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Oliveira Viana

O OCASO DO IMPÉRIO

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O traço característico desse grande movimento da opinião, que se seguiu ao golpe do Imperador contra os liberais em 68, era o de uma irritação viva, ardente, explosiva contra o “Poder pessoal”, considerado pelos liberais como uma deturpação do Poder Moderador, que a Constituição confiava à Coroa. E a verdade é que esta irritação era inevitável. Porque só os que ignorassem os nossos costumes políticos e a mentalidade dos nossos partidos poderiam supor possível que o Poder Moderador, supremo regulador do sistema parlamentar, pudesse funcionar aqui com a mesma perfeição com que funcionava entre os ingleses. Faltavam à nossa sociedade todas as condições para isto.

O governo parlamentar, como já vimos é essencialmente um governo de opinião, isto é, um governo cuja instituição num dado povo pressupõe a existência de uma opinião pública organizada. Ora, esta opinião pública organizada, capaz de governo, nunca existiu aqui, nem hoje, nem outrora.

Havia - como ainda há hoje - uma opinião informe difusa, inorgânica, que era a que se formava nos centros universitários, nos clubes políticos, nas sociedades maçônicas e principalmente na Imprensa. Esta opinião, aliás, tinha sempre um caráter artificial, era quase sempre um reflexo americano das agitações europeias. Só exprimia realmente o pensamento de uma pequena parcela das classes cultas do País. O Imperador não desdenhava de atendê-la - e assim o fez no caso da Eleição direta, no caso da Abolição, no caso da Federação.

Esta opinião, de origem habitualmente exótica, em regra, nunca aparecia pura e estreme; sempre se mostrava, ao contrário, muito impregnada das animosidades do partidarismo, muito comprometida com o espírito de facção, para que se pudesse considerá-la sempre como um índice sadio da opinião nacional. E, justamente, por isso, ela devia ter constituído para o Imperador, todas as vezes que era obrigado a organizar novo Gabinete, um dos grandes motivos de perplexidade.

Esta perplexidade do Imperador não devia ser menor quando ele, no intuito de conhecer a opinião do País, buscava-a, ou tentava buscá-la, na opinião dos partidos. Porque os partidos políticos do Império, imponentes embora pela sua massa, não tinham propriamente uma opinião; eram simples agregados de clãs organizados para a exploração em comum das vantagens do Poder. Certo, houve aqui uma fase em que os partidos tiveram verdadeiramente uma opinião: foi o período da Independência, do 1º Reinado e da Regência. Depois dessa grande fase histórica, pode-se afirmar com fundamento que os partidos políticos não representavam realmente correntes de opinião; os programas que ostentavam eram, na verdade, simples rótulos, sem outra significação que a de rótulos.

O próprio liberalismo da Constituição tornara, aliás, difícil esta discriminação muito nítida das opiniões. Zacarias exprimiu muito bem este fato no seu discurso de 18 de junho de 1870, no Senado:

“O argumento do nobre senador - dizia ele - envolve uma confusão de ideias manifesta: ‘O conservador no Brasil é necessariamente liberal, porque a Constituição do Brasil contém instituições santas, liberais; o conservador quer manter estas instituições; logo é liberal’”. O argumento poderia ser invertido pelos liberais, dizendo: - “A Constituição Brasileira contém instituições santas, liberais; o partido liberal quer mantê-las; logo, só o liberal é conservador”.

Já em 53, aliás, a chamada “política da conciliação”, de Paraná, é uma prova do vago, do indefinido, do incerto contido nos programas dos dois grandes partidos do Império. O fato é que nenhum desses dois programas representava convicções definitivas e sinceras. Tanto que os liberais, quando no governo, agiam sempre de maneira idêntica aos conservadores: o inebriamento do poder como que os fazia olvidarem os seus mais caros ideais, calorosamente pregados quando nas agruras da oposição. O programa liberal era uma espécie de trombeta sonora, que os liberais só se lembravam de clarinar com fogo, com brio, com ímpeto, quando, como em 68, o Imperador os atirava momentaneamente no ostracismo. Então, todo o País acordava sob um estridor imenso de toques de alarma, de sonoridades marciais, de cânticos de guerra, chamando a postos as consciências altivas para a defesa da Pátria, da Democracia e da Liberdade. Desde o momento, porém, em que, ao aceno da Coroa, retornavam ao poder, cessavam de súbito o trombetear formidável – e passavam a ser... como os conservadores.

