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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Cicero Sandroni

Senhor Nelson Pereira dos Santos;

Nos meses finais de 2003, quando o poeta Ivan Junqueira, presidente da Academia Brasileira de Letras, pediu aos seus colegas de diretoria, o acadêmico Evanildo Bechara e este orador, um programa de conferências para o ano seguinte, lembrei-me de que em 2004 o filme Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos completaria meio século de existência e que o cineasta, no curso de sua carreira, realizara pelo menos uma dezena de filmes baseados em romances e contos de autores brasileiros. Sugeri então a inclusão, no programa, de um ciclo dedicado à obra de Nelson, homenagem que a Academia prestaria não só ao cineasta hoje por todos os méritos o patriarca do cinema brasileiro, mas também ao cinema, uma expressão artística de valor universal.

A sugestão do ciclo sobre o cinema de Nelson e a literatura foi aceita com entusiasmo mas... há sempre um mas quando se discute uma quebra da ortodoxia. Cinema na ABL? Vou explicar: para Glauber Rocha, o autor de um filme, isto é, aquele cineasta que trabalha segundo sua própria estética, suas idéias, e seu modo de ver o mundo, este artista independente e muitas vezes irritadiço e ríspido, embora genial, surge aos olhos de muitos produtores como um monstro. Consagrado na galeria dos imortais, mas ele mesmo um dos animais desse bestiário criado pelo mercado, Glauber tinha consciência de que o monstro, para os financiadores do cinema é aquele devorador dos recursos do fechado sistema industrial, ávido por conquistas comerciais ou então das verbas liberadas por um sistema de poder que exige e enquadra o cinema no figurino do proselitismo das políticas do momento.

Neste sentido, sob esta ótica feroz dos adoradores do dinheiro, daqueles para quem o ter é muito mais importante do que o ser, discípulos fiéis do deus mercado, o cineasta Nelson Pereira dos Santos talvez fosse parecido com o monstro glauberiano.
Por ser um dos acadêmicos que o conhecia há mais tempo eu sabia que, se ao dirigir e produzir seus filmes a independência artística era ponto de honra para Nelson, a convivência com ele constituía um doce privilégio.

Fizemos o ciclo com grande sucesso de público e aconteceu o que eu previra: surgiu um caso de amor entre Nelson e a Academia, um encantamento das acadêmicas e acadêmicos por aquele senhor gentil, afável, engraçado, inteligente, culto, autor de obra fundamental, patrimônio da cultura brasileira, enfim alguém que, ao reunir tantos atributos, poderia ser um dia, candidato perfeito à nossa enganosa e tão frágil imortalidade. Lembramos naquele então, que no correr de três séculos a história da nossa instituição registrou e registra a presença de inúmeros acadêmicos - patronos, fundadores e sucessores ligados ao teatro, a exemplo do nosso querido companheiro Sábato Magaldi, crítico, ensaísta e historiador do teatro brasileiro, cujos primeiros oitenta anos de vida, quase todos dedicados às artes cênicas, estaremos celebrando com alegria em 2007. Mas não encontramos um sequer ligado ao cinema.

Quando após a sessão de Saudade em homenagem ao grande homem que nos deixara o embaixador e historiador Sérgio Correa da Costa sugerir candidatura de Nelson, lembramos que a Academia Francesa elegera para o seus quadros o cineasta René Clair. E o  sucessor de Clair na poltrona 19 daquela Academia, é Pierre Moinot, intelectual intimamente ligado ao cinema e à televisão da França, responsável por vários programas de apoio do governo ao audiovisual francês e autor de mais de uma dezena de filmes para a televisão. E também pertenceu ao quadro da Academia Jacques Cousteau, cujos estudos oceanográficos filmados sob sua direção, constituem precioso tesouro cinematográfico. No sítio da Academia Francesa, Cousteau aparece como oceanographe, cinéaste et essayiste.

Senhor Nelson Pereira dos Santos;

Fundada na última década do século XIX, a Academia Brasileira de Letras celebrará o seu centésimo décimo aniversário em 20 de julho de 2007 dentro de um ano, portanto. Mas a invenção do cinema, precedeu a Academia Brasileira de Letras em dois anos. A primeira demonstração pública do cinematógrafo, aparelho inventado pelos irmãos Auguste e Louis Lumière ocorreu a 22 de março de 1895 e a primeira sala de cinema foi aberta em Paris a 28 de dezembro do mesmo ano, no sub solo do Grand Café

Ao registrar os primeiros fotogramas pela sua câmara Lumiére imaginava estar inventando uma nova brincandeira para divertir as crianças, desde as primeiras rodadas da manivela sabia que trabalhava em uma nova forma de arte. Uma arte hoje centenária, globalizada, admirada por bilhões de pessoas e capaz de se apoderar de tal forma dos artistas dedicados a criá-las, ao ponto de um dos grandes cineastas do nosso tempo, Federico Fellini declarar que fora do estúdio, fora das luzes da sala, da materializacão de fantasias ou sonhos, da maquiagem dos atores, da criação de uma ordem estética, fora da atmosfera de um momento de filmagem, se sente um pouco vazio. Em suas palavras: “quando não estou filmando sinto-me no exílio.”

