos livros terão aparecido tão deploravelmente apresentados quanto o grande tratado de Rocha Pombo.
Basta que se lhe faça uma reedição, abrindo claros naquela massudez detestável, e imenso lucrará.

*  *  *

Assim, pois, Sr. Rodolfo Garcia, quarto titular de vossa Cadeira, tivestes, como predecessores, três brasileiros eminentes, todos eles empolgados pela instigação do melhor aclaramento dos nossos fastos, ainda defeituosamente desvendados.

Um conceito se atribui a Pedro II que aliás pouco autêntico parece. “É a História do Brasil modesta porém honesta.”

Por maior que seja o meu acatamento ao critério do Imperador Magnânimo, para mim uma das mais nobres, uma das mais majestosas figuras, não só do Brasil como da Humanidade, divirjo deste modo de encarar o papel do passado brasileiro no conjunto da História Universal.

Modestos? Estes anais que compendiam o heroísmo da longa e penosíssima reconquista nacional do século XVII? e encerram um episódio único, no conjunto dos fastos universais: o do bandeirantismo?
Honesta é a história do povo brasileiro como a de qualquer outra nação sua contemporânea.

Na mesma terra erma
A mesma Humanidade é sempre a mesma enferma,

proclama o gênio sombrio de Antero de Quental.
Sob o ponto de vista das nossas ideias atuais de maior brandura e maior respeito pelo fraco, não podemos considerar muito honestos os fastos de um país assinalados pelo desapossamento e a eliminação de raças menos armadas do que a branca. E a contenção crudelíssima, mais que trissecular, decorrente da vigência da instituição servil.

Mas que povo se atreverá a nos atirar a bíblica pedra? Que nação colonizadora se animará a fazê-lo? Qual delas poderá arguir-nos de não haver praticado os nossos processos em relação aos povos de civilização mais rudimentar?
A história da Humanidade era, até bem pouco, essencial e quase unicamente a história de sua crueldade.

A do Brasil, na evolução dos seus feitios sociais, está, por assim dizer, ainda embrionária.
Os esforços dos que a constroem datam de ontem. Assim o seu acervo apresenta-se incomparavelmente menor do que o de sua história-batalha, campo em que sobretudo lavrou o vosso grande patrono.

Com todo o acerto lembrastes que a história do Brasil exige, hoje mais do que nunca, a inspeção dos acervos arquivais, onde a massa de papéis virgens é simplesmente imensa. E reclama a verificação das fontes já desvendadas...

Encontramo-nos por enquanto na fase da análise.
Os levianos e os invejosos que, consciente ou inconscientemente, praticam o ne sutor, apenas deletreiam uma monografia, por mais trabalhada que seja, e mais penoso lhe haja sido o preparo, recorrem logo a arrasador baldão: ao livro falta o espírito de síntese!

Mas síntese daquilo que ainda se não esclareceu bastante? Estão, naturalmente, as grandes linhas do exame de nosso passado estabelecidas e sobre elas podem os pensadores filosofar. De tal nos deram magníficas provas alguns altos espíritos como Capistrano e João Ribeiro. Mas isto não nos deve desviar da história analítica, tão imperfeita ainda.

Ouvidos moucos, pois, aos dictérios do negativismo sistemático! Continuemos na rude faina do exame meticuloso, deixando a facilidade das sínteses apressadas aos membros da legião sábia e gloriosa, desses Abades Vertot indígenas de que fazia parte certa e em seu tempo muito reputado escritor, a quem em sua terrível ironia arguia Martim Francisco III:

“A ninguém é dado poder gabar-se de ignorar, por completo, a história do Brasil antes de conhecer a fundo a obra do Sr. Conselheiro J. M. Pereira da Silva.”
Perniciosa a confiança que muitos escritores, atuais e recentes, têm depositado em antigos narradores e naqueles que viveram a lhes repetir as palavras.
A muitos destes velhos e deploráveis bonzos já se vai dissipando a fama, derruída pela exegese dos retificadores.

De quanto é ainda insuficiente a perscrutação das fontes temos as mais evidentes e repetidas provas.
A divulgação recente dos documentos do Arquivo General de Índias em Sevilha, pelo sábio Pablo Pastells, veio, por exemplo, remodelar grande parte da história do bandeirantismo, provando quanto se deixaram os velhos cronistas jesuíticos influenciar pelos desvios da tradição oral, induzindo a seu turno em erro diversos autores de critério e honestidade. O conhecimento dos papéis do Arquivo de Marinha e Ultramar, de Lisboa, verbetizados por Castro de Almeida, por incumbência de Manuel Cícero, trouxe infindos esclarecimentos a muitas de nossas obscuridades coloniais.

Com outra segurança podemos agora estudar os fatos relativos à dilatação de nosso território, que até do grande Varnhagen não mereceram a devida atenção.

Avulta hoje a contribuição impressa de nossos arquivos municipais, estaduais e nacionais. Mas muito há, contudo, o que traduzir.

De Portugal, imenso devemos ainda esperar.
Aí está, flagrantíssima, a valia de tal contribuição no manancial, opulento e novo, representado pela admirável História da colonização portuguesa, cujas páginas assinam nomes do prestígio de Antônio Baião, Duarte Leite, Oliveira Lima, Cortesão, Pedro de Azevedo, Malheiro Dias, Júlio Dantas, etc.
E agora mesmo, nos últimos meses, não nos surge um apresentador de novidades retumbantes, sacadas dos recessos dos arquivos da Companhia de Jesus, como essas relativas ao patriarca João Ramalho e aos primórdios da cidade fluminense?

Que nos reserva em matéria de novidades, e do mais alto coturno, a incansável busca, procedida nos depósitos arquivais do Instituto de S. Inácio de Loiola, por esse erudito argutíssimo que é o Dr. Serafim Leite?

Quanta coisa não se terá de refazer à vista de suas descobertas?
Mais do que nunca e em toda parte a era é a das monografias e não a das histórias gerais, observava, há pouco, conceituado historiador francês.

Efêmero o apreço das obras globais, em relação às que esquadrinham restritos setores.

