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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Carlos Nejar

Foi com o domínio da palavra simples, humana, ágil, que plasmastes a revolução na ficção contemporânea, sendo apenas quem sois, de dentro para fora, com elementos – não modernosos – mas eternos. Não buscastes o que sois, veio: porque já trazíeis. Não mudastes a linguagem, na verdade foi a linguagem que vos buscou em contágio com a imaginação transfiguradora, nos aspectos sutis, atônitos ou astuciosos dos seres e do mundo, na descoberta de frestas da alma humana, que vos são peculiares. Como Kafka ou Proust não tentaram mudar: foram. Quem pode esquecer, por exemplo, a obra-prima, que é O Exército de Um Homem Só (com várias edições, aqui e no exterior) e o tipo notável, que é Mayer Guinzburg, ou Capitão Birodidjan, utópico, solitário, louco, humanista, batalhador por um tempo mais equânime. Basta ler este fragmento de sabor emocionante:

“(Birodidjan) o Capitão pôs-se de pé, tratava-se de mostrar firmeza, ele bem o sabia; afinal, ainda não estava convencido que ela não fosse inimiga.
– Como é mesmo o teu nome?
– Santinha.
– Não gosto. É um nome reacionário. Vou te chamar de Rosa de Luxemburgo.
– Rosa de quê? – Ela fez uma careta.
– De Luxemburgo. Nunca ouviste falar nela? [...]
– Não sei de nada disto – disse a mulher desconfiada – Eu não sou daqui, vim de Santa Catarina. Agora, se o senhor...
– Companheiro.
– Sim, se o companheiro acha que este nome é bom, a gente não vai brigar por isto, não é? Como é mesmo o nome?
– Rosa de Luxemburgo. – Não vou me esquece – soltou um gemido. – Ai, que dor de cabeça!”1

Um judeu aventureiro e universal. O reino é o Bom Fim de Porto Alegre: os habitantes de vossa infância, existentes, existidos ou inventados. Com o princípio norteador: “O que é meu é teu e o que é teu é meu.” Mesmo que as palavras de certo homem santo digam: “O que é teu é teu.” Seres rodeados, portanto, de solidão e fraternidade, unidos pelo processo emigratório, prosperando e fazendo a nova terra prosperar, como uma grande família, crendo com Max Weber e Adorno, na “utopia de uma ordem social mais justa neste mundo”. Infeliz é aquele que não acredita no que Oswald de Andrade chamava “a caravela das utopias”, mas infeliz também é o que extravia o senso de realidade. Tendes os dois, em alto grau. O que comprova o vosso recente Saturno nos Trópicos,2 ao falar da melancolia do brasileiro, originada dos europeus, irônica como o humanitas machadiano, alegre e, por vezes, desvanecedora e irresponsável, tal um Quincas Berro d’Água, de Jorge Amado, ou “Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, esperto e habilidoso qual “o homem que sabia javanês”, sem a “saudade de pedra” pessoana, de um Portugal nutrido da glória do passado, capaz de suportar a adversidade ou a doença, disposto a vencer “o nada, que é tudo”, sem o ritornelo do fado.