Fellini resumiu o drama, a tragédia e até a comédia do cineasta impedido de realizar sua obra, manietado por razões econômicas ou políticas, muitas vezes ignorado em seu próprio país ou garroteado por esquemas comerciais que impedem a distribuição dos seus filmes. Uma das vítimas desse assassinato cultural foi, sem dúvida, Glauber Rocha. Faço questão de transcrever suas palavras:

“O drama de Eisenstein no stalinismo não é diferente daquele de Orson Welles com a RKO ou de John Huston com a Metro: o autor é um individualista feroz e agressivo, mas sua sobrevivência depende de integração numa prática coletiva: tem de ceder para não morrer (como John Huston) ou morrer para não ceder (como Eisenstein) ou fugir, driblando, para não morrer nem ceder (como Buñuel). Chaplin, Rosselini, Welles – os mais agressivos – são cercados a cada passo: Bergman, num caso excepcional, é o único que, na Suécia, consegue uma manifestação  tranqüila: como Antonioni ou Resnais, Bergman é um tranqüilo e simultâneo cantor da decadência burguesa”.

Esta fúria incontida este desejo de criar novos mundos começa a partir das primeiras cenas de “Le voyage à la Lune”, de Meliès “Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Sugere novas idéias, capazes de revolucionar o mundo com uma tomada na escadaria de Odessa no filme “Couraçado Potemkin” assim  como o fez Einstein; alimenta sonhos  por um mundo melhor ao mostrar as lágrimas de uma jovem que descobre no vagabundo de Chaplin o seu benfeitor ou nas ilusões construídas por Frank Capra para amenizar a recessão americana de 29, tão bem descrita nas “Vinhas da Ira”, de John Ford. Tudo o que é humano acontece, seja na cena de amor de “Les Amants” que escandalizou nossos pais, nas imagens Inolvidáveis de “Terra”, de D (o) evjenko, nas palavras eternas de Shakespeare pronunciadas por Olivier no seu “Hamlet”, na amplidão neorealista da cena final de “Roma Cidade Aberta”, de Rosselini, nas delirantes coreografias de Bubsy Berkeley, no estilo elegante e leve de Fred Astaire e na beleza melancólica de “Armacord”, de Fellini ou de sua  Gelsomina, na música de Stokowski ilustrada pela “Fantasia”, de Disney, nos movimentos de câmara de Hitchcok em “The Rope”, o inovildável “Festim Diabólico”, o “Nosferato” de Murnau, na Intolerância de Griffith, na navalha no olho do leão Andaluz criado por Bumel.

E a luz. A luz do sol em “Vidas Secas”, de Nelson ou em “Deus e o Diabo”, de Glauber, luz e sombra do expressionismo alemão, o claro escuro de Ingmar Bergman ou o zigoma iluminado de Ingrid Bergman em “Casablanca”, a luz opaca de Gregg Toland no “Cidadão Kane”, de Orson Welles, a iluminação de Fritz Lang, ao inventar, com “Metropolis”, a cidade do futuro, a luz e as cores esmaecidas de Kubrick em “Barry Lindon”, e até mesmo a luz quase borrada do tecnicolor de Nathalie Kalmus nos filmes de Carmen Miranda, a luz, enfim, como se Goethe intuisse a invenção do cinema ao pedir mais luz, mais luz em seus momentos finais.

Os cineastas citados até aqui, um pouco a lá diable são alguns dos meus preferidos, mas existem outros, é claro, esqueci muitos, seria infindável lembrar aqui o nome de todos os que, elevaram o cinema ao patamar de arte imortal. E é escasso o tempo para falar do cineasta, que apesar de ter visto todos os filmes importantes e fundamentais da história do cinema, absorveu tudo, antropofagicamente, à maneira de Oswald de Andrade, mas não se ligou a qualquer escola, criou seu estilo, sua linguagem cinematográfica, seu dizer fílmico, enfim, sua arte, a qual hoje consagramos com o adjetivo imortal, embora em substância já estivesse destinada a perdurar, agora apoiada pela restauração de todos os seus filmes sob o patrocínio da Petrobrás.

Se foi longo o caminho da foto em movimento à moviola, a novidade chegou com rapidez ao Brasil e no dia 8 de julho 1896 realizou-se a primeira sessão pública, numa sala de projeções instalada na rua do Ouvidor. Citar todos os pioneiros do cinema brasileiro levaria meia hora. Para homenageá-los, lembro Humberto Mauro, Mário Peixoto, Alberto Cavalcanti, Luiz de Barros. Poderia citar tantos mais, mas para ligar o cinema à Academia.

Permita-me neste momento contar a história do filho de um dos fundadores desta Casa, José do Patrocínio Filho um apaixonado pela nova arte?

Nos Idos de 1909 o empresário Cristóvão Guilherme Auler, dono do cine-teatro Rio Branco, instalado na então Avenida Central, resolveu fazer cinema sonoro à sua maneira. Com uma câmara do cinema mudo, filmou resumos de a Viúva Alegre e Sonho de Valsa com os cantores, acompanhados por piano, com a recomendação de que deveriam articular bem as palavras das letras das canções e dos diálogos. Quando o filme mudo era exibido, os artistas permaneciam ao lado da tela e do pianista, para dublar a eles mesmos, obedecendo rigorosamente ao movimento labial do momento da filmagem. E assim nasceu no Rio de Janeiro o cinema sonoro. As fitas—faladas, nome pelo qual ficaram conhecidas, demonstraram que o gênio brasileiro e a nossa capacidade inventiva, embalados pelo famoso jeitinho pátrio, anteciparam-se ao método rudimentar do cinema sonoro americano que só em 1927 conseguiu fazer com que seus atores falassem e cantassem nas telas, na exibição de O CANTOR DE JAZZ, estrelado por Al Jolson. E hoje, diga-se de passagem, estouram os tímpanos dos nossos ouvidos com o exagerado som Dolby Stereo onde até quando um lenço cai no chão dá a impressão de que o Apocalipse começou.