*  *  *

Incontestável rebuscador das fontes documentais, indignava-se o brando Pedro Taques contra o “oco e ruidoso autor da História da América Portuguesa”, do áspero conceito de Capistrano. Não lhe perdoava haver fugido à inspeção pertinaz das fontes.

Tendo à sua disposição os arquivos baianos escrevera, no entanto, “sem a lição dos cartórios, mais por vaidade que por zelo”.
Esta verberação dos processos do acadêmico dos Esquecidos quanto não é aplicável a uma legião de autores antigos, recentes, contemporâneos?

Professando verdadeira repugnância ao exame das peças documentais, desperdiçam tais repetidores impenitentes montanhas de papel de imprensa para divulgar as lucubrações próprias, de mera conjectura, ou a reprodução contínua de alheios erros, por vezes seculares.

À sua geração lançava Melo Morais o velho, o arrogante baldão de que no Brasil de seu tempo um único pesquisador consultara os acervos dos arquivos nacionais: ele, Melo Morais.

Reensinou Varnhagen o verdadeiro caminho; esquadrinhou imenso, e imenso aproveitou. Foi o magno derribador dos grandes jequitibás da nossa História, no dizer sempre expressivo e pitoresco de Capistrano, destes troncos que os seus sucessores “estão reduzindo a achas” e onde, muitos, vimos lenhando.

A floresta é enorme, porém, e nela ainda estão de pé jequitibás de elevadíssimos porte e corpulência. Nem todos conseguiu Varnhagen abater, que a empresa sobre-humana seria.
Viu-se isolado, que dos seus contemporâneos bem poucos se dedicaram ao estudo da documentação. Haja vista esta série de memórias de toda a espécie, insertas na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a cujas páginas atulham desastradamente dissertações de palanfrório inútil, insuportável pelo gongorismo e a pieguice.

A um homem da cultura de Pedro II não podia escapar quanto mal inspirada andava a direção da Revista, condescendendo em abrigar tão deplorável literatura, em vez de inserir em seus tomos algumas coisas da massa enorme dos depósitos arquivais virgens.

Ordenou que em Portugal se procedesse à cópia de documentos brasileiros e assim recolheu, para o fundo do Instituto, notável massa de elementos da maior valia.
Mas os nossos arquivos, longamente, continuariam, contudo, a merecer o descaso dos governos, dos particulares e até dos especialistas.

Surgem, porém, em 1875, os Anais da Biblioteca Nacional, sob a orientação moderna de revista de publicação documental e bibliográfica. Inspira-os, por diversos anos, a conjugação dos esforços e do devotamento de Ramiz Galvão, a quem magnificamente secundam homens do valor de Vale Cabral, Capistrano, Teixeira de Melo, Jansen do Paço, Meneses Brum, Batista Caetano, etc.

A eles se deve a divulgação de tesouros documentais e bibliográficos, sobretudo esse, inestimavelmente precioso, e até agora insubstituível, Catálogo da Exposição de História do Brasil.
Na década de 1880 a 1890 imprimem-se os primeiros tomos das espaçadas publicações do Arquivo Nacional, menos valiosas do que as congêneres da Biblioteca.

Os volumes do Instituto Arqueológico Pernambucano revelam, entre outros, os resultados do rendosíssimo iter de José Higino aos acervos batavos.
Conhecedor da riqueza de alguns arquivos provinciais, sobretudo dos de sua terra natal, a Bahia, e sabedor da desídia que ameaçava a existência destes repositórios preciosíssimos, inspiradamente opera Vale Cabral a sua concentração na segura custódia da nossa grande livraria nacional, com tamanho acerto hoje confiado à vossa guarda de depositário fidelíssimo.

Benemérita faina!
Não se realizassem e estariam dispersos, Deus sabe onde, aqueles códigos ricos, à semelhança do que sucedeu com um dos mais preciosos destes livros do Brasil primevo, por Borges de Barros encontrado em mãos de um colecionador do Extremo Norte.

Singelamente, explicara este que um seu parente, passando, havia longos anos, pela Bahia, recebera o manuscrito, a título de recordação pessoal do amigo que o hospedara, o então diretor do arquivo provincial!

– Ora! Era livro que, desde muito, ninguém mais pedira! filosofava o pitoresco diretor.
Em São Paulo o acervo inestimável das Atas da Câmara Municipal jazeu num desvão de cômodo, contíguo à sala das sessões do Júri, durante mais de meio século. Providencialmente, não apareceram jurados desejosos de conhecer os pormenores da vida municipal paulistana nos primeiros séculos.
Assim mesmo, de 1880 para cá, extraviou-se o primeiro livro da série, o que encerra as vereanças de 1560 a 1562.

Do Rio de Janeiro mandou Cândido Mendes de Almeida pedi-lo emprestado e obteve-o! Pouco depois morria, porém, o eminente consultante, e o código jamais voltou ao seu dono, hélas! É esta pelo menos a tradição corrente no arquivo paulistano.

Assim também se extraviou o primeiro livro das atas da Câmara de Santo André da Borda do Campo, manuscrito de excepcional valia e o mais antigo documento da organização municipal no Brasil.
Do Arquivo de Minas Gerais ausentes se acham muitos dos mais evocativos e valiosos documentos das primeiras idades mineiras, peças da maior relevância para a história do bandeirantismo.
Legítimas joias do patrimônio do grande Estado central, dele se alhearam há poucas dezenas de anos, segundo é voz corrente, e sua reincorporação ao instituto que os perdeu seria a mais justa e a mais desejável.

Com a República começaram os nossos arquivos a organizar-se e vivificar-se. Assim também, desponta a maioria dos diversos núcleos regionais de estudos de nossos fastos, cujos serviços já se mostram avultados.

No Império, além do Instituto Histórico Brasileiro só realmente prosperara o Instituto Arqueológico Pernambucano. O seu homônimo de Alagoas obscuramente vivera. Alguns congêneres de outros pontos do Brasil, haviam desaparecido, após efêmera existência. O do Ceará apenas acabava de ser fundado.
Em 1894 enceta Antônio de Toledo Piza a rica série, hoje extensa, dos Documentos Interessantes, revelação das riquezas do arquivo paulista, em que se inclui soberbo trabalho: o fruto do longo iter de Basílio de Magalhães no Arquivo Nacional.

