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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Coelho Neto

RESPOSTA DO SR. COELHO NETO

Sr. Mário de Alencar:

Um dia – foi isso no tempo áureo em que vivíamos apenas ocupados com as suaves ilusões dos sonhos, caminhando insensíveis às agruras das estradas, tão enlevados seguíamos no som dos nossos próprios instrumentas: era o vosso a lira, o meu o rude cálamo de Ferécides – abrindo-vos comigo dissestes palavras tão cheias de sincera tristeza que, por muito me haverem impressionado, durante dias continuamente as ouvi, como se houvessem ficado, em vivo enxame, esvoaçando em torno de mim. Atribuo-lhes a visão que tive e, porque a considero filha de tais palavras, aqui vo-la entrego, em público, como se restituísse ao dono de uma sementeira o fruto que viesse ao ramo.

Achava-me eu transportado a um bosque de florentes árvores, por entre as quais, em sereno fluir; discorriam veios cristalinos. A brisa, agitando de leve os ramos, à medida que os embalava, ia-lhes furtando o aroma, com o que fazia, se me permitis dizer o que senti, um perfumado som.

Passos sutis de aves brancas e airosas mal acordavam o silêncio adormentado, e eu, embevecido à sombra amena daquela selva de encanto, julgava-me em cativeiro de fada e, a todo o instante, ao bulício das folhas ou ao fino murmúrio das águas, voltava-me, de antemão maravilhado, certo da ver o gracioso rosto lindo da minha senhora e dona que tão astutamente armara o laço de amor em que eu caíra.

Súbito, estalaram ramos, crepitaram versas, fugiram ariscas as libélulas diáfanas e, irrompendo dos penetrais do bosque, surgiu ante meus olhos um cavaleiro moço, de nobre e esbelta atitude, sofreando com garbo a ardidez de um ginete.

Todo ele era aceiro – do elmo aos sapatos. Da cinta pendia-lhe o montante cruzado, presa à ilharga, oscilando aos cabelos do cavalo, a lança alta luzia.
O olifante, de prata, era lavrado em relevos, e o escudo, triangular, tinha, debuxada ao meio, sob um fundo de blau, uma harpa de ouro que rebrilhava ao sol.

Como se não houvesse dado por mim, apeou-se e, atirando abandonadamente as rédeas ao cavalo, despediu-o com pena.
Foi-se o animal estalando, rompendo ramos na corrida, e o cavaleiro, vagaroso, com arrancados suspiros, pôs-se a despir o luzido encasto que trazia. Tirou da cabeça o elmo, desabrochou a cinta, encostou o montante e a lança ao tronco de um freixo e, uma a uma, sempre lento e sentido, foi demitindo do corpo todas as peças da armadura até que, apenas com o saio de bragal, sentou-se na alfombra e ali ficou pensativo, a loura caneca inclinada sobre o peito arquejante.

Um momento, contendo a curiosidade de meu espírito surpreso, quedei de olhos fitos no galhardo moço, mas, tornando-se a mais e mais combalida a sua merencória atitude, decidi-me a falar-lhe, a interrogá-lo, desvendando, se possível fosse, o seu penoso segredo.
Pedi-lhe o nome, deu-mo, sem entono, antes com desalento. Pasmei contente de ouvi-lo e logo o exaltei com orgulho, pois era o de um valido guerreiro pugnacíssimo, força e brio da minha raça, cujos feitos andavam memorados entre os mais acendidos louvores nas cantilenas dos troveiros e nos barditos gloriosos. Não havia jogral que os não cantasse, e as próprias donas, nos serões monótonos dos solares, enquanto dobavam o linho ou esmaltavam telas de flores e recamos de ouro, rediziam os esforçados lances do valoroso campeão nomeado.