No dia 14 de junho de 1909 morre o presidente Afonso Pena e assume o poder o vice-presidente: Nilo Peçanha. No seu primeiro discurso o presidente Nilo declara que não tem outro programa, que não seja, em suas palavras, a política da “paz e amor”, expressão também muito em voga na política brasileira dos nossos dias, quase um século depois. A frase é logo glosada pela imprensa da época e acaba dando título a um filme-revista “gênero absolutamente novo e original” escrito e dirigido por José do Patrocínio Filho e lançado, com grande publicidade, no cine-teatro Rio Branco.

O roteiro de Patrocínio Filho para a fita-falada Paz e Amor foi talvez o primeiro, escrito por um autor brasileiro diretamente para o cinema e obteve êxito “retumbante, extraordinário e consagrador” na descrição do nosso confrade Raimundo Maga1hães Júnior. Exito tão grande que chegou até nós, na última campanha eleitoral.

Não obstante as implicâncias de escritores brasileiros do início do século e até de alguns fundadores da Academia com o cinema é bom não esquecer que os nossos cineastas, desde os primeiros tempos procuraram nas grandes obras da literatura nacional inspiração para realizar seus filmes. José de Alencar, escolhido por Machado de Assis para patrono de sua cadeira, será talvez o escritor brasileiro com maior número de livros levados à tela. Sua obra literária constitui um veio inesgotável para os cineastas de todos os estilos, mas eu ouso sugerir que o romance de Alencar com mais qualidades cinematográficas é a sua própria vida.

Mas, se Alencar é o romancista mais filmado, Nelson Pereira dos Santos é o cineasta brasileiro em atividade mais empenhado em filmar livros de autores brasileiros.

Seu primeiro trabalho em cinema foi o de assistente de direção do filme O SACI de Rodolfo Nanni, baseado no livro infantil de Monteiro Lobato. Em seguida, para citar apenas os filmes baseados em obras literárias BOCA DE OURO, de 1962, baseado em peça de Nelson Rodrigues. VIDAS SECAS, de 1962/1963, baseado no romance de Graciliano Ramos. EL JUSTICERO, de 1966/67 baseado na novela AS VIDAS EL JUSTICERO de João Bethancourt. FOME DE AMOR, de 1967/68 Inspirado na novela História para se ouvir de noite, de Guilherme Figueiredo. AZYLLO MUITO LOUCO, de 1969/70, adaptação livre do conto o ALIENISTA de Machado de Assis. TENDA DOS MILAGRES de 1975/77 baseado no romance de Jorge Amado. MEMÓRIAS DO CÁRCERE de 1983/84 baseado no romance de Graciliano Ramos. JUBIABÁ de 1985/86/87 baseado em novela de Jorge Amado. A TERCEIRA MARGEM do Rio de 1993/94, inspirado em contos do livro de Guimarães Rosa. CINEMA DE LÁGRIMAS de 1995, baseado na obra de Silvia Oroz.. Curta metragem: UM LADRÃO baseado no conto de Graciliano Ramos. MISSA DO GALO baseado no conto de Machado de Assis. Como produtor: A DAMA DO LOTAÇÃO, de NevilIe d`Almeida baseado na peça de Nelson Rodrigues. Documentário para a televisão CASA GRANDE E SENZALA, série em quatro capítulos baseado na obra de Gilberto Freire.  LA DRÔLE DE GUERRE, de 1986, baseado no diário de guerra do escritor Raymond Queneau, produzido na França para o Centro Georges Pompidou.

E em 2003 realizou o documentário lançado em 2004, RAIZES DO BRASIL, sobre a vida e obra de Sérgio Buarque de Hollanda, livro cujos 70 anos de existência a ABL homenageará em seminário a realizar-se em novembro na cidade de São Paulo em coordenação com o Itaú Cultural.

Segundo sua biógrafa, Helena Salem, autora do excelente livro Nelson Pereira dos Santos, o sonho possível do cinema brasileiro o nosso novo confrade nasceu de um parto difícil. Profissional hábil, a parteira resolveu o problema e assim dona Angelina Binari do Santos, filha de pais italianos, emigrantes da região do Veneto, e natural de Caçapava, no interior de São Paulo, deu à luz ao meio dia de 22 de outubro de 1928 em São Paulo. Ela desejava dar ao filho o nome de Marco Antonio, “como marcava na folhinha”, devia ser o santo do dia, mas o pai, Antônio Pereira dos Santos, paulista de Vargem Grande do Sul e alfaiate de profissão com oficina instalada em São Paulo, preferia que fosse Nelson. Apaixonado por cinema, cujas salas freqüentava todas as noites, seu Antônio se encantara com um filme mudo, cujo personagem principal era o Almirante Nelson, o intrépido marinheiro inglês que derrotou a esquadra francesa de Napoleão em Trafalgar. E assim o menino foi batizado com o nome do Almirante  o que poderia tê-lo predestinado para uma carreira na marinha: mas o nome Nelson chegou ao menino pelo cinema e assim foi o cinema que o marcou. Todos os domingos seu Santos levava a família para assistir a uma maratona de filmes à tarde em um camarote no cine-teatro Colombo, no Brás. Nelson, o caçula, , embora ainda fosse um bebê também ia. Sua mãe, precavida, levava a mamadeira. Para o casal e os filhos mais velhos, garrafas de água, leite, queijo, pão salame e guaraná. Quatro horas de sessão de uma às cinco, durante anos. Assim a família Pereira dos Santos viu todos os filmes considerados hoje os clássicos da época. A paixão pelo cinema iniciou-se pela emoção, e o prazer de conviver com a mágica dos filmes que Nelson viu na infância.