Imprime Melo Morais Filho os poucos tomos dos Anais do Distrito Federal, pequena sequela de volumes onde há bons mas tumultuários elementos.
Inicia Xavier da Veiga, em 1896, a Revista do Arquivo Público Mineiro, repositório de muita coisa de primeira ordem e de muito joio também.

E assim por diante...
Intensifica-se a produção dos Arquivos e dos Institutos. Surge a contribuição do Arquivo da Bahia, editada pelo incansável Borges de Barros, o trabalhador emérito e digníssimo, há semanas desaparecido; do Rio Grande do Sul, com Florêncio de Abreu, Simsch, Eduardo Duarte; do Pará, com Viana, Belido; do Ceará, com o exímio e seguro exumador que é Studart, etc.
E, fato sumamente significativo, aparecem os primeiros mecenas do Documento, ótimo índice de progresso cultural, como, fato virgem em nossos anais, é o da fundação do grande, rico e lindo museu histórico, fruto exclusivo da generosidade de um particular, este que Alfredo Ferreira Lage doou à sua cidade natal de Juiz de Fora.

Imprimem-se papéis pertencentes a colecionadores como os do soberbo acervo do grande erudito que é Studart, os do belo e honesto sabedor que foi Moisés Marcondes.

A esta feição pertence a rica série “Eduardo Prado” devida à generosidade sabedora de Paulo Prado e à orientação indiscutida de Capistrano. Nela figuram peças de excepcional relevância, como as valiosíssimas Visitações do Santo Ofício a que ainda, com Capistrano, editastes e comentastes, assim como o fizestes, à reedição fac-similar da viagem de Clandio d’Abbeville.

Seguem-se-lhes o Diário da navegação de Pero Lopes de Sousa, a que Eugênio Teixeira de Castro tão doutamente comentou.
Ninguém, contudo, como Washington Luís, de longe, tanto operou pela divulgação dos nossos repositórios documentais.

Largo tempo, empregara-o no, por vezes, penosíssimo decifrar do acervo paleográfico bandeirante de São Paulo, a que os insetos papirófagos e as degradações de toda a espécie, decorrentes do tempo e da antiga desídia secular, ameaçavam de completa e próxima destruição. Valera-lhe isto o aplauso caloroso de Capistrano em uma expansividade não habitual ao mestre cearense.

Publicadas as valiosas monografias sobre a vida obscura do homeríada Antônio Raposo Tavares e o governo acidentado de Rodrigo César de Meneses em São Paulo, afastou-o a política do campo da História.

Deixou-o, porém, do modo mais generoso, decidido a pôr ao alcance dos estudiosos a massa documental cujo deletreamento tantos esforços lhe custara.

Prefeito da metrópole paulista fez aparecer os numerosos e alentados volumes das Atas e do Registro da Câmara de São Paulo, série extraordinariamente notável. Por ela perpassam três e meio séculos e surgem os mais valiosos elementos para o melhor conhecimento da história de nossas instituições, nas páginas bárbaras de uma linguagem lusitaniforme, traduzidas por paleógrafos do valor de Francisco de Escobar e Manuel Alves de Sousa.

Presidente de São Paulo, ordenou a publicação da série extensa dos Inventários e Testamentos que tanta coisa espelham da vida do Brasil primevo.

Empossado na Presidência da República, mandou divulgar largo material do Arquivo e da Biblioteca Nacional na nova série dos Documentos Históricos.

Imitando o exemplo da Câmara de São Paulo começou Curitiba a publicar o seu largo arquivo, entregue ao eminente sabedor das coisas do Paraná, que é Francisco de Paula Negrão.

No exterior, renovando os processos de Joaquim Caetano da Silva e de Varnhagen, executara Rio Branco a ciclópica perquirição documental que lhe valeria os triunfos de Missões e do Amapá. E Nabuco lhe acompanhara os passos. Prosseguiram as buscas, como as que Jerônimo Figueira de Melo, por iniciativa própria, realizou em Viena e as de Alberto Lamego, também por conta própria, efetuadas em muitos pontos da Europa.

No Ministério do Exterior, a cultura de ministros como Azevedo Marques, Félix Pacheco, Mangabeira, Melo Franco determina a cópia da correspondência internacional, a concatenação dos documentos obtidos nas diversas capitais europeias e relativos à nossa Independência.

Continuam as buscas requeridas por Calógeras. Realiza-as longamente, e com a maior dedicação, um dos nossos mais notáveis escritores: Alberto Rangel.
Assim também Pedro Souto Maior, tão versado nas coisas de Pernambuco, opera em Simancas e Sevilha, e Norival de Freitas, nos arquivos portugueses, ambos comissionados pelo Barão do Rio Branco, por Afonso Celso e Max Fleiuss, em seu contínuo e fervoroso zelo pela nossa tradição e a grandeza do Instituto Brasileiro.

Ainda é Alberto Rangel quem manipula o grande acervo pertencente ao Príncipe D. Pedro de Orléans e Bragança, procedendo ao inventário do opulentíssimo arquivo pessoal dos nossos imperadores.
Tínhamos depósitos de papéis e não arquivos realmente organizados à moderna. O primeiro desses grandes acervos remodelados foi o da Cúria Metropolitana de São Paulo com o seu meio milhão de peças, talvez.

Em que estado se achava! Era de confranger! Cometeu o Arcebispo D. Duarte Leopoldo e Silva o serviço de seu restauro a notável especialista: Francisco de Sales Collet e Silva.
Ingente o labor deste grande arquivista e cartista, nobilíssima personalidade que acaba de desaparecer, sob o maior aperto de coração de quantos lhe conheceram as virtudes eminentemente católicas e o cavalheirismo perfeito.

Muito largamente dispendeu o ilustre antístite, mas hoje dispõe de uma instituição da maior valia e eficiência, pois não nos esqueçamos de que às eras primevas do nosso país se aplica o velho brocardo relativo às chaves de Pedro e à história medieval.