Ouvindo-me assim enaltecê-lo, o moço suspirou:
– “Ai de mim... Esse de quem realçais, com ardor, a fama retumbante era meu pai. O que dizeis é o que dizem todos. A laje tumular não pesa sobre o cadáver, mas sobre o vivo, que sou eu, que ando no mundo tolhido entre as dobras de uma mortalha. Sou cavaleiro armado a golpe de espada real em ádito de capela. Logo que empunhei a lança e embracei o escudo que ali vedes, saí pelo mundo. à aventura. Bati-me em justas e em pugnas sanguinosas; escalei muralhas por entre ameias apuadas d’ascumas de onde rolava fumando, a chiar, o pez em flama; desmontei emires nos desertos, assolei aduares numerosos. Mais de um crescente muslim rolou por terra eclipsado pelo meu montante e, nas arremetidas perigosas, pus sempre na vanguarda das almogavarias o auro-rubro pendão da minha lança.

Como no acampamento eram acolhidas tais façanhas? gabava-se o meu denodo? admirava-se o meu arranque? Jamais! Uns, a testemunharem o estrago dos meus golpes que abolavam e fendiam as armas de melhor têmpera: “Não admira, diziam, se ele empunha o espadão herdado do valoroso.” Se viam voar em estilhas as lanças com que me acometiam, elogiavam o escudo em que irradia a harpa de ouro, tendo-o pelo do guerreiro morto, e ele é meu. E, muita vez, como à minha assomada repentina fugissem em confusão as algaras ferozes, os meus camaradas diziam, com certeza de que me alegravam: “Demais vos cansastes, cavaleiro. Para debandar gente tão ínfima bastava que soprásseis o olifante que vos pende ao peito, onde tanta vez trovejou o hálito do invencível.”

E, rindo, ajuntavam: “Se vos der o sono e quiserdes dormir, ainda que rosnem nas vizinhanças milhares de cães de Mafoma, fincai num teso a lança, pendurai-lhe no ferro, pela embraçadeira, o escudo, e o inimigo, vendo rebrilhar a harpa de ouro, guardar-se-á no temor como os chacais se imobilizam ante um fogo de vigília, porque o brasão do guerreiro espalha o medo em redor.”

“Assim, é meu Pai o meu maior inimigo, o único para o qual é inútil a minha coragem e serão sempre fracas as minhas armas. Nunca meu nome, o meu próprio, soará nos epinícios e, ainda que algum troveiro, dos que acompanham exércitos, o enalteça em gestas, quem o ouvir logo recordará o guerreiro finado. Dispo as armas e desisto das glórias que elas dão. Ainda que eu adotasse um nome e o levantasse com brio, mais tarde haviam de descobrir o rebuço e toda a minha glória refluiria para o túmulo daquele que, sobre haver sido grande, sempre há de ser o senhor da láurea, porque foi o primeiro a chantar o seu pendão na torre da Imortalidade.”

Disse palavras tais o triste moço e, cabisbaixo, e vagarosamente, abalsou-se na brenha.
Esta é a sorte dos filhos dos guerreiros: teve-a Zohrab acabando às mãos de Rustem; teve-a Conloch sucumbindo aos golpes de Cuchullin e ainda na Vilkina Saga ouvimos o estrondo do choque das armas de Hildebrando e Alebrando; estes, porém, mais felizes que os precedentes, suspendem o duelo a tempo e, reconhecendo-se, abraçam-se.  E Uta, mulher de Hildebrando, vendo aparecer o filho manchado de sangue, coberto de pó, precipita-se ao seu encontro bradando: “Filho, como vens sangrando e quem é o homem que te acompanha?”
– Estas feridas não me envergonham, mãe; abriu-as no meu corpo a espada formidável de Hildebrando, meu pai, que aqui vês.

As feridas do corpo... delas queixam-se, delas podem morrer os filhos dos guerreiros... Nos filhos dos poetas as feridas são mais fundas...
Quem nos contara, Sr. de Alencar, as vossas lutas com o espectro! Quem nos referira o tremendo combate, só comparável no encontro estupendo de Jacó e o arcanjo na grande noite da bênção jeovânica, junto à pedra sagrada de Betel!
Víeis ante vós a figura colossal do evocador, o gênio da selva nativa, hamadria grandiosa da floresta pátria.