Cito palavras de nosso novo confrade:

“Meu pai adorava cinema, sabia tudo sobre os filmes e foi ele quem me iniciou nos mistérios da arte cinematográfica. Eles eram espectadores normais, não eram cinéfilos eruditos. Iam ao cinema por prazer, reconheciam e vibravam com os seus ídolos,  os grandes atores da época. A minha primeira relação com o cinema foi essa, o resto veio mais tarde; o cineclube, a consciência de fazer cinema e a possibilidade de fazer cinema no Brasil”.

Com a iniciação cinematográfica em tenra idade quando chegou ao Colégio Paulistano e mais tarde à escola estadual presidente Roosevelt, já era um ”cineasta” que se politizou e aderiu ao Partido Comunista. Lia Jorge Amado e Graciliano Ramos escritores que tiveram grande influência na sua formação. Para ajudar no orçamento familiar, trabalhava como revisor no Diário da Noite, antes de ir para o colégio. Ainda estudante, foi preso por pixar muros em prol da campanha pela Constituinte de 46. Mais tarde, entrou para a Faculdade de Direito de São Paulo celeiro de um sem número de artistas e intelectuais e polarizava a vida política dos estudantes no Centro Acadêmico 11 de Agosto. Nelson redigia matérias para o jornalzinho comunista da faculdade e, depois, críticas de cinema para o Hoje, Diário do Partido. Participava ainda do grupo de teatro “Os Artistas Amadores” trabalhando como uma espécie de “ponto” nos ensaios.

Aos vinte anos, viajou para Europa num cargueiro com amigos, acolhidos em Paris por Carlos Scliar e descobre a obra do documentarista holandês Joris Ivens, a grande     influência dessa época entre os jovens aspirantes a cineastas. As idéias de Ivens que valorizavam o conteúdo dos filmes e pregavam mensagens de confiança para os homens na luta por uma vida melhor. Nelson absorveu bem essas idéias e incorporou-as em seus filmes mais tarde. No entanto, a notícia inesperada da gravidez da sua namorada a antropóloga Laurita San´Ana, falecida em 1999 e o CPOR não concluído mudam os planos de Nelson de ficar dois anos em Paris e cursar o IDEC (Institut des Hautes Etudes Cinematographiques). De volta ao Brasil casou—se com Laurita: Casado e com um filho, Nelson começou a trabalhar em jornais como inúmeros outros cineastas de sua geração.

O primeiro contato com o fazer cinema aconteceu em 1950, com “Juventude”, documentário em l6mm sobre os jovens de São Paulo, que se destinava ao Festival da Juventude de Berlim. No ano seguinte, foi convidado por Rodolfo Nanni para ser assistente de direção em “O Saci”. Logo depois partiu para o Rio de Janeiro a convite de Rui Santos e trabalhou como assistente de direção do filme “Agulha no Palheiro”, de Alex Viany o crítico de cinema que passara anos em Hollywood como correspondente da revista O Cruzeiro. Gostou tanto do Rio de Janeiro que resolveu trabalhar aqui e hoje faz parte da bancada da paulicéia desvairada desta Academia.

Nelson era assistente de direção de Paulo Wanderley no filme Balança mas não cai, baseado no famoso e popularíssimo programa da rádio Nacional. Algumas cenas rodadas em favelas impressionaram o jovem vindo de São Paulo, extasiado com a beleza da paisagem em contraste com a pobreza dos morros. E logo surgiu a idéia de mostrar aquele descompasso em um filme de ficção. A intenção era grandiosa, como ele mesmo lembrou mais tarde:

“O cinema era o meu objetivo, mas a literatura me influenciava muito, eu lia muito. Para filmar Rio 40 graus eu queria fazer uma obra inspirada na construção holística de James Joyce em Ulisses, criando um dia no Rio de Janeiro com muitos personagens, com muitas crianças vagando pela cidade...”

Embora mais tarde confessasse que não atingiu seu objetivo, pois não conseguiu estabelecer um nível de consciência desejada entre os personagens, Nelson admite que desenhou um mosaico da cidade, dos seus habitantes, do que eles poderiam estar pensando e sonhando.

Todos os que conhecem Rio 40 graus sabem que Nelson fez muito mais do que isso. Mas o modo pelo qual conseguiu produzir e dirigir aquele filme inovador, no precário cenário da nossa cinematografia da época, lembra uma epopéia tropical, um enredo de escola de samba ou um romance tragicômico, de peripécias onde tudo pode acontecer. Nelson tinha uma idéia na cabeça, e uma boa idéia, mas faltava uma câmara na mão isto é, faltavam recursos para financiar aquele filme pleno de calor e crítica social, imaginado por um paulista que quando não pensava no filme, passava o tempo todo lendo, especialmente os autores brasileiros de esquerda, que os banqueiros, possíveis financiadores, queriam ver bem longe, e se possível na cadeia.