O segundo dos nossos grandes acervos, organizados à moderna, foi o do Ministério das Relações Exteriores, obra concebida pela clara inteligência de Octavio Mangabeira, apoiada num estado maior de realizadores da valia de Maurício Nabuco, Fernando Lobo, Fernandes Pinheiro, Mário Araújo e Cassius Berlinck, e secundado por numeroso corpo de valorosos auxiliares.
São suas instalações o que de mais inteligente se pode conceber, únicas, em todo o país, e talvez escassamente igualadas no resto do mundo.

Compreendendo que o problema essencial para os nossos climas é o combate à sevandija dos curculionídeos papirófagos, apresenta o Itamaraty um aparelhamento maravilhosamente adequado a este fim.

Alarga-se dia a dia, imenso, e em todas as direções a exploração de nossos fastos. 
Os institutos históricos estaduais, notavelmente, imitam a atuação de, seu decano, o grêmio glorioso fundado por São Leopoldo, Januário Barbosa e Cunha Matos, objeto do constante desvelo de D. Pedro II e dentro de três anos centenário: o Instituto Histórico Brasileiro.

Por ele indefessamente zelam Afonso Celso, Max Fleiuss, Ramiz Galvão, Manuel Cícero, mantendo-lhe a grande tradição e imprimindo-lhe novas e fecundas diretrizes. Promovem congressos de história nacional e americana, produzem fartos e ricos tomos novos da velha e opulenta Revista, fazem realizar traduções e cópias documentais, reimprimem obras clássicas de nossa bibliografia.

Valorosamente seguem os institutos estaduais ao seu maior. Largas contribuições se adensam em suas Revistas, algumas delas apenas de ontem, por assim dizer, como se dá no Rio Grande do Sul em magnífico exemplo.

Sob o estímulo admirável de Bernardino de Sousa e seus companheiros, opera um deles, o da Bahia, verdadeiro prodígio, fazendo uma instalação de sede positivamente notável, como centro de cultura, como biblioteca e como museu.

Explora-se por toda parte a história regional com verdadeira minúcia.
Resenha sobremaneira extensa teria de proferir se apenas me limitasse a citar os monografistas jovens que cerram fileiras em torno dos especialistas já consagrados, de obra menos recente, como Braz do Amaral, Teodoro Sampaio, Bernardino de Sousa, Wanderley de Pinho, para a Bahia; Lúcio dos Santos, Feu de Carvalho, Abílio Barreto, Albino Esteves, N. de Sena, para Minas Gerais; José de Mesquita, Estêvão de Mendonça, Virgílio Correia, para Mato Grosso; Studart, Eusébio de Sousa, para o Ceará; Lucas e Henrique Boiteux, Costa Pereira, para Santa Catarina; Mário Melo, Estêvão Pinto, Samuel Campelo, para Pernambuco; Alberto Lamego, pai e filho, Matoso Maia Forte, Figueira de Almeida, Clodomiro de Vasconcelos, Antero Manhães, para o Rio de Janeiro; Aurélio Porto, Borges Fortes, Rego Monteiro, Sousa Doca, Alfredo Varela, Eduardo Duarte, Spalding, Adroaldo de Mesquita, Otelo Rosa, Manuel Duarte, Bahlis, Darcy de Azambuja, para o Rio Grande do Sul; Francisco Negrão, Romário Martins, Artur Ferreira Reis, Coriolano de Medeiros, para o Paraná, o Amazonas, a Paraíba; Leôncio Ferraz e Hermínio Conde, para o Piauí; Teodoro Braga, Jorge Hurley, para o Pará; Pais Barreto, para o Espírito Santo, Dunshee de Abranches, para o Maranhão, Venceslau de Almeida, para Alagoas, etc., etc.
A quantos estudiosos de valor não estarei, porém, fazendo a grande injustiça da involuntária omissão do nome, nesta sumária resenha dos servidores atuais da nossa tradição? 

Em São Paulo, verdadeira coorte esquadrinha a dilatada seara ainda mal esclarecida dos fastos regionais. Pela contiguidade deste movimento, de que comparticipo, estou em condições de lembrar maior número de nomes de monografistas, vários deles já senhores de larga e prestigiosa obra, como Alcântara Machado, Paulo Prado, Alfredo Elis Júnior, Yan de Almeida Prado, Antônio de Alcântara Machado, Eugênio Egas, Carvalho Franco, Afonso de Carvalho, Plínio Airosa, Djalma Forjaz, Dias de Campos, Soares de Melo, César Salgado, Campos Aguirre, Ataliba Nogueira, Leôncio Gurgel, Amilcar Salgado, Geraldo Ruffolo, Nuto Sant’Ana, Nicolau Duarte, Dácio Correia, Leopoldo de Freitas entre outros muitos estudiosos coordenados pela atuação de Torres de Oliveira, à testa do já quadragenário Instituto Histórico de São Paulo, carregado de ótima folha de serviço à tradição regional e nacional.
Torna-se a especialização cada vez mais intensa, surgem as monografias municipais construídas sobre largas bases. Assim se dá, por exemplo, com Itu e Nardy Filho; Juiz de Fora e Abílio Esteves; Cataguazes e Astolfo e Artur de Rezende; Belo Horizonte e Abílio Barreto. Assumem até proporções inesperadas, em sua exaustividade, como em relação a Taubaté pratica Félix Guisard Filho a propósito do ninho dos bandeirantes do ouro.

Em torno do Instituto Brasileiro, coordenado pelo incansável Max Fleiuss, trabalhador entusiasta e fecundo, que bela série de nomes!
Aí estão Basílio de Magalhães, Tavares de Lira, Vilhena de Morais, Pedro Calmon, Hélio Lobo, Virgílio Correia, Costa Ferreira, Marques Peixoto, Alfredo Valadão, Noronha Santos, Leão Teixeira, Wanderley de Pinho, Vieira Souto, Brandenburger e quantos mais!

Outro grêmio do mais elevado prestígio evoca o cadastro da Sociedade Capistrano de Abreu com Paulo Prado, Eugênio Teixeira de Castro, Luís Sombra à testa e a quem secundam Jaime Coelho, Jacobina Lacombe, Urbino Viana, Luís Flores de Morais Rego, etc.
Isto sem contar este largo rol de rebuscadores, não agremiados, do mérito de Alcides Bezerra, Tobias Monteiro, Escragnolle Dória, Jônatas Serrano, Batista Pereira, Pedro do Couto, Barbosa Lima Sobrinho, Heitor Muniz, Baltazar da Silveira, etc.