Não foi em vão que antes publicastes Os Trópicos – com a biografia de Oswaldo Cruz, parâmetro de vossa dimensão – não apenas de médico sanitarista – mas de um melancólico esperançoso, inovador, solidário, pronto para concretizar a utopia. E a respeito penso na pergunta de Adorno: “Não será a teoria uma forma genuína da prática?” Outro personagem marcante de vossa invenção, Max (de Max e os Felinos3), anda no barco com um jaguar ameaçante. E Max temeroso, cansado, deita e dorme no fundo da embarcação. Desperta com o felino a olhá-lo. Com um remo golpeia o animal e ambos se chocam no ar. E surgem marinheiros num navio, que o salvam, enquanto delira. Aporta em Porto Alegre e finda sua existência criando gatos de raça em paz, doces gatos angorás. Esse jaguar verdadeiro, simbólico – e por que não dantesco? – no meio do caminho, na selva escura de seu barco, são os felinos interiores que o enfrentam e os que na vida, cuidoso, transformou. E o que chamou a atenção, no exterior, de vosso nome e obra, não foram apenas as inúmeras versões de vossos livros a muitas línguas, mas o episódio de haver influenciado um grande premiado em concurso expressivo da Inglaterra, com influência, aliás, confessa. Não seria o Max da novela um embrião inconsciente, o mesmo que atracou no cais, em nevoeiro, no conto “O velho Marx”? “Cada livro rasga com um machado o coração” – afirmava Franz Kafka. E assim criais. Não seria o Dr. Miragem (1978) outro rosto da criatura sempre buscada no Capitão Birodidjan, entre loucuras e proezas? Talvez a vossa vocação médica e o conhecimento da alma vos acostumaram com a falha, o limite, o riso, o miserável, o sublime, o sardônico, o enganoso e a doença, o preço da esperança. E pelo lavrar obstinado, todos os vossos personagens possuem essa quixotesca perseverança. “Melhor despensa trago nas ancas de meu cavalo que a de um general quando viaja” – diz D. Quixote a Sancho (Cervantes). Não, não guardais no conto, no romance ou na crônica, ilusões com o universo em torno. No encantamento, há um mundo desencantado. Nem tampouco porfiais num pessimismo cáustico, demolidor. Rabelaisianamente, não vos atormentais, mas rides junto. Contador de histórias e aedo de um velocino verbal, que conhece a sombra e o ouro das palavras, administrais o real e não saís dele, mesmo com a singularidade dos pontos de vista, machadianamente oblíquos, o fantástico, o divinatório, com escrita econômica e direta, medida certa nas criaturas, hábitos, obsessões e alumbramentos. Sabeis, como o autor de O Processo, que “todas as revoluções passam, só fica o lodo de uma nova burocracia”. O que vos importa é que o humano vença o animal e a diferença de cada criatura seja respeitada. Porque trabalhais sobre as diferenças, até que o pó de nossa espécie, de “bichos da terra tão pequenos”, seja desvelado. Assim, o que parece anomalia, sobrevive e se impõe. O anti-herói é o herói, onde o “amar e esperar” de Schiller se individualiza.

Um fantástico renovado, entre as cinzas do poder e o sarro de outros jugos, sem dependência de nenhuma árvore, seja a de Borges, Cortázar, García Márquez ou Juan Rulfo, pelo sotaque peculiaríssimo, senso de fino humor e sátira, que conduzem à bondade da indignação. Desmede-se a fantasia na veracidade. Encanta o que toca, com centelhas repentinas. Reúne com perfeição a energia poética e o toque reflexivo, confabula, forja arquétipos sob o traço anedótico, o sorriso que lhe brota da perene fonte judaica. É sutil a técnica de narrar, um contar antiquíssimo e lustral, com a Bíblia surpreendida, um bestiário luxurioso e variável, um contar de milênios, aliado à simplicidade que amadurece com as flores. Narrador mestre na arte de pôr as pedras de vocábulos, fazendo-os romeiros e pródigos, entre o Artista de Praga e o luminar e onírico violino no telhado. O maravilhoso, às vezes, sobrenatural, de Brueghel ou de Marc Chagall com suas voantes figuras e a indeclinável, pictórica música. O Brueghel dos detalhes da grande torre de Babel, sem os triunfos da morte, e um Chagall com os pés no chão dos vivos, dos ofendidos e humilhados, dos que não aceitam sem luta o destino.