Tínheis a inspiração, íeis a medo, passo a passo, brando e lento, e alcançáveis a lira. Mal lhe feríeis a primeira corda, um som estranho abalava o silêncio. Era o sussurro portentoso da brenha virgem, era o escacho atroador das águas espumantes, era o fremir dos jaguares, era o silvar dos tapires e, chegando em ribombo, a estropeada tumultuosa das tribos, o barbarizo das mulheres, o vociferar dos homens; uma selva de canitares bailando, e tripudiando dentro da selva d’árvores; e sibilo de flechas, embates de ivarapemas, cascavelar de maracás. rugidos de borés, soídos de membis; grita, alarido, vozeiro, e bruto, formidoloso, trágico, raucíssono, o barulho da poracé indômita e bravia.

Recuáveis e, lento e lento, o fragor cessava.
Íeis de novo à lira, que ainda vibrava surdamente, íeis mais cauto, mais tímido, e suave, lânguida, filtrando-se em melodias tênues, a balada soava; música d’alma, poesia do coração, misto de sonho e de melancolia, sorriso boiando à flor da lágrima, amor... Reconhecíeis Ceci...
Voltáveis a cabeça: eram os bandeirantes de má sombra, eram silvícolas minazes, eram feras traiçoeiras ou, docemente, pisando de leve como a juriti mimosa, Iracema, essa irmã de Sacuntala, tímida, entreabrindo as moitas abaunilhadas para espiar, sorrindo, antes de sair à estrada, expondo ao sol a linda nudez morena do seu corpo aromático, ou então o robusto guerreiro brônzeo: Ubirajara, senhor da lança.

Respiráveis aflito e fugíeis à selva. Mas também na cidade encontráveis as páreas da vitória do indomável: Diva, Lucíola, Senhora.
Lançáveis o olhar para o teatro, lá víeis o seu brasão suspenso entre colgaduras. A tribuna... ainda atroava o eco fremente da sua palavra. A política, por ela também passara o conquistador.
Em toda a parte víeis o espectro inabalável dominando todas as fronteiras do amplo território em que pretendíeis assentar arraial, inflexível como na poesia maravilhosa de Hugo o olho trágico que acompanha Caim até o fundo tenebroso do sepulcro:

Ayant levé la tête, au fond des lieux funèbres,
Il vit un oeil, tout grand, ouvert dans les ténèbres
Et qui le regardait dans l’ombre fixement.

Vós no-la contais, a história torturante da vossa alucinação. Achei-a toda miudamente descrita, na poesia: “O meu fantasma”, com que rematais o vosso último livro. Não é um vago devaneio de poeta o que se contém naquelas estrofes de versos irregulares, que ora se retraem, ora se alongam, como sombras de inquietos ramos em álgido luar, é o episódio de uma alma assombrada, a narração de um pavor sombrio:

Recente noite, às horas mortas, eu relia
O velho livro de um poeta
De estranha e obscura fantasia
Que me empolgava e me alheava do lugar.
Nada eu sentia, nada ouvia; fora, quieta
A terra estava, e o ar parado,
Sob o silente céu iluminado
Pelo luar.

A luz de todo no meu quarto se apagara.
E indiferente à luz extinta,
Seguia em mente a fantasia obscura e rara
Daquele livro singular.
Em frente a mim surgiu entro, quase indistinta,
Depois mais clara, humana, em formas definidas,
Uma figura conhecida
Que em meu olhar fitou tranqüilo o seu olhar.

O rosto, meu; o aspecto, meu; minha a estatura,
Exatamente o meu retrato...

E continuais descrevendo a aparição sinistra, atribuindo-a à sugestão do livro que tínheis ante os olhos. Sonháveis, vós o dizeis: “sonhos de amor, sonhos de glória”, e a figura singular estranha¬mente sorria.
Então, com decidida coragem, intervelais intimativamente o hóspede lemúrico:

“Quem és? visão? sonho? fantasma?
Alma talvez que anda a penar?
Visão do espírito doente?
Ou és demônio disfarçado
Que vens somente
A me tentar?”