Atraem os diversos ramos de nossa história a atenção zelosa dos especialistas. Antigamente só tínhamos cultores da história militar e da administrativa. E a do nosso intelectualismo se cifrava na história literária propriamente dita, esta assim mesmo recente.

Continuam os nossos fastos militares superiormente versados por autoridades do quilate de Tasso Fragoso, Lucas e Henrique Boiteux, Gustavo Barroso, Rego Monteiro, Sousa Doca, Mário Barreto, Borges Fortes, Paula Cidade e tantos mais.

Ao seu lado a história diplomática enriquece-se com a contribuição de Hildebrando Acioli, Rodrigo Octavio, Mário de Barros Vasconcelos, etc. A administrativa, com a de Fleiuss. A religiosa assaz descurada, durante os últimos decênios, volta a ser largamente tratada por autoridades como D. Duarte Leopoldo, Fr. Fidélis Mota, Cônego Raimundo Trindade, etc.

Os problemas sociológicos, tão intimamente ligados aos históricos, atraem a atenção dos pensadores, como se dá com Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Pedro Calmon, Paulo Prado, Alfredo Elis.
A análise das instituições e dos costumes, nascida em nossos dias; desenvolve-se intensa, inscrevendo-se entre os que a versam nomes do valor dos de Alcântara Machado, Pedro Calmon, Luís Edmundo, Noronha Santos, entre outros.

A do desenvolvimento cultural do Brasil opulenta-se com Artur Mota, Artur Neiva, Roquette-Pinto, Fernando Magalhães, Gastão Cruls, Agripino Grieco e tantos outros.
E ainda há poucas semanas dura perda sofreu na pessoa de Ronald de Carvalho.
Em seu campo, seja-me permitido frisá-lo, inclui-se certa monografia forte que versa sobre as explorações científicas do país a que não sois estranho.
As especializações exaustivas, efetuadas dentro de restritos limites, são documentos excelentes de grande avanço cultural. Assim nos últimos tempos aí estão, verbi gratia, a monografia esplêndida de Félix Pacheco, sobre as origens da imprensa brasileira, e, nas últimas semanas, a exegese profunda de Almeida Prado sobre os nossos  povoadores primevos.

A heurística também apresenta documentos de primeira ordem, datando quando muito de ontem. De assuntos jamais cogitados se apoderam os estudiosos; assim Clóvis Ribeiro apresenta o belo Bandeiras e brasões do Brasil e Álvaro de Sales Oliveira tem quase pronta uma Numismática brasileira de insuspeitadas proporções. Preparam Laurênio Lago, Guerreiro de Castro, Marques dos Santos, Pereira Lessa, monografias sobre a medalhística nacional, paralisada desde a magnífica memória da Viscondessa de Cavalcanti, os nossos emblemas e estandartes.

A história dos fenômenos econômicos conta com uma falange de estudiosos e as suas monografias avultam, da lavra de perscrutadores como Victor Viana, Ramalho Ortigão, Hélio Lobo, Levi Carneiro, Pires do Rio, etc.
Nos nossos dias não há, por assim dizer, ramo de atividade nacional que não possua a sua bibliografia histórica, maior ou menor, sempre em todo o caso bem encetada e já nunca despicienda pela pobreza dos informes.

A biografia, igual e ultimamente, atrai numerosos cultores, a exemplo da extraordinária extensão tomada nas grandes literaturas mundiais.
E a ela se anexam as memórias, as coletâneas anedóticas, todos estes instrumentos dos petits à côté de l’Histoire. Faltavam-nos imenso e a sua ausência determinava a secura, a aridez das páginas de nossos fastos.

Procura-se, ao mesmo tempo, refazer os trabalhos restritos, lacunosos, desprovidos de elementos dos antigos resenhadores de vidas ilustres.
Pelo aparecimento de livro que marcou época enceta-se nova fase na biografia brasileira. Com o D. Pedro I e a Marquesa de Santos de Alberto Rangel renovam-se os velhos processos do gênero.
Numerosos os biógrafos contemporâneos inspirados pela apresentação exata e minudente da figura de seus biografados, como Pedro Calmon, Celso Vieira, Vilhena de Morais, Carolina Nabuco, Wanderley de Pinho, Djalma Forjaz, Henrique Nabuco e Lucas Boiteux, Dunshee de Abranches, Osvaldo Orico, Marcos de Mendonça, Reichert. E os genealogistas, obreiros de uma seara ingrata, num país de arquivos desbaratados, esforçam-se em reconstruir as trajetórias do povoamento por intermédio dos fios das gerações.

De quanto é penoso o labor, posso dar testemunho pessoal pelo esforço que me exigiu estabelecer a ligação de minha família materna com os troncos dos primeiros povoadores vicentinos. Também sincero prazer me trouxe este êxito: sentir-me preso à terra pátria por quinze gerações brasileiras!
Na primeira plana destes indefessos linhagistas colocam-se Aurélio Porto, Francisco Negrão, Borges Fortes, Samuel Soares de Almeida, Artur Vieira de Rezende, Wanderley de Pinho, Pedro Calmon, Leôncio Ferraz, para o Rio Grande do Sul e Paraná, Minas Gerais, a Bahia, o Piauí, etc.

Em São Paulo, onde outrora o gênero atingiu tão notável desenvolvimento, sobremodo mais volumoso do que no resto do país, com as obras memoráveis de Pedro Taques e Silva Leme, há um grupo de dedicados como: Paula Leite, Sousa Filho, Carlos Silveira, Pompeu de Camargo, Melo Pupo, Moia, Vasconcelos de Drummond, entre outros. E nota-se um surto de renascimento.
Durante larga sequência de anos, como que foram desprezadas fontes subsidiárias do mais alto valor, as dos depoimentos alienígenas, sobretudo os dos viajantes, no entanto cada vez mais tidas em apreço nos maiores centros culturais do Ocidente.

De capital importância se revestem não só para a história dos costumes como para a dos fatos políticos, escusado é lembrá-lo. Exemplo de tal frisante constituem as Notas dominicais de Tollenare. Nem entre nós se poderia fazer exceção a uma regra universal.