Eis o núcleo de O Centauro no Jardim (1980), livro magnífico (jamais esquecerei a honra que me deu de ali estar a epígrafe de poema meu), onde um homem-cavalo enfrenta as vicissitudes da diversidade, o preconceito que marca, universalmente, os que têm o direito de existir sem as regras impostas aos demais, querendo, como diz o historiador Simon Dubnov: “pão e liberdade, porém mais liberdade do que o pão”. Afim do realismo mágico latino-americano, com marca pessoalíssima, Scliar cria um ser poderoso, especial, que gera suas circunstâncias (sobretudo, o fato de ser diferente num mundo homogêneo), centauro aceito pelos progenitores: chocados, naturalmente, com a insólita aparência, acabam circuncisando-o. Mais tarde, o centauro jovem escapa da casa paterna e se une a uma centaura, fugindo para a Tunísia, onde, operados por um cirurgião, tornam-se pessoas normais, dispostas a viver a passiva e monótona ordem da classe média. Mas o ex-centauro se aflige, se angustia, deseja, arrependido, voltar à forma primitiva. Ao tornar à Tunísia, acha uma esfinge – metade leoa, metade mulher – que por ele se enamora. O amor é cura, enlevo, plenitude? Essa portentosa criação ficcional está entre as melhores de nossa literatura. Acaso não somos feitos de “uma série de infâncias?” – como queria Machado? Sim, a infância ferida, ou pesadelo scliariano, em que “a vida é regulada por um ciclo aparentemente eterno e imutável” é O Ciclo das Águas (publicado inicialmente pela ed. Globo, em 1977, depois pela LP&M). Baseia-se numa mulher demente, que o autor conheceu, como médico, no Lar dos Velhos: prostituta, dona de bordel. Depois se foi ampliando o ciclo, ou as ramificações da rede do tráfico de mulheres: judias pobres seduzidas pelas falsas e fraudosas promessas de venturoso futuro.

A Estranha Nação de Rafael Mendes (1983) é um romance histórico que trata do Brasil nos anos 80, sua corrupção e escândalos financeiros. A nação de Rafael Mendes é o viso da brutalidade social e econômica, alienadamente, a nossa. Não fica aí, sua análise dolorosa. Como Swift, em Gulliver, vislumbra um país, o mesmo Brasil, de homens mínimos, em Cenas da Vida Minúscula (1991), iniciando, corajosamente, com o aforismo de Franz Kafka, que apresenta “duas possibilidades de ser infinitamente pequeno ou fazer-se infinitamente pequeno. A primeira possibilidade é a perfeição, portanto inação, a segunda é o começo, portanto ação”. A independência coincidentemente se deu em 1882. Ali vige a inércia do tempo e, depois, a história é ação humana. Letras em caderneta de endereços não correspondem a nome algum. Não se computavam nem meses, nem horas, nem minutos. E é descrito um ser de dez centímetros de altura, o Pequeno Polegar (por sinal, consangüíneo da minúscula mulher criada por Clarice Lispetor, num dos contos de Laços de Família, embora O Pequeno Polegar seja da infância de todos). David une-se a Hiram, rei de Tiro, na Amazônia, com guerreiras amazonas, que perecem num maremoto. A rainha Mirina refugiou-se com as sobreviventes em Atlântida, onde, em batalha memorável, vencem os Atlantes. Foi como essas mulheres combatentes invadiram a Numídia e, em aventurosas expedições fenícias, localizaram uma região fluvial caudalosa e lhe deram o nome de Amazonas. O sucessor de Davi, Salomão, homenageou no Amazonas, o Solimões, como o rio de Salomão. E ele possuía poderes extraordinários, falava a língua dos pássaros, conhecia o poder curativo de certas ervas, privilegiadamente transportado por uma águia a qualquer lugar do universo. Teve, no entanto, de contentar-se com uma altura que, aos seres minúsculos, (“não é o gigante o fragmento de um anão”?) era descomunal, quando o texto usa mescla de tempos, criaturas, figuras bíblicas. Com um segredo que era preciso resguardar para não perder a inocência. Porém, não buscava a inocência, e sim, a verdade. E Salomão encontrou a mulher sonhada, a amazona que cavalgava sobre seus joelhos, quando sentava na cama. E a criança mínima, advinda dessa união, a glória encontrada. Mas a glória, mesmo abrasada, é o sal dos vivos. Glória, aliás, que concedestes a uma mulher, que, segundo vós, escreveu a Bíblia (Prêmio Jaboti, 2000), dentro do mesmo clima miraculoso das fábulas. Não, a glória é o sol dos vivos.

Acadêmico Moacyr Scliar, pedistes para que eu fosse simples, como o sois. Sucede, no entanto, que tendes a simplicidade conquistada, apanágio dos grandes criadores. Tentei, ao máximo, seguir vosso pedido. Pensando, analogicamente, com Voltaire: “Sócrates tem razão de querer simplicidade, mas ele está errado em ter razão tão em público.” Isso porque nós, escribas do possível, pela curiosidade de inventar, fazemos o que diz Lichtenberg: “Sacrificamos a metade da nossa vida para conhecer a altura média do barômetro no Paraíso.” E não há nada mais complexo do que o simples. Nada mais fantasioso do que um barômetro no Éden.