A solução foi organizar uma cooperativa, na qual atores e técnicos trabalhariam num sistema de quotas, também compradas pelos amigos e as famílias dos amigos. Com este esquema, Nelson começou a filmar no dia 20 de março de 1954, ano de grande convu1são política e social que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas cinco meses depois. A primeira 1ocaç no estádio do Maracanã durou apenas dois dias: o dinheiro para a produção acabou e só foi possível retomar as filmagens três meses depois, a 26 de junho, quando a política, tendo como palco a cidade do Rio de Janeiro começava a se agravar.

E agora dou a palavra a Helena Salem, biógrafa de Nelson para se ter uma idéia das condições precárias em que o filme foi realizado. Reproduzo este trecho para deixar registrado nos anais da Academia Brasileira de Letras alguns detalhes da “indústria” do cinema brasileiro, em contraste com as milionárias produções de Hollywood da época que   invadiam sem cerimônia o nosso incipiente mercado, e para não perder o hábito, continuam, meio século depois, se comportando da mesma maneira.
 
Diz:

“O núcleo da equipe de Nelson, cuja idade média era de 23/24 anos, passara a morar junto, num apartamento de dois quartos e sala, perto da Praça da Cruz Vermelha, e naquela comunidade surgiram as maiores confusões. “É de se imaginar” lembra o fotógrafo Hélio Silva. “Oito a dez homens jovens entre moradores fixos e flutuantes, sem dinheiro, fazendo um filme independente. Segundo Zé Keti, Nelson procurava manter a ordem, “pois gostava das coisas certas, nas horas certas. Então ele deu uma função para cada um: dentro da equipe de cinema e dentro de casa”.

O fotógrafo Hélio Silva relata como era a vida no apartamento: A gente se levantava mais ou menos às cinco e meia, fazia um café puro, da para as filmagens e voltava às cinco horas da tarde, sem café, geralmente sem almoço. Quando tinha no cardápio era macarrão ao alho e óleo, quase sempre.

Como a maior parte do filme era rodado em exterior, nas ruas, à luz do sol, as filmagens dependiam essencialmente do bom tempo. Se chovesse a equipe permanecia em casa, às vezes, ficava-se até quase um mês sem filmar. E mesmo assim o filme foi feito.

No dia 26 de agosto de 1955 a Censura Federal liberou o filme para exibição proibindo-o apenas para menores de dez anos. Nelson negociou com a Companhia a distribuição em todo o país e só faltava acertar a data do lançamento quando veio a notícia que abalou a todos: o chefe do Departamento Federal de Segurança Pública decidira proibir o filme sob alegação de que era perigoso; por mostrar apenas os aspectos negativos do Brasil, seu conteúdo tinha potencial para gerar convulsões populares. E além disso, afirmava o Chefe de Policia, jamais a temperatura do Rio de Janeiro chegara aos 40 graus e dessa forma o próprio titulo do filme do cineasta paulista, suspeito de pertencer ao Partido Comunista, já começava com o propósito de ofender a Cidade Maravilhosa. Acontece A proibição de Rio 40 graus causou grande polêmica nacional, e o escritor 0rígenes Lessa, mais tarde membro desta academia, também publicitário e portanto conhecedor das leis do mercado afirmou que censura era burra, mas traria um beneficio, pois quando liberado o filme, bateria recordes de bilheteria. Na realidade o nosso querido Origenes enganou-se não foi bem assim. Liberado em 1956, no primeiro ano do mandato do presidente Juscelino Kubitschek, Rio 40 grau teve realmente um bom público nos primeiros dias, mas segundo o próprio Nelson, logo o boca-a-boca passou a informação de que a censura proibira o filme não pelas cenas de sexo, mas porque só filmava gente pobre. E muitos críticos não gostaram do filme. O do vespertino O Globo termina assim sua crônica (cimado por um bonequinho dormindo na poltrona): "(...) Outrossim, não se pode deixar de focalizar o sentido intencionalmente negativo e faccioso da fita, tudo de acordo com os interesses do mencionado sectarismo ideológico que aniquila a escola néo-realista. Em suma, Rio 40 graus é, antes de tudo, um filme maçante, conquanto seja panfletário, também".

Cacá Diégues disse sobre o filme:

“Mais até do que uma experiência artística, Rio 40 graus era um programa de vida ao qual seu autor nunca seria infiel, mesmo que seu cinema sofresse tanta transformações no futuro. Um programa de vida ao qual aderiu toda uma geração de adolescentes e universitários cinéfilos que juntos se tornariam, em breve, cineastas brasileiros que marcariam a história de nosso cinema de modo seminal. Se as telas do país, tomadas pela produção internacional e sobretudo americana eram as janelas através das quais esses jovens aprendiam a amar o cinema, “Rio 40 graus” foi a porta luminosa pela qual eles o invadiram.

Depois de “Rio 40 graus”, nunca mais a cultura brasileira poderia ser a mesma. Ela tinha sido levada para as ruas em busca da verdade e da compaixão em nome da justiça e da beleza, dos sonhos que alimentaram o que de melhor fizemos em nosso cinema. Se sua contemporânea Bossa Nova era, na música, aquilo que aquela geração sempre sonhara para o Brasil, um projeto de harmonia e elegância para um país miserável e em chamas, o cinema inaugurado por “Rio 40 graus” nos exibia a face dolorosa do Brasil que não queríamos mais que existisse e que, portanto, não devíamos esquecer.