Continuam, destarte, praticamente alheias à nossa bibliografia numerosas obras capitais cuja tradução, ainda por se fazer, constitui fato positivamente vexatório, para os nossos créditos civilizados.
Vertido Southey, assim mesmo tardiamente, notável série de anos decorreu sem que se cogitasse de incorporar ao nosso acervo literário diversas obras estrangeiras da mais relevante importância.
Extrênuo paladino da correção deste erro grave foi Alfredo de Carvalho.

O afinco com que procurou explorar o veio dos relatos dos viajantes produziu magníficos resultados. A esta nova orientação, por toda a parte vitoriosa, prende-se, nos últimos tempos, a passagem para o português da obra de Handelmann, e, brevemente, com a comemoração do centenário do Instituto Histórico Brasileiro, a narrativa da enorme jornada de Spix e Martius, também confiada por Max Fleiuss à competência de D. Lúcia Lahmeyer.

Assim, com verdadeiro açodamento, consultam hoje os nossos estudiosos a contribuição xenobrasileira, a que tanto tendes interpretado, e como vós Studart, Melo Leitão, Eduardo Tavares, Rodolfo Jacob, etc.
Mas, neste campo, imenso há ainda a fazer. Continuam lamentavelmente inacessíveis livros e livros do mais notável interesse.

Basta apenas lembrar os que procedem do Brasil holandês, as obras capitais de Barlaeus, Marcgraf, Piso, Nieuhof, Montanus, as dos grandes cientistas e dos grandes viajantes do século XIX como Pohl, o Príncipe de Wied, Echwege, Darwin, Gardner, Burton, von den Stein, Ehrenreich, Koch-Grünberg, etc., etc.

Em outro campo, porém, processa-se um movimento de alto significado e fecundos resultados, o da restauração das nossas letras primevas por meio de reedições cotejadas e comentadas.
Coisa que outrora, há vinte anos passados, seria empresa consagrada a fragoroso malogro, hoje se traduz, no entanto, pela plena aceitação por parte do público.

Assim já estão postos às mãos dos consulentes muitos dos outrora inatingíveis volumes de nossas letras antigas.

Coube aos irmãos Weiszflog esta bela iniciativa a que benemeritamente vêm ampliando sempre.
Partindo da deliciosa História de Frei Vicente do Salvador, a que acompanham os comentários de Capistrano, quintessência da sabedoria do Mestre, prosseguiu com a Cultura e Opulência de Antonil, incomparável, insubstituível documento de nossa história econômica colonial, as obras de Pedro Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus, os dois cronistas básicos dos fastos paulistas, de Fonseca, o hagiólogo-biógrafo de Belchior de Pontes, e ainda com o sermonário e demais produções do glorioso e malsinado primeiro inventor americano até hoje ferozmente detratado pela inveja, a deslealdade, o erostratismo, este precursor imortal que foi Bartolomeu de Gusmão, sem cujo nome jamais se fará honestamente a história da Ciência Universal.

Mais vultosa do que esta série da Companhia Melhoramentos de São Paulo é a nossa "Coleção Afrânio Peixoto", a que tão justamente impusemos o nome ilustre de quem a ideou e impulsiona, daí se originando magnífica doação à nossa paleoliteratura.

Nela vemos, entre outros, os anônimos Diálogos das grandezas do Brasil e a História da Província de Santa Cruz. E ultimamente essas Cartas dos jesuítas e essas Cartas anchietanas erudita e sutilmente comentadas por Antônio de Alcântara Machado e pelo próprio propulsionador da belíssima biblioteca.
E lembremos ainda esses tomos avulsos como aquele cuja impressão se deve ao vosso esforço e ao de J. Leite, o nosso livreiro-bibliófilo, os Tratados da Terra e da Gente do Brasil do ilustre Fernão Cardim, a que coordenastes e saborosamente comentastes, as belas reproduções comentadas de Clado de Lessa, etc.

*  *  *

Este grande, este notável esforço que em tantas direções se efetua para o desvendamento das particularidades e intimidades de nossos fastos, procurei compendiá-lo em súmula, sobremodo deficiente contudo.
Pretendi apenas assinalar, documentando-o, o desenvolvimento notável tomado, nos últimos anos, pelos estudos da História em nosso país, movimento de insuspeitáveis dimensões para quem quinze anos atrás procurasse prognosticar o que poderia vir a ser.

Inçado de graves e numerosas lacunas, acha-se este esboço pontuado pela rememoração de nomes de algumas das principais figuras de nossa historiografia.
Omissões houve-as numerosas e injustas. Mas involuntárias, repito-o, friso-o, oriundas de lapso de memória.

Fenômeno sobremodo auspicioso, como índice de alta relevância, e a que não posso deixar de me referir, vem a ser o fato de que a História do Brasil se exterioriza cada vez mais nos meios elevados da cultura do Ocidente.
Assim melhor se integram os nossos fastos no conjunto da História Universal.
Já não se trata de estrangeiros a compendiarem o conjunto dos nossos anais, que tal já vem ocorrendo, secularmente, como o documentam numerosas obras que todos conhecemos, escritas nas principais línguas do Universo.

Algumas do valor de Southey, do interesse das de um Handelmann, de um Ferdinand Denis, outras desvaliosas, muitas insignificantes, algumas desprezíveis como a de Beauchamp, plagiário integral.
Vemos, em nossos dias, numerosos autores estrangeiros interessados já em pormenorizar largamente meros episódios de nossos anais ou feitios de nossa civilização.

Assim se dá, por exemplo, com Percy A. Martin, Rüdiger Bilden, Georges Raeders, Georges Le Gentil, etc., autores que à inteligência e à erudição sobrepõem a lealdade dos processos de composição.
E a nossa bibliografia, que já contava com o adminículo de obras excelentes, como por exemplo as resenhas de Garraux e de Canstadt, continua a chamar a atenção dos especialistas alienígenas.
É bem verdade que neste movimento de interesse pela perscrutação de nosso passado envolvem-se alguns milhafres literários. Do trabalho dos pesquisadores brasileiros entende ser res nullius. E assim com verdadeiro desplante se apavora com o fruto do labor dos pobres sul-americanos, gente a seu ver eminentemente tosquiável e escorchável.