Trabalhais os mitos e eles vos trabalham. A mistura do maravilhoso dá a espessura de vossa criação. Pantagruel que se faz Swift e Kafka na alma de Gogol e a pele de Machado; o fantástico da realidade; a verossimilhança mágica, habitante consensual da linguagem, que pode ser, como julgava Proust, o modo de utilizar o guarda-chuva de uma senhora idosa. Em vós o fabular e alegórico se coadunam com a paródia; a inocência do narrar não perde essência alguma da verdade. Nunca perdeis a inocência, segredo da infância. Porque ela é inventável. Como os sonhos. Vossa obra é vasta e unitária. Há uma consonância interna em vosso cosmos, capaz de engendrar moradores grandiosos, modestos, pobres, grotescos, irônicos, visionários, felizes (“se feliz é o adjetivo que qualifica uma existência sem maiores preocupações ou sobressaltos” – assinalais), todos vívidos, lúcidos, às vezes, agudos, onde o contista singular reconhece as fronteiras da maturidade e é romancista por necessitar de murais do político ou da crueldade humana, exorcizando os malefícios do tempo, como o Goya da última fase. E sempre com lirismo, o dos quadros do Velho Testamento de Marc Chagall: vossa lógica é mágica, uma forte dose de razão para o absurdo, no livro de contos Um Olho Enigmático (1986).

Não, não se pode deixar de registrar a reunião valiosa de vossos contos, publicados num volume (pela Companhia das Letras, de São Paulo, em 1995, através deste editor dinâmico, que é Schwarcz), nem o Carnaval dos Animais (editado pela Movimento, de Porto Alegre, em 1968), modificado e com novas narrativas (pela Ediouro), em volume musical, com o mesmo nome da fantasia zoológica do compositor francês Camille Saint-Saëns. Num tom misterioso e terrível, onde avultam “O Torneio de Pesca” e “A Casa”, entre outros textos antológicos. O primeiro fala de um Antônio com dentes de ouro, voz baixa, palavras que trazem os braços cheios de peixes (não são as palavras, iscas?) e a expedição punitiva de um desembargador, não menos transgressivo, dominante, que lhe corta os braços e o amarra como prisioneiro. Paródia e autofagia, carnavalização backtiniana dos animais humanos. Antônio: albatroz de Baudelaire, atado na popa do barco, pelo tamanho das asas. O segundo conto dessa Arca de Noé scliariana, germe de livros futuros, versa sobre um homem que ainda não havia comprado sua casa, ao sofrer um ataque de “angina pectore”. Procura então, com os dias contados, um lar, onde morrer. Vai na imobiliária e fica com uma casa, fazendo, rapidamente, para dentro, a mudança de suas coisas. Ao deitar-se, enrolando-se no sobretudo, as tábuas estalam e ele ouve as vozes de seus pais, a tia, o avô, todos ali. Tal mundo vai-se entreabrindo, com a névoa espessa de um dos filmes de Fellini (La Nave Va). E atrás, há vales, lagos, florestas, o mar com as caravelas. Sim, é outro país – murmura o homem. Tem de começar tudo de novo, sem saber se as horas ainda existem. Assemelha-se ao clima da narrativa borgeana, O Imortal. Ou de como um mortal se faz imortal. Como vós, hoje, atrás da névoa espessa de tantas personalidades que desfilaram nesta Casa, há que começar tudo de novo. E Novalis dizia: “O verdadeiro caminho vai para dentro.” Ainda que, com Lichtenberg, percebamos que “toda a nossa história não é senão a história do homem acordado”.