O caso de Sinimbu é típico. Em 77, quando na oposição, ele pronunciava estas palavras de altiva e nobre verdade:

“Temos uma missão mais elevada - e é educar a população. Ora, esta educação não pode ser feita senão pelo exemplo, que é a primeira lição, a primeira base de qualquer educação. O povo tem os olhos fitos nos seus homens de Estado e se ele os vê dúbios, contraditórios, incertos, oscilantes em suas ideias, perde-lhes a fé e a confiança.”

Um ano depois, em 78, com a subida dos liberais, Sinimbu, chamado ao poder, realiza uma das mais violentas reações antiliberais da nossa história política. Para esmagar o Partido Conservador, onipotente até a véspera, usou recursos tais de compressão eleitoral, que chegaram a levantar protestos dos próprios seus aliados, os republicanos.

Uma das provas, aliás, mais decisiva de que os programas partidários não tinham significação prática está em que as grandes reformas liberais - a Eleição direta, a Reforma judiciária, as leis da Emancipação servil - foram todas obras realizadas pelos conservadores. Também os liberais, quando na oposição, acusavam a lei de 3 de dezembro de 1841 de ser o mais poderoso aparelho de compressão de que se poderia armar o Governo. Entretanto, durante o período de 62 a 68, em que estiveram no poder, nunca acharam tempo para tocar nesta lei - e foi justamente manejando esse formidável aparelho de compressão e arbítrio que eles conseguiram aquela majestosa unanimidade de 68!

O Partido Conservador não agia de modo diverso. Para não abandonar o poder, adiantava-se no caminho das inovações e apropriava-se das ideias pregadas justamente pelos liberais. Um conservador ortodoxo, Andrade Figueira, por ocasião da Lei Rio Branco, atacou com eloquência esse latitudinarismo doutrinário dos chefes conservadores e disse estas palavras cruéis:

“Pois um partido no poder há de renegar suas ideias e realizar as ideias dos seus adversários só pelo receio de que eles venham subir amanhã? O Partido Liberal, que explora o futuro, pode atirar-se a essas aventuras; mas o Partido Conservador, que marcha com passo certo, em caminho conhecido, não pode nunca dar os passos imprudentes, só para evitar que os seus adversários subam ao poder”.

Este mesmo latitudinarismo permitiu mais tarde aos conservadores uma mobilidade ainda maior nos movimentos de transigência. É Nabuco quem observa, referindo-se à Abolição:

“Quando a Monarquia se sentiu obrigada a tocar neste ponto delicado da economia social, o partido ultraconservador, os antigos saquaremas do Rio de Janeiro, educados por Torres, Paulino e Eusébio, passaram todos estrepitosamente para a República”.

Os dois velhos partidos do Império, como se vê, não tinham opinião, como não tinham programas. O objetivo era a conquista do Poder e, conquistado este, conservá-lo a todo transe: nada mais. Era este o principal programa dos liberais - como o era dos conservadores.

Essa atitude dos dois grupos partidários fazia com que o Imperador acabasse convencido de que não poderia encontrar na opinião dos partidos nenhum índice seguro das correntes interiores, que porventura animassem a consciência do País. – “Mas, Sr. Honório, onde estão os nossos partidos?” - perguntava, em 53, a Paraná.

No fundo, sente-se que ele dava uma importância pequena, ou mesmo, não dava importância alguma à opinião dos partidos. O golpe parlamentar de 68 é, na verdade, uma bela prova disto. Ninguém exprimiu melhor, e com maior conhecimento de causa, do que o próprio Zacarias este estado d’alma do Imperador. Disse ele, com efeito, na sessão de 18 de junho de 1870:

“O conservador não respeita o liberal; o liberal não respeita o conservador; o conservador flagela o liberal; o liberal flagela o conservador - e o resultado é que a Coroa tem em má conta um e outro”.

(O ocaso do Império, 1925)

 

O SIGNIFICADO SOCIOLÓGICO DO ANTIURBANISMO COLONIAL

(Gênese do espírito insolidarista)

No período colonial - para fora dos limites das grandes cidades ou vilas mercantis das zonas da costa, ou dos núcleos das zonas mineradoras, fervilhantes de população, adensada em torno das “catas” - o que vemos, como uma lei invariável, é que os núcleos urbanos ou vilarejos, porventura existentes nas regiões um pouco mais penetradas do interior (sertões nordestinos, matas e pampas do Sul), eram resultantes da ação urbanizadora das autoridades coloniais, e não criações espontâneas da massa - como o foram a vila de Campos ou a vila de Parati, erigidas por movimentos revolucionários dos próprios moradores locais.