“Rio 40 graus” fazia ressurgir um cinema brasileiro tantas vezes morto e ressuscitado ao longo do século XX inaugurando um ciclo que, mais tarde, se encerraria como modelo econômico mas que estaria sempre vivo e presente em tudo o que se fez depois dele até nossos dias. Um filme, portanto, fundador. Do cinema novo à atual pós retomada, nenhum filme, nenhuma idéia cinematográfica, nada foi feito entre nós sem que de algum modo, direta ou indiretamente se levasse em conta a obra de Nelson Pereira dos Santos.
 
De que forma Nelson se relacionou com o cinema novo?

Cito suas palavras:

"O cinema novo gerou um grupo de cineastas dinâmico. Cada um buscou à sua maneira, forma de investigar nossa realidade com estilo próprio. Na verdade, eu comecei a esquecer o cinema que não era feito aqui. Ficou muito mais interessante saber o que o Glauber Rocha estava escrevendo, ou o que o Leon Hirzman ou o Joaquim Pedro, ou o Carlos Diégues estavam fazendo em oposição ao que estava sendo feito pela nouvelle vague ou qualquer outro trabalho de qualquer outro diretor em qualquer parte do mundo independentemente da importância de cada um deles. Estávamos muito ligados à nossa própria experiência. Entre nós mesmos, a troca de idéias de informação era tão prazerosa, tão gratificante que trabalhávamos mais ou menos juntos, especialmente no começo."

Em “Vidas Secas”, filme de Nelson baseado na obra de Graciliano Ramos, o diretor estabeleceu pela primeira vez uma idéia clara de iluminação, da grande contribuição do fotógrafo Luiz Carlos Barreto. Assim como José Medeiros, Barreto era  seguidor da escola de Cartier Bresson. Os dois vinham da revista. O Cruzeiro, e, segundo Nelson, apresentaram a fotografia européia ao cinema brasileiro, até então baseado na escola do cinema norte-americano. Palavras textuais de Nelson:

“Luiz Carlos Barreto trouxe a luz de Cartier Bresson a “Vidas Secas”. Foi uma experiência chocante, revolucionária, radical, filmar sem filtro, com a lente nua, deixando-a brilhar diretamente sobre o rosto dos personagens. Essa foi a grande experiência do filme. Nada foi feito com luz artificial, tudo com a luz de Deus”.

E assim, com a colaboração do Todo Poderoso, acrescento eu, Luiz Carlos Barreto realizou seu trabalho exemplar,, hoje um marco na história do cinema mundial.

Quando resolveu adaptar o romance de Graciliano: “Você nunca será capaz de fazer a cena com a cadela Baleia porque não existe nela a consciência do ser humano. É a consciência de um cão. Como você vai transmitir o que Graciliano escreveu? E ele empresta, atribui um aspecto psicológico ao animal, à cadela Baleia. A cada momento que passa a participar da vida da família, ela tem o seu próprio universo, suas próprias visões, as quais o escritor descreve com grande precisão e sentimento. “Então – conta Nelson - eu me senti obrigado a fazer o mesmo no filme. E foi realmente um grande desafio. Desafio vencido pois a presença de Baleia pode ser sentida até o climax do filme — sua morte. Ela vive essa cena como se fosse um ser humano”. Nelson encontrou dificuldades para trabalhar, pois segue outra linha, na qual apenas os personagens tentam expressar seus sentimentos. Ele se preocupa com a linha de pensamento, não apenas nas relações humanas, amor, conflitos de interesses, conflitos sociais, conflitos morais, mas também no nível das idéias, como as idéias se relacionam, como elas entram em conflito com outra idéias. Por exemplo, o filme “Memórias do Cárcere” é um trabalho construído mais sobre o pensamento do personagem do que sobre os relacionamentos que ele mantém na prisão. E essa é a idéia de “Memórias do Cárcere”. Uma viagem pelo plano mental.

Em 1979 um jovem diplomata cinéfilo e candidato a cineasta foi indicado para dirigir a Embrafilme. No tempo em que administrou a empresa.

Quando resolveu adaptar o romance de Graciliano, Nelson ouviu vários avisos prestou bons serviços ao cinema brasileiro mas, ao apoiar a produção de “Pra Frente Brasil”, de Roberto Farias, o primeiro filme a tratar do horror dos anos de chumbo vividos no Brasil, foi demitido, voltou aos quadros do Itamarati e seguiu brilhante carreira até o cargo de ministro de Estado das Relações Exteriores, que hoje ocupa pela Segunda vez. Em seu livro Por uma questão de liberdade, ensaios sobre cinema e política, lançado em 1985 pela editora Tempo Brasileiro, do nosso confrade Eduardo Portella, Celso Amorim analisa o filme “Memórias do Cárcere”:

“Uma qualidade – dentre tantas outras – aproxima especialmente o cineasta Nelson Pereira dos Santos e o escritor Graciliano Ramos: o amor à verdade. E é este amor à verdade, que já se anuncia na maneira de refletir a face exterior dos objetos, mas que penetra também na intimidade das pessoas e das coisas, que faz de “Memórias do Cárcere” um dos maiores filmes inquestionáveis da nossa literatura, certo que Nelson e Graciliano diferem um pouco no estilo: a realidade que o romancista nos transmite é áspera, seca, cheia de arrestas. Já em Nelson, os seres tendem a ser apresentados de modo mais suave, como se o olho da câmara aparasse seus traços mais angulosos. Se o amargor com que Graciliano vê o mundo não exclui a ternura por seus habitantes (viventes), em Nelson este último sentimento é que dá o tom. É por isso talvez a união dos dois se tenha provado tão fecunda. A resultante final destas duas visões superpostas é uma radical honestidade na aproximação dos personagens e situações, impregnada de uma simpatia não menos profunda pelo destino do ser humano”.