Senhor Acadêmico, “companheiro” como exigiu o vosso Capitão Birodidjan, escreveis com a sabedoria que parece loucura iluminada, a sabedoria que a palavra candente insufla no gaúcho, com o Minuano, que tem os seus ouvidos feitos de horizonte e os olhos de profecia e semente. O contista é fabulista com humor e humorista irônico, de afluências riquíssimas, herdadas de Martin Buber, Below, Agnon, Singer, Malamud. Destes vossa irrefutável perspectiva à ficção contemporânea, que não é mais a mesma, a partir de vós. Aprendestes fazendo. De criar, fostes sendo criado. Afirma Arnaldo Niskier, ao analisar a pedagogia no autor de Quincas Borba: “Machado foi partidário, muito anos antes, da idéia de John Dewey, que consagrou o ‘learning by doing’, ou seja, aprender fazendo.” E aponta uma ditosa percepção de Lygia Fagundes Telles, citando aquele romancista exemplar: “Eu apertei os meus olhos para ver as coisas miúdas, coisas que escapam ao maior número.”

Senhores, há muito a mencionar, muitas coisas que se esquivaram e que apertei com os olhos. Entanto, tomo a liberdade, que será breve, Acadêmicas e Acadêmicos, de transcrever um fragmento encantatório e feroz, que resume a poética ficcional de A Orelha de Van Gogh,4 um livro justamente premiado com o Prémio Casa das Américas, de Cuba, no conto que se intitula “Mensagem”:

“Um Rei mandava cortar a cabeça dos mensageiros que lhe davam más notícias. Desta forma, um processo de seleção se estabeleceu: os inábeis foram sendo progressivamente eliminados, até que restou apenas um mensageiro no país. Tratava-se, como é fácil de imaginar, de um homem que dominava espantosamente bem a arte de dar más notícias. Seu filho morreu – dizia a uma mãe, e a mulher punha-se a entoar cânticos de júbilo: Aleluia, Senhor! Sua casa incendiou, – dizia a um viúvo, que prorrompia em aplausos frenéticos. Ao Rei, o mensageiro anunciou sucessivas derrotas militares, epidemias de peste, catástrofes naturais, destruição de colheitas, miséria e fome; surpreso consigo mesmo, o Rei ouvia sorrindo tais novas. Tão satisfeito ficou com o mensageiro, que o nomeou seu porta-voz oficial. Nesta importante posição, o mensageiro não tardou a granjear a simpatia e o afeto do público. Paralelamente, crescia o ódio contra o monarca; uma rebelião popular acabou por destituí-lo, e o antigo mensageiro foi coroado Rei. A primeira coisa que fez, ao assumir o governo, foi mandar executar todos os candidatos a mensageiro. A começar por aqueles que dominavam a arte de dar más notícias.”

Esse conto é perfeito. Parábola que bem podia ter saído da pena de Kafka; magistral na concisão, denso, racional e paradoxal, brônzeo no ritmo, ardiloso no impacto sobre o leitor. O que afirmastes a respeito de José Saramago, reafirmo a vosso respeito: “Grande escritor é aquele que extrai da palavra, de qualquer palavra, o seu significado maior.” (O Globo, 17.8.2003). Carlitos, que descobriu Chaplin, é este império mítico, o bairro do Bom Fim, tão minucioso como o cosmos. Ali se dá uma famosa Guerra. Como a outra na Europa, “A Noite de Cristal”. E nada vos passa oculto: sabeis de todos os viventes e esconderijos; os costumes dos emigrantes judeus, sua capacidade de adaptar-se à tradição gaúcha, até no chimarrão ou na bombacha, sem perder a fidelidade à Torá, aos ancestrais, à milenar tradição. E sois vós que o desvendais:

“Nas ruas Fernandes Vieira, Felipe Camarão, Henrique Dias, João Telles e Vasco da Gama – o coração do Bom Fim – predominavam as casinhas de porta e janela. Porta a janelas que estavam sempre abertas; a segurança não era importante naquele tempo, mesmo porque pouco havia para roubar. [...] Todos sabiam de todos, ninguém tinha segredos: a privacidade ali era um conceito estranho, ofensivo até.”5