Resposta alguma – o silêncio; e, impassível, a aparição guardava a atitude imota. Temestes, o arrepio do medo fuzilou-vos nos nervos, mas

“Olhando o céu, voltou-me a calma.
Que mau espírito viera
Turbar minh’alma
Sob esta luz, tão doce e clara do luar?
Somente amigo ser, visão de amigo morto,
Do céu descera
Para trazer-me ao coração paz e conforto,
Coragem nova de lutar.”

E assim pensando, o olhar fixado sobre a imagem,
Vulto talvez de alma dileta,
De alma que habita a ignota e mística paragem,
De onde ninguém pode voltar;
Pensando assim, um novo ardor meu peito acende,
Recresce a aspiração de glória de poeta;
E meu espírito ascende
Olhos postos no céu, num largo surto, a voar.

Voa: o espaço é sem fim; nada mais lhe embaraça
As asas, nem o sol as requeima e entibia.
A terra, onde passou tanto tempo, ora é escassa
Para os seus sonhos encerrar.
O impossível desfez-se; o ideal é real, é certo;
Longe a dúvida, a treva, o estertor, a agonia...
A alma expande-se livre e em seu voo vê perto
A glória em plena e infinda irradiação solar.

Para tanto bastou romper-se o tardo enleio
Em que vivia preso no mundo circunstante.
O temor abafava o espírito em meu seio...
“É preciso lutar!
Se a fraqueza do corpo é empecilho da luta,
Ei-lo, o espírito meu, livre, forte e triunfante,
Assumindo no sonho esta forma impoluta
Com que há de o mundo e a morte avassalar!”

Mas vi, então, olhando o vulto de repente,
Num entressonho de acordado,
Que ele sorria novamente
Coo mesmo riso sobre os lábios e no olhar.
Riso de escárnio, riso vesgo, que não ria
E dava ao rosto transformado
Uma aparência mais esguia,
Uma expressão mais de estranhar.

Via-lhe os dentes; via a dentadura inteira
Sem lábios mais; olhar não vi; fendas havia
Em vez dos olhos. Muda e horrenda uma caveira
Sobre o esqueleto ali se erguia a me fitar.
Depois desfez-se a pouco e pouco a vil figura,
Visão do luar talvez, talvez sombra erradia
De um mau conceito evaporado da leitura
Daquele livro singular.

Não se diria melhor a angústia de uma obsessão. Era o espectro que vos enchia de medo, que se vos antolhava fechando-vos o caminho, empecendo-vos o passo, empedernindo-vos no desalento. Sofrestes mais, sem dúvida, no vosso gabinete de trabalho do que o Príncipe merencório na plataforma de Elsenor.

É do tempo dessas visões, é produto desse delírio trágico o vosso primeiro livro – Lágrimas – no qual, através do pranto, aparece a revolta contra a opressão. Livro que é o protesto do jovem atlante contra Zeus potente, a voz lamentosa que sobe da terra para as nuvens altas.  Depois... desaparecestes.
Debalde os vossos íntimos buscavam o som do instrumento que dantes tangíeis e que os guiava até vós. Perderam-se no silêncio e tornaram entristecidos.
Correram anos calados.

Um dia circulou a boa nova do vosso regresso. Vínheis outro: sereno e risonho, sem o ar mesto e a palidez que vos marmorizava a fronte, com os olhos límpidos, desumbrados do pavor de antanho. Vínheis de muito longe, vínheis da iniciação sagrada, como um mista que volvesse do santuário augusto edificado, cheio de esperança e acrisolado em fé.

Havíeis escutado Homero na própria harpa de sete cordas que repercutira, em sons imperecíveis, o armistrondo da luta formidanda em que se travaram os homens da Grécia e os da Ásia, em torno da cidade de Príamo, que os deuses rondavam, passando armados por entre as quadrigas e as tendas ou pairando, aladamente, nas horas de peleja, para admirar os golpes e proteger os preferidos; e também memorando a peregrinação delongada do príncipe sutil, por águas e terras de magia; ora acossado por monstros, ora atraído por deusas, sempre com saudade da sua Ítaca e da sua Penélope.