Estes casos de iniciativa popular, entretanto, são tão raros e excepcionais que não merecem ser computados, nem destroem a regra geral de que - fora dos centros metropolitanos das Capitanias, que eram também centros de comércio marítimo e de pequenas indústrias artesanais - a formação das vilas e cidades é sempre um ato de iniciativa oficial, das autoridades da Metrópole, governadores de Capitanias, governadores-gerais ou vice-reis - e não da iniciativa do povo.

Fundar povoações e, depois, erigi-las em vilas era um título de benemerência dos governadores coloniais, um serviço prestado ao Rei, tão recomendável aos olhos da Metrópole e da Coroa como o serviço do povoamento dos sertões e o da civilização do gentio. Um dos mais operosos governadores da Capitania de São Paulo, o Morgado de Mateus, fizera a sua glória como “fundador de povoações e vilas”. Foi um dos governadores e capitães-generais que mais concorreram para a urbanização das nossas populações rurais. Só no platô do Iguaçu, no atual Paraná, fundou, além de outras, as vilas de Guaratuba, São José de Arapira, Santo Antônio de Registro (Lapa), Castro, Iguatemi, São Bento de Tibagi, Conceição do Caicanga, Porto da Vitória, Tamanduá e Vila Rica do Ivaí.

O objetivo destas fundações era “reunir os moradores dispersos” pelos latifúndios - o que equivalia a dar um centro religioso e administrativo e uma organização policial e judiciária aos moradores sitiados naquelas solidões, sempre ameaçados nos seus bens e pessoas pelas conspirações dos criminosos foragidos ou pelas conjurações do aborígine amotinado. Foi o que ocorreu com a fundação da vila de Lages: - “Outra povoação - dizia o Morgado, enumerando as povoações por ele fundadas - outra povoação nos campos das Lages, cem léguas depois de Curitiba, no caminho que vai para Viamão para ver se se juntam os muitos moradores dispersos, que há da parte de cima da Costa do mar”.

No período colonial, com efeito, afora as aglomerações mineradoras e os centros mercantis da costa, a vivência urbana nascia da imposição e do castigo: - e era o recrutamento que trazia a ela os moradores.

“Na carta régia de 22 de julho de 1766, por esta Secretaria de Estado ao Conde de Azambuja - relata D. Fernando José de Portugal num ofício a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em 1799 - se ordenou, por causa dos insultos que, nos sertões desta Capitania, cometiam os vadios e facinorosos, que todos os homens que neles se achassem vagabundos ou em sítios volantes, fossem logo obrigados a escolherem lugares acomodados para viverem juntos, em povoações civis, que, pelo menos, tenham 50 fogos para cima, com juízes ordinários, vereadores e procurador do Concelho”.

Todas as demais povoações e vilas fundadas tiveram o mesmo objetivo confessado. Isto queria dizer, pura e simplesmente, que se colocava ali um “capitão-mor regente”, com o seu corpo de ordenanças e o seu poder incontrastável. Ou um paulista antigo, com o seu pulso de ferro.

Este “capitão-mor regente”, em desempenho de sua missão, lançava um bando ou proclamação, convocando os moradores dispersos a se reunirem para esta fundação. Era o que se chamava “uma convocação”. Na fundação da vila de Lages, por exemplo, os “convocados” foram os carijós infixos e vagabundos, que erravam pela Capitania: - “... E lhe permito convoque para o dito efeito todos os forros carijós administrados que tiver notícia andem vadios e não têm casa, nem domicílio certo, nem são úteis à República, e os obrigue a povoar as ditas terras”.

“Convocados” - diz a Provisão. Era este o eufemismo do tempo; mas, os documentos nos dizem o que realmente significava esta convocação. Nelas eram empregados os mesmos processos drásticos e violentos das convocações para as expedições militares aos sertões “dos descobrimentos”. Disto nos é exemplo o que ocorreu com a expedição ao Ivaí em 1766:

- “Por se achar a ponto de partir a expedição de Ivaí, de que é comandante o guarda-mor João Muniz Barros - dizia o Morgado de Mateus ao capitão de Sorocaba em 1766 - ordeno ao capitão-mor da vila de Sorocaba faça pôr prontos no seu distrito todos os homens que se acham alistados para a dita expedição e os fará remeter ao porto de Araritaguaba, para daí se embarcarem e, antes disso, se lhe fazerem o pagamento, com que lhe assiste a Fazenda Real; e, para que nesta não haja perigo pela fuga, que podem fazer alguns soldados depois de receberem o pagamento, aos que forem menos estabelecidos e não  tenham quem fique responsável por eles, se lhes fará logo prender os Pais ou mulheres, se casados, ou parentes mais chegados... e todos os que forem repugnantes para o referido embarque, ou depois dele desertarem, serão logo presos donde quer que se acharem; e, quando não apareçam os mesmos soldados, depois de fugirem, e constar a sua deserção, se prenderão logo da mesma forma os Pais, mulheres ou parentes mais chegados deles à minha ordem”. E a um dos auxiliares imediatos do Morgado, o capitão Antônio Lopes de Azevedo, acrescentava, informando: - “A encomenda, que se fez a Antônio José de Carvalho (de correntes, grilhões, colares e algemas), já aqui se acha”.

Note-se que esta tentativa dos governadores - de agremiarem os “moradores dispersos” em povoações, sob a gestão poderosa e onipotente de um “capitão-mor regente” - nem sempre resultava feliz. Grande número destas povoações fracassavam e extinguiam-se. Outras só subsistiam, enquanto estavam sob o pulso de ferro do “capitão-mor” regente; logo que este se retirava da povoação e a entregava a si mesma, os “moradores”, pouco inclinados à vivência urbana, iam evadindo-se, aos poucos, em fuga formigueira, para os seus sítios e fazendas. Foi o que se deu com as duas povoações fundadas na ilha de Cananeia, a mando do mesmo Morgado: - “Da primeira - informa Toledo Rendon - não resta mais do que a capelinha; da segunda, só resta a igrejinha, com poucos sítios de pescadores. Subsistiram aquelas duas povoações enquanto durou a coação (sic) do Coronel Botelho; depois, cada um voltou aos seus sítios”.

Atente-se nesta expressão de Rendon: “enquanto durou a coação do coronel Afonso Botelho”. Botelho era justamente o capitão-mor regente...

O núcleo urbano, constitutivo da povoação agregadora dos “moradores dispersos’, não vinha, como se vê de um sincretismo partido do povo. Este, embora sentisse necessidade da povoação, não tinham modo, nem jeito de mover-se, espontaneamente, para criá-la. Esta vinha de uma ordem da Metrópole ao seu capitão-general ou ao seu governador, que a transmitia, por sua vez, ao “capitão povoador e fundador”, logo investido no governo dela.

Para obrigar estes moradores dispersos a residirem na “povoação” e a terem nela residência tanto quanto possível, o governador ou o capitão-mor empregava a coação e a ameaça de castigos severos. Daí o fato da ausência ou da retirada do capitão-fundador nestas microcidades improvisadas ser como o sinal de deserção e da volta aos seus sítios da parte dos moradores.

Este absenteísmo urbano, aliás, estava na lógica da nossa formação social. Nada, realmente, nos podia levar ao municipalismo do velho direito foraleiro - dos “concelhos do povo” e das “assembleias de aldeia”, já desaparecidas desde as Ordenações; nem às microcomunidades agrárias da Península Ibérica (...); menos ainda ao “polismo” das populações helênicas. Muito ao contrário, tudo, na nossa sociedade colonial, nos educava e nos impelia para este antiurbanismo, para este centrifuguismo à aglomeração comunal - no que nos revelávamos inteiramente contrários à tendência dos povos peninsulares e mediterrâneos, das regiões da vide e do trigo, donde nos vinha o elemento povoador principal, todos inclinados, em geral, à comunidade de aldeia e à vivência urbana ou semiurbana.

Esta concentração urbana se operou, sem dúvida, no período colonial; mas, só se verificou nas zonas mineradoras. Nestas, a situação era inteiramente outra: - e a concentração era inevitável. Resultava do regime da distribuição da terra ali, inteiramente oposto ao regime de distribuição dominante nas zonas dos campos do extremo Sul, do planalto meridional e dos sertões do Norte. Porque, nestas zonas do ouro, as “datas concedidas” não tinham - como nas outras zonas - dimensões latifundiárias; eram pequeníssimas extensões, verdadeiros minifúndios, que não iam além de seis braças de testadas ou, em média, três braças de frente – “chãos’, como diziam, nas suas petições, os primeiros povoadores.

Excetuando este caso especial das zonas mineradoras e alguns centros portuários e mercantis da costa, o próprio sistema de povoamento e de distribuição da terra, aliás, nos tinha que levar naturalmente a esta inclinação antiurbanizante. Realmente, não se podia engenhar sistema mais intensivamente estimulador da dispersão da população, mais incompatível com qualquer tendência centrípeta dos moradores.