Não poderia dizer mais ou melhor sobre o filme cujos momentos iniciais na apresentação do título e dos créditos evoca o estranhamento do Brasil, um Brasil onde escritores, professores, médicos, cientistas, artistas e intelectuais passavam meses nas prisões; e entre eles, ao lado de Graciliano, como Nelson bem evocou em seu discurso, Hermes Lima de pijama mas tão elegante e ereto, como se estivesse, talvez intuindo o futuro, no seu fardão de acadêmico. E enquanto surgem os títulos, a música de fundo, a Fantasia sobre o hino nacional brasileiro, de Louis Moreau Gottschalk sugere o precoce modernismo na música e ao mesmo tempo, o anúncio, nos primeiros acordes, de desconstrução de um símbolo nacional, a desordem a que fora submetido o país, por uma suposta ordem, injusta e cruel.

A filmografia de Nelson Pereira dos Santos inclui outros títulos, além dos já citados no início, baseados em obras literárias. Filmados com roteiros originais, “Rio Zona Norte”, “Mandacaru Vermelho”, “Fome de Amor”, “Como era gostoso o meu francês”, “Quem é Beta”, “O amuleto de Ogum”, “Estrada da Vida”, “Cinema de Lagrimas”, nove filmes a saber, o último, “Brasília 18%.” Mas como o tempo é curto para estudar tantos filmes, reservo alguns momentos para falar de seus filmes baseados em romances de Jorge Amado, “Tenda dos Milagres” e “Jubiabá.”

Jorge Amado confessou que “Tenda dos Milagres” é um livro de grande importância”. Porque eu creio afirmou o escritor que nele se discute o problema do povo brasileiro, o problema da cultura brasileira e da originalidade do brasileiro. Quando eu era muito jovem, em 1935, escrevi um livro em que minha preocupação já era a mesma. O livro se chamava Jubiabá e o problema era colocado apenas por um jovem escritor de 23 anos, cuja experiência humana, literária e política era ainda muito limitada. Vinte e cinco anos depois escrevi “Tendas dos milagres” (...). Nada do que está no livro, do que está no filme é inventado. São coisas que se passaram e que foram recriadas por  mim e depois por Nelson. Eu recriei no livro, dentro das minhas limitações, e Nelson recriou no filme, com seu imenso talento e sua grande qualidade de cineasta. Nossa relação durante a adaptação de “Tenda dos milagres” foi ótima. Porque Nelson não briga. Nelson concorda e depois faz o que quer. A relação foi inteiramente diferente. Porque eu nunca me meto em adaptação de livro meu, para nenhuma forma de comunicação (...). Mas com o Nelson não, com ele eu discutia muito, conversei muito, palpitei muito. Mas o Nelson fez uma coisa inteligente, me botou para trabalhar, enquanto isso ele filmava. (...) Ele fez exatamente o que deveria Ter feito – fez a sua adaptação. Ele conversou muito comigo, discutiu muito comigo. Eu disse tudo o que pensava e como pensava e ele fez exatamente o que achou que deveria fazer. (...) O filme “Tenda dos Milagres” é uma obra de Nelson Pereira dos Santos, pensado, criado e concebido por ele. Mas não deixa de ser meu. Afinal, no sangue de Nelson que corre ali dentro há um pouco de sangue.

Jubiabá, foi o livro com o qual Jorge Amado, na época com 22 anos, se firmou no panorama literário brasileiro. Ao adaptá-lo, Nelson Pereira dos Santos realizou, como sempre algumas modificações. Ao contrário do livro, cuja trama se orienta pela trajetória do personagem Baldo – que após a internação da tia em um hospício vai ser criado por uma rica família, abandona-a, vira mendigo, boxeur e posteriormente, encontra a razão de sua existência nos movimentos do trabalhadores.

"Jubiabá é fundamentalmente uma história de amor. Através dela quis abordar o problema racial brasileiro, principalmente do negro, do ex-escravo. A idéia do filme é contribuir nesse sentido, retomar essa questão da maneira mais simples possível. (...)"

Na realidade ele não foi apenas um adaptador de romances para cinema, mas também amigo de Jorge e de Zélia. Conheceu o casal ainda nos tempos de militância de esquerda, em São Paulo e mais tarde manteve com eles laços de amizade, que se estreitaram quando começou a rodar “O Amuleto de Ogum”, em Salvador.