Nestas condições vemos, por exemplo, o nosso grande Euclides da Cunha indignamente parasitado por um Cunningham Graham. Casos deste gênero se multiplicam entre os sectários da escola honesta e bimilenar do sic vos non vobis.

Num dos magazines de grande tiragem dos Estados Unidos, órgão de uma instituição pan-americana, publicou recentemente profuso autor sábias biografias de velhos cronistas nossos. São os frutos de suas pesquisas, sobremaneira penosas... nos textos impressos de escritores brasileiros, a respeito de cujos nomes sofre o honrado historiador de total e irredutível amnésia.

Surdo se mostra ao que lhe sussurra timidamente a consciência: Sic vos non vobis nidificatis, aves!
Ora! dirá, com os botões, se o próprio autor desses versinhos fez o que fez com a obra do pobre Ênio!
Privilégio não é deste ou daquele povo a prática destes métodos... asseados.
Eram outrora muito mais correntes ainda. Je prends mon bien partout où je le trouve, com toda a simpleza proclamava o comediógrafo imortal do século do Rei Sol.

À larga, nestes nossos Brasis, assim se procedeu sob a inspiração destes ditames.
Há apenas um século, talvez, incorporava Baltazar Lisboa singelamente, à sua obra, largos manuscritos de Pedro Taques como Capistrano descobriu. E Varnhagen, indignado, chamava a contas Abreu Lima, a propósito de proceder idêntico.

Entre nós, como alhures, continuam, e numerosos, os devotos, os devotíssimos de tais praxes impecáveis e algo rendosas.
Autores para quem a indicação das fontes de consulta constitui o mais árduo sacrifício, a mais dura e humilhante das confissões.

Política de avestruz! recorda a grande voz de Rui Barbosa em palavras que lhes atravessam contudo o insensível conduto auditivo sem os impressionar.
E os casos deste gênero reproduzem-se a cada passo e reproduzir-se-ão sempre.

*  *  *
Seria incompleto, porém, o meu rápido ensaio se acaso me não referisse aos trabalhos memoráveis de segunda escola histórica já de tradições seculares entre nós.

Emprega o seu numeroso corpo de adeptos métodos diametralmente opostos aos nossos.
E destes diverge, em absoluto, quanto aos resultados referidos.
Ao passo que caçamos em mata de limitada caça, arisca e de difícil apreensão, os nossos êmulos da segunda escola são os verdadeiros Nemrods dos mais ricos distritos cinegéticos.
Não há praticamente limites para os seus quadros de caça abatida.

Poderia a meu entender, e de acordo com os nossos pontos de vista, adotar como lema uma adaptação do famoso dístico de Eça: sobre a nudez total da fantasia descabelada o manto arquidiáfano da História.
Tão diáfano, até, quanto aquela célebre túnica do conhecido conto oriental cuja transparência levou certo rei à prática do nudismo perante os seus bons súditos.
Fato pitoresco, senão interessantíssimo: a imensa maioria dos sectários desta segunda metodologia procura, quase sempre, cuidadosamente, inculcar aos seus leitores que se norteia pelos nossos cânones!

Singular incoerência!
Não são estes, contudo, os ensinamentos e exemplos do expoente máximo de sua grei literário-científica, o historiador de quem todo o país conhece a lealdade dos processos, a franqueza da palavra, a valia e a graça dos achados e o espírito de exposição: o autor da História do Brasil pelo método confuso, o mestre humorista Mendes Fradique.

Como seu precursor, em matéria de sinceridade de processos, no rol extenso dos que cultivaram o gênero só conheço Roberto Maria de Azevedo Marques, o autor paulista, injustamente esquecido, do Lenço de Luiz XIV, livro pitoresco em que não se encontra sombra de Luís XIV nem o menor vestígio de lenço.

Viajantes filiados a este feitio numerosos averbam a nossa xenobibliografia, desde Francisco Coréal, no século XVII, até Savage Landor em nossos dias.
A ela também se prendem esses cronistas que nos contam, ingênuos uns, maliciosos outros, os prodígios da nossa zoologia fantástica.

E também os etnógrafos crédulos da teratologia americana, influenciados pela Imago mundi e os bestiários medievais cheios de coisas assombrosas. E ainda os geógrafos do Eldorado e seu competente lago de Parimá.
Com o decorrer dos anos avulta o rol dos hiperimaginosos interpretadores dos nossos fastos, estrangeiros e brasileiros.

Evoca a rememoração dos trabalhos dessa gens de imaginativa escaldante uma passagem da vida de Napoleão I, geralmente pouco divulgada. Deram-lhe Roberto de Flers e G. A. de Caillavet guarida na obra-prima que é L’habit vert.

Nessa comédia inimitável encontramos uma americana inflamabilíssima, a milionária duquesa de Maulévrier, preocupada em compor um libreto de ópera oriental, rigorosamente histórico e baseado em autêntico episódio da jornada do Corso no Egito.

Resumamo-lo, porém: Vê-se o futuro Homem dos Séculos assediado pela paixão simultânea de duas filhas de um paxá: as lindas Fátima e... Ernestina. Atende Napoleão à segunda das apaixonadas. Em certa ocasião em que, à margem do Nilo, com ela se entretém no doce colóquio da frase-feita, surge-lhe a desdenhada Fátima que, em seu tresvario, cose o futuro Imperador a punhaladas e deita-lhe o cadáver ao rio!

Escusado é lembrar que este libreto, rigorosamente histórico, recebe verdadeira ovação da nobre assembleia perante a qual é exposto.

De Leipzig, e em 1839, expunha o douto historiógrafo teuto H. Bellani ao público da sábia Germânia, ávido por tudo o que pelo vasto mundo se passa, como decorrera, terrível e longo, o dissídio entre dois dinastas irmãos.
Tratava-se da luta feroz entre “aqueles dois últimos malcriados da casa de Bragança” no próprio dizer de um deles, da porfia entre o imperador abdicatário do Brasil e o rei deposto de Portugal, ambos primeiros em sua nomenclatura majestática: D. Pedro e D. Miguel. Historiava o erudito Bellani, portanto, a contenda terminada pela convenção de Évora-Monte.