E um parêntesis esclarecedor. Morei, em minha infância, na Rua Vasco da Gama – centro de vosso Bom Fim – e, mais velho, residi na Avenida Osvaldo Aranha, confrontando-me com alguns dos personagens a que destes vida. Reconhecíveis – se não pelos semblantes, pela imaginação, que também possui olhos. Outra experiência tivestes, que foi um pouco minha: transitastes pelos municípios de Erechim, Getúlio Vargas, Passo Fundo, a partir da Fazenda Quatro Irmãos. Exatamente nessas regiões, exerci o Ministério Público, participei com o povo, estive em festas ou em casamento numa das sinagogas. E foi a Erechim que o admirável John dos Passos, romancista norte-americano, visitou. E dessa cidade recolheu a melhor impressão: “Nunca conheci lugar igual, onde todas as raças se harmonizam e coexistem pacificamente.” Isso é o Brasil. Essa é a multiplicidade civilizatória, esta convergência na diferença de idéias e personalidades, esta união de crenças, temperamentos opostos, previsto por Isaías: “Bem-aventurados vós os que semeais junto a todas as águas, e dais liberdade ao pé do boi e do jumento.” (Is, 32:20). Ou o que anotastes: “[...] o que estava ali representado era uma versão da profecia de Isaías: o leão deitará com o cordeiro, e uma criança os conduzirá.” (Os Profetas de Benjamim Bok). Acaso não é a mesma criança gerada por Salomão (a sabedoria e a paz), no final de Cenas de Vida Minúscula?

Vaticinastes, e assim é tudo o que caracteriza a Casa de Machado de Assis, cujo fundador foi sabidamente mestiço, como é mestiça a nossa condição de “barrocos”, inventores de um novo mundo. E convosco tantos emigram, figuras que o tempo não consegue esquecer: Érico Veríssimo (talvez vossa vinda o convencesse, o que não logrou meu saudoso antecessor, Vianna Moog), o contista Samuel Rawet, Noel Nutels (que biografastes na Majestade do Xingu, premiado por esta Academia), Clarice Lispector, Josué Guimarães, Quintana, nossos amigos, Lasar Segall, Carlos Scliar (vosso primo pintor), Herbert Caro, Maurício Rosemblat (a quem devemos a Feira do Livro de Porto Alegre), Maurício Sirotsky Sobrinho, com sua estupenda visão empresarial, fundador da RBS. E os escritores e artistas vivos de nossa querência, com Martin Fierro: “aonde um gaúcho passa / Martin Fierro há de passar!” Chegais junto com o Rio Grande inteiro que vos ama, de todas as escalas e esferas; pampiano chegais, cidadão das palavras, cosmopolita do Arco-Íris. E encontrais, desde a fundação desta Academia, descendentes de tantas nações, todos da mesma estirpe da condição humana, todos vinculados ao amor da língua portuguesa, à gramática e à história dos sonhos, que não é só a borgeana “História da Noite”, mas a universal “História da Aurora”.Todos brasileiros. Escrevestes, com razão, que os emigrantes judeus se esmeravam na fabricação de móveis; era a forma de ganhar dinheiro. Com “a madeira, da qual conheciam cada fibra, mantinham um diálogo silencioso, um diálogo que vinha do shtetl (aldeia em iídiche) e talvez de antes, dos tempos bíblicos: Jesus, é bom lembrar, foi carpinteiro (obra citada, pág. 45). E é Nejar, que significa “Carpinteiro”, quem vos saúda, neste insondável e apaziguado mundo de todas as raças. E estão, aqui, presentes na memória, orgulhosos, vossos pais, José e Sara; vossos avós, Ana Scliar, Abraão e Edith, vosso irmão. Sois como o náufrago encontrado, anos depois, vivendo sozinho numa ilha em que construiu duas sinagogas. Ao lhe perguntarem o motivo, respondeu: “Esta é a que freqüento. Na outra, não entro.” Vossa obra são essas sinagogas líricas e mágicas, cheias de peregrinos. Só que não naufragastes nunca e ali reinventastes o mundo, o Bom Fim de sempre, o humor, a trilha de um povo, a sinagoga das palavras no seu mais alto sentido e aquelas outras que não entram nas sinagogas: somente no coração do homem.