Em primeiro lugar, eram as terras agricultáveis distribuídas em “sesmarias”, cuja grandeza orçava, em regra, três léguas em quadra - e daí para cima. Os mais ambiciosos as pediam para si e para a família, para os filhos e parentes, e conseguiam extensões equivalentes a municípios: - “Famílias há inteiras - dizia o governador Paulo da Gama, da Capitania do Rio Grande do Sul - que estão possuindo 15 a 18 léguas de terra. Os pais conseguem três léguas e os filhos cada um outro tanto. Do mesmo modo se tem dado sesmarias de três léguas a irmãos e irmãs, e cada um por cabeça cedendo depois todos em benefício de um só”.

O que acontecia no Rio Grande do Sul acontecia por toda parte - nas capitanias do Norte, como nas capitanias do Sul. Não falo, é claro, das sesmarias iniciais, como as que foram concedidas ao Norte, nas primeiras fases da colonização. Estas eram enormes como províncias - e só as de Garcia d’Ávila, Domingos Afonso Mafrense e seus sócios de conquista dos sertões nordestinos e são-franciscanos contavam mais de uma dezena de léguas: - “doze léguas de terras a cada um, situadas nas margens do Rio Parnaíba’ - o que permitiu, só ao Mafrense, deixar, por sua morte, 39 imensos latifúndios criadores de “gado grosso”. No Regimento dado ao governador Roque da Costa Barreto, D. Fernando José de Portugal alude a estes desmandos nas concessões, reconhecendo “haver muitas terras de sesmarias nas Capitanias da Paraíba e Rio Grande do Norte, concedidas a muitas pessoas com notável desproporção nas datas, dando-se a uns quinze léguas e outros vinte e trinta”.

No Sul, a tradição destas prodigalidades em sesmarias não era menos corrente. Já Nóbrega, em carta de 1557, ao pedir ao governador Martim Afonso “uma sesmaria de sete ou oito léguas” para o Colégio de Piratininga, que ia fundar, confessava não lhe parecer pedido descabido, pois “há homens particulares em São Vicente, a quem se dá muito mais terra”.

Este regime se prolongou por todo o período colonial e, ao Sul, em Minas, já em época mais próxima de nós, um dos povoadores da Mata Mineira, comendador Manoel José Monteiro de Barros, fundador da gens numerosa dos Monteiro de Barros, que hoje se estende por Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, “alcançou do governo um grande número de sesmarias para si e para todos os seus filhos que já existiam, para uma filha que ainda não estava nascida e não sei se para todos os outros que estavam ainda para nascer”.

Este sistema de sesmarias individualistas ou particularistas preparava e estimulava, assim, a dispersão da massa colonizadora. Neste ponto, a colonização portuguesa fugia ao método espanhol - da propriedade comunária da terra e da economia coletiva da produção. Foi o que se deu no México e na região andina, onde ainda hoje encontramos sobrevivências no ayallú boliviano e nos ejidos mexicanos, restos ou do antigo comunarismo indígena, ou da antiga aldeia jesuítica.

Na própria economia do açúcar, que era a atividade principal, a nossa política colonial metropolitana manteve o seu feitio estritamente individualista e centrífugo. O “engenho real”, descrito por Antonil, constituía uma verdadeira autarquia econômica - um oikos, como diria Max Weber, possuindo uma organização produtiva de perfeita autossuficiência. Nada, nenhuma necessidade decorrente da lei ou da política impelia estes “engenhos reais”, ou as organizações menores, à aglomeração, à associação, à convergência de esforços para fins comuns. Basta notar que se tinha, por lei, que guardar a distância mínima de mil e quinhentas braças de engenho a engenho, ou de “meia légua”, segundo prescrevia uma provisão régia de 1681. É claro que, dadas as condições dos transportes do tempo, esta distância mínima criava o isolamento da população destes núcleos agrários.

Nas regiões do sertão, na zona dos currais de gado, onde dominava o regime pastoril, esta dispersão da população colonial se fazia ainda mais acentuada: decorria do próprio sistema de concessão das sesmarias ali e das condições impostas ao povoamento delas. Concediam-se quadras de três léguas, mas com uma intermediária, dentro da qual era proibido construir moradias ou residências: - “De três léguas das sesmarias - diz o escritor anônimo do Roteiro do Maranhão a Goiás - forma uma fazenda, deixando-se uma légua para a divisão de uma a outra fazenda: na dita légua entram igualmente vizinhos à procura dos seus gados, sem, contudo poderem nela levantarem casas e currais".

(Instituições políticas brasileiras, 1949)