Eis um livro que muito merece as honras da tradução integral. Justifiquemos tal conceito por meio de um único exemplo. Em um de seus capítulos, compendia-se fiel, fidelissimamente, a narrativa dos amores do nosso primeiro imperante e da sua grande favorita, a única aliás jamais existente em terras americanas, sob os grandes moldes clássicos europeus e do melhor tomo, próprios das Pompadour e das Kingston, das Du Barry, das Lolas Montes e quantas mais. Não se pense, porém, que Bellani escrevesse o romance da Marquesa de Santos. O seu livro é de história, de História com H maiúsculo.
Viria, a seu tempo e hora, a novela, um século mais tarde, com esse livro delicioso em que o nosso Paulo Setúbal saberia, com maravilhoso tato, mover-se entre os escolhos da exação histórica e as exigências imperiosíssimas do interesse da fabulação.

A essa favorita brasileira, a quem o mestre Bellani, entre parênteses, chama Dona Luiza, filha de rico proprietário de vasto cacaual, nos arredores da cidade de São Paulo, conhece o imperial bargante nos dias de sua jornada de Sete de Setembro.

Sob a sombra das árvores da teobroma ele a seduz, deslumbrando-a com a possibilidade de, em justas núpcias, conferir-lhe a coroa e o diadema do recém-fundado império americano.
Abandonada, tenta a terna, infeliz e desambiciosa criatura suicidar-se, esgotada por alguns meses da mais ansiosa e angustiada espera.

Procura “em plena floresta tropical” enforcar-se com um cipó, mas salva-a a vigilância incessante de velho escravo índio.
Sabedor desse incidente horrível e ainda de que breve nasceria novo rebento imperial resolve “o mais íntimo dos confidentes de Sua Majestade, o diabólico mulato López”, assim o designa o nosso escritor saxônico, acomodar esta situação deplorável e perversa.

Por ele aconselhado, e usando das irresistíveis prerrogativas majestáticas, força Pedro I o casamento da ex-donzela do cacaual com um capitão de granadeiros de suas guardas, o Barão Von Schroetter, fidalgo alemão de velha linhagem, mas verdadeiro farrapo humano, emigrado para o Brasil e “sujeito que a troco de alguns cruzados se prontificaria a desposar, até, a sogra do Diabo”, nova, pitoresca e sugestiva expressão do mestre Bellani.

Vem o novo e feliz casal viver no Rio de Janeiro, mas furibundo ódio empolga a desditada.
Há de vingar-se de tamanha infâmia! Pedirá uma audiência ao imperial abandonador e aí, certamente, o apunhalará, tão certeiramente quanto Louvel, não havia muito, fizera ao seu régio primo, o Duque de Berry.
Mas velam os deuses pelo Imperador e o Império! Certo dia cai do cavalo o objeto de tamanho rancor. Cai, quebra uma perna, e, milagrosa coincidência! é recolhido exatamente à casa de Dona Luiza, onde permanece enquanto não chega o coche que, a galope, o deverá levar a recolher-se no castelo imperial da fazenda de Santa Cruz!

E ali se renova, fulminante, agora mais do que nunca intenso, o afeto da floresta.
Dentro em breve, favorita em regra do Imperador do Brasil e agraciada com o título de Marquesa de Santos, mostra-se Dona Luiza a despótica dominadora, a senhora absoluta dos destinos da monarquia americana, sob os olhos embevecidos, já se vê, do Barãovon Schroetter, promovido a capitão-mor!
Em nossas artes notável influência também tem exercido o método confuso, escusado parece-me lembrá-lo.

É ele quem inspira ao poeta italiano Rodolfo Paravicini o libreto do Escravo de nosso grande Carlos Gomes.
Assombrado, protestou meu Pai, e com a maior energia, contra a pecha de colaboração que lhe atribuíram em semelhante obra-prima. Nele entre muitas cousas de tal jaez ocorrem índios a falar em “cortes europeias” e em Oceano Atlântico. E nele se revela a existência, na era quinhentista de Villegaignon em 1567, de numerosa nobreza, de gentis-homens e fidalgas francesas, hospedada no magnífico castelo, cercado de jardins e parque, da Condessa de Boissy... em Niterói.

O nosso ilustre Pedro Américo, em sua tela tão notável Independência ou Morte!, igualmente sacrificou ao método confuso. Incidiu além de diversas impropriedades na seguinte e ultrainteressante antecipação: nas patronas dos cavaleiros da escolta de Pedro I colocou as armas do Império que se fundava exatamente àquela hora de 7 de setembro.

Uma das consequências mais pitorescas de tal feitio de espírito é, porém, o ajeitamento das circunstâncias que tais processos insinuam aos seus aplicadores. Assim, certa de nossas cidades entende certo dia realizar uma exposição regional e, para a cercar de maior prestígio, decreta, à fé dos mais controversos dados, antecipar de trinta anos a data do seu tricentenário!

E outra, solenemente, festeja o quarto centenário de sua fundação, por navegador célebre, que jamais às suas plagas aportou! E ainda por cima de tudo manda cunhar medalhas comemorativas de tal festa com a efígie do capitão-mor dessa armada quinhentista de naus... catarinetas.
Triunfos sobre triunfos, pois, da escola do mestre humorista, preciosa nesta nossa terra onde ainda tão pouco sabemos rir.

*  *  *

É mais que tempo, porém, de terminarmos.
No resultado do pleito de 2 de agosto de 1934, Senhor Rodolfo Garcia, não só se encerra a consagração da Academia Brasileira à vossa obra em prol da tradição nacional.
Traduz-se, ao mesmo tempo, o seu aplauso, à  corte atual, avultada e valorosa, dos propugnadores do melhor esclarecimento de nossos fastos.

Sois aqui o representante desses desbravadores, maiores e menores, da selva já largamente descortinada por Southey, por Varnhagen, por Capistrano de Abreu, mas onde muita mouta cerrada e larga subsiste ainda.

Aqui se achava esta Cadeira de Varnhagen à vossa espera. E a Academia Brasileira jubilosa, dela agora vos empossa...