Senhoras acadêmicas, senhores acadêmicos, minhas senhoras, meus senhores;

Em mais de meio século de atividades ininterruptas, Nelson não foi apenas o cineasta. Durante muitos anos exerceu a profissão de jornalista, e era excelente copy-desk. Trata-se também de um escritor, autor e co-autor de livros sobre o cinema e conferencistas cujas reflexões ajudaram a encontrar caminhos para o desenvolvimento do audiovisual no Brasil. Fundador de cursos de cinema em duas universidades brasileiras, foi professor desses cursos onde se formaram numerosos cineastas hoje em atividade. Produtor de cinema, ofereceu emprego a centenas de atores, cinegrafistas, iluminadores, técnicos, artistas e operários, filmes apresentados no exterior receberam prêmios e produziram divisas para a nossa balança comercial.

Trata-se de artista que contribuiu, portanto, ao seu modo, para dar uma ajuda à economia nacional. Diante de uma trajetória tão fecunda, diante deste exemplo seguido por tantos realizadores, muitos deles aqui presentes, vemos como é indispensável pensar o cinema brasileiro como arte, técnica, indústria e comércio, mas também como fator de identidade nacional. O termo lembra um clichê, é certo, mas o cinema é a arte que, por sua popularidade e caráter global, acessível a bilhões de seres humanos pode oferecer em um instante, o reconhecimento de uma civilização no caso a civilização brasileira, em escala doméstica e universal. Civilização e cultura com muitos problemas, mas estampando uma face própria, única, com seus pecados e virtudes, sua originalidade e seu marasmo nas telas do Brasil e de todo o mundo. Para alcançar este objetivo torna-se indispensável manter e ampliar uma política de apoio ao audiovisual, a exemplo do que fizeram todos os países hoje grande produtores, a começar pelos Estados Unidos.

Neste momento de homenagem a Nelson Pereira dos Santos não posso deixar de pensar como seria bom se o cinema nacional pudesse chegar a todos os brasileiro, como seria bom se os nossos filmes estivessem ao alcance de toso os bolsos e não de uma parte mínima da população, enfim como seria bom se o mercado interno brasileiro pudesse sustentar o nosso cinema. Gostaria de ver nossas crianças e jovens assistindo produções com dicção brasileira como nós, os das gerações mais velhas, vimos – e mantivemos em nossa memória colonizada – os desenhos animados de Walt Disney, as aventuras de Tom e Jerry, os musicais em tecquinicolor e stereofonic sound da Metro Goldwyn Meyer, os dramas históricos em Cinemascope da Twentieth Entury Fox, os policiais noir da Columbia Pictures, os filmes de mistério da RKO Pictures e os westerns de todos tipos, desde os da classe B da Republic, com Vera Rubra Ralston até os clássicos de John Ford com John Wayne.

Senhor Nelson Pereira dos Santos;

Os ilustres brasileiros que passaram pela cadeira nº 7 contam uma história rica a partir do seu patrono, o poeta Castro Alves, escolhido pelo fundador. Valentim Magalhães, seguido por Euclides, Afrânio Peixoto, Afonso Pereira Júnior, Hermes Lima, Pontes de Miranda e Dina Silveira de Queiroz e Sérgio Correa da Costa. Este último diplomata ocupante dos mais altos cargos, historiador capaz de fazer-nos entender os meandros da história do passado e dos eventos recentes. Foi também um incansável pesquisador das palavras. Mas antes de tudo Sérgio, nesta Academia, representou um tempo em que a convivência viu-se elevada aos melhores momentos, pois estar com ele constituía para todos nós a certeza de uma conversa estimulante, um colher de experiências e sabedoria, no trato afável, no olhar sincero, e muitas vezes no conselho sempre sensato. Sua memória, tenha certeza, será sempre cultuada nesta Academia.

Algumas vozes estranharam o fato de um diplomata e historiador ser sucedido por um cineasta. Logo se calaram pois não há, nesta Academia, necessariamente, sucessão por afinidades intelectuais, ou vaga cativa, embora não se exclua a possibilidade de um perfil parecido entre sucessor e sucedido. Mas no caso de Nelson existem pontos de contato seus filmes, quando exibidos no exterior, são embaixadores da cultura brasileira; e todos eles, mesmo na ficção mais fantasiosa, como no caso de “Asilo Muito Louco”, baseado em O Alienista, de Machado de Assis, também falam da nossa história; história dolorosamente narrada em “Memórias do Cárcere”, hoje um filme clássico da nossa cinematografia.

É hábito, no fecho dos discursos de recepção o orador que recebe dirigir-se ao recipiendário para convidá-lo, de forma afetuosa: entre, a casa é sua. Antes de repetir o conhecido fecho, eu gostaria de lembrar mais uma vez neste momento as palavras do nosso comum amigo Glauber Rocha: um filme se faz com uma câmara na mão e uma idéia na cabeça. Câmara na mão e idéias na cabeça.

Aqui mesmo, embora as câmaras estejam em outras mãos, sei que na cabeça de Nelson fervilham idéias sobre como aproveitar todo o material registrado até agora, para fazer um filme. Seja documentário ou delirante ficção, o filme certamente não terminará neste momento, no Salão Nobre do Petit Trianon da Academia Brasileira de Letras, quando se encerra a cerimônia, com a palavra Fim sobre a cena dos presentes aplaudindo a consagração. Agora, senhor Nelson Pereira dos Santos é hora de dizer Luz, Câmara, Ação” pois no momento em o presidente Marcos Vinicios encerrar a sessão solene, a palavra Início deve aparecer sobre a cena que estamos assistindo. Agora começa o filme que contará a sua vida.

Muito Obrigado.