Duas vezes recebestes prêmios que tivestes de pagar – um era o segundo lugar no Concurso da União Internacional de Contos Tchecos. Ao retirar os discos folclóricos, a que tínheis direito, pagastes taxa de importação, pois até o idealismo tem seu preço. Outra vez, o primeiro prêmio com uma carta escrita ao Pai (vossa vocação kafkiana?). Ao receberdes a premiação, estava anotado: “Vale um par de sapatos.” Escolhestes um belo sapato de couro de crocodilo e o homem não gostou porque o prêmio era um sapato com sola de pneu. Com a decepção, foi possível que vosso pai pagasse a diferença. O que faz lembrar o Bruxo do Cosme Velho, que asseverava ser a felicidade “um par de sapatos”. Mas os que agora recebeis, são insubstituíveis, com couro de estrelas, sapatos de fábula e mirto, calçados com vossas palavras, com o caminho digno, perseverante e fecundo de ficcionista, ensaísta, cronista, médico voltado ao interesse coletivo, pleno de personagens e símbolos.

Sim, esta é a vossa Casa, a de Machado de Assis, que foi, como vós, escritor. Sucedeis ao mineiro ilustre e lembrado amigo de Bernanos, Geraldo França de Lima, romancista de Serras Azuis, que Guimarães Rosa considerava um dos grandes romances da nossa literatura, e que me citava de cor trechos inteiros do Rodrigo Cambará de O Tempo e o Vento. Tomai, portanto, este espaço também povoado de histórias. Com Judith, vossa preciosa companheira, e o filho Roberto, de tantas crônicas. Não precisais ser nem magnânimo, como já sois, nem perdulário, como relatais na experiência do Colégio Júlio de Castilhos. Nada mais tendes a atestar de vossos méritos. Podeis persistir desportista no basquete de tantas efemérides.

Fazeis parte, sim, de uma longa corrente humana. Começastes a escrever para orgulho de vossa mãe, Sara, contadora de histórias, daquelas que gostaríeis de contar e tantas vezes contastes e que, ao desenhardes palavras, dáveis a elas, alma. Anotou Wilson Chagas em Mundo Velho sem Porteira,6 falando de nosso grande Érico Veríssimo, que, igualmente, a vós se refere: “Contador de histórias ele sempre foi, de verdade. Amava fazer isso, ou seja, contar as histórias de que tinha conhecimento. Não há caso, pitoresco ou trágico, que saiba ‘por ouvir dizer’ ou tenha presenciado, que ele não incorpore à sua narrativa”. Descritor  “de cenas, situações, tipos, ambientes. [...] É isso o que o escritor gaúcho está sempre a reproduzir. Pintando com as palavras. As idéias são uma decorrência, vêm como incrustadas nas imagens.” E a imortalidade –  acrescemos – é este relato que jamais deixará de continuar sendo contado. Indo de geração a gerações – como as fábulas, lendas ou algumas que foram vozes nas areias do deserto, ou promanam dos repuxos do sangue, das lágrimas, angústias, feitos gloriosos.

O poeta ou aedo, em Kierkegaard, ao narrar pela admiração as façanhas dos heróis ou de sua gente, alça-se, celebrando-os com altura, à posição de herói. Portanto, queirais ou não, sois parte integrante e inseparável dessa história, desta SUBIDA. E convosco também sobe o Rio Grande do Sul, sua gente, sua cultura e rios, cidades, montanhas, coxilhas. Bem-vindo! como na porta do pampa, a sineta e o poema: “Chega a esta Casa, / que é tua e de todos;  / há muito deixada / aberta aos assombros. / Os nossos arreios, / ninguém os desata, / com ódio e receios. / / O tempo não entra / nas suas paredes. / Secou como um frio / nos beirais da sede. / Calou-se nos mapas, / na plácida aurora, / nos pensos retratos. // Chega a esta Casa, / tão vasta, que é o mundo; /  pequena aos enganos, / Perdida, encontrada. / Os meses, os anos são palmos de nada.”

 

1 Obra citada, 6.a ed., Porto Alegre: LP&M, 1973, págs. 87, 88.
2 São Paulo: Cia. das Letras.
3 Porto Alegre: Ed. LP&M, 1981.
4 São Paulo: Companhia das Letras, 4a reimpressão, 1998, págs. 120-121.
5 Entre Moisés e Macunaíma, obra com Márcio Souza, págs. 48, 49. Rio de Janeiro: Guaramond, 2000.
6 Porto Alegre: Ed. Movimento, 2a ed. 1999, págs. 132-133.