Vínheis de Hesíodo, historiador do Olimpo; vínheis das elegias altivas de Sólon e de Xenófanes; vínheis dos agudos jambos de Arquíloco; vínheis dos peans de Tirteu, dos nove livros de Heródoto, da marcha heroica de Xenofonte e da história de Tucídides; vínheis das partênias das moças e dos hiporquemas dos efebos.

Vínheis do ditirambo alegre e das tragédias retumbantes no teatro de Dionisos onde havíeis ouvido gemer Prometeu, Édipo apostrofar, Hécuba protestar a sua angústia em ganidos, a rínchavelhada do povo de Aristófanes e o riso sem esgar da gente de Menandro.
Vínheis das odes de Píndaro no estádio, depois da vitória dos atletas e dos automedontes; vínheis das pastorais de Teócrito, dos amores de Anacreonte, das palestras das hetairas; dos idílios de Mosco, da bucólica de Longus, das ironias de Luciano.

Vínheis dos nomos e das cidades, trazíeis ainda o sabor do banquete de Platão e o eco das filípicas de Demóstenes.
Vínheis da Grécia, como grego, tendo gozado mais do que o cita Anacarsis, por haverdes penetrado fundamente o idioma em que Apolo divino discorria.
Vínheis do fértil país latino e trazíeis de cor o próprio hexâmetro de Virgílio e todas as belezas dos poetas que deslumbraram o mundo no tempo luminoso de Augusto.

Faláveis de sagas e de legendas, de poemas de guerra e de lais de amor. Descrevíeis a glória dos dias renovados e redizíeis tercetos de Dante, rimas de Petrarca, citáveis Bocácio.
Havíeis feito intimidade com as grandes almas de Inglaterra e delas trazíeis os cantos no próprio idioma em que haviam sido entoados, desde as férreas estrofes de Beowulf até os idílios de Tennyson; a visão de Langland e a espontaneidade de Burns; as criações de Chaucer e a humanidade de Shakespeare; vínheis do romanceiro e do teatro de Espanha; vínheis da França de Taillefer e de Ronsard, de Montaigne e de Hugo; vínheis do Portugal de Camões e de Vieira, de toda a grandeza antiga por onde peregrinastes e vínheis do belo país cuja fronteira é o limiar do céu e o continua de tal modo que as nuvens são o toldo das suas cabanas, as estrelas são as suas luzes, e a Via Láctea, passando de um a outro, liga os dois extremos como uma ponte ensaibrada a diamantes: país do sonho, país da ventura onde a mocidade é o dia e o amor impera.

Amáveis, havíeis encontrado companhia para o coração solitário, e o amor afugentou o espectro.
Armado cavaleiro pelos gênios, quando saístes a campo tínheis os olhos postas na criatura que vos governava o espírito e senhoreara meigamente todo o vosso ser, dando-vos a lira sonora e ensinando à vossa alma um canto novo.
E aparecestes na liça como Wolfram entrou na luta poética do castelo turíngio. O adversário era um espectro, para vencê-lo tínheis um prestígio.

Quando Klingsor da Hungria avançou arrogante, com a harpa soando por magia e inspirando-se nas vozes dos demônios, o poeta de Perceval esperou-o sereno. O feiticeiro contava com o sortilégio, Wolfram tinha por si a crença e o amor. A Vitória pôs-se do seu lado, como Minerva, em Ílion, ficou junto à tenda de Aquiles. Assim foi convosco.
E quem é que faz a apologia do amor que redime e salva triunfando de todos os encantos? Vós mesmo nos versas com que abris o vosso último volume:

Bendigo o teu olhar, bendigo
A tua voz e o teu amor;
Porque no mundo és o anjo amigo
Que me protege e vai comigo
Pula afastar de mim a dor.

Na escuridão triste da vida
O teu olhar trouxe-me a luz;
E a estrada negra, sem guarida,
Onde se estende esclarecida
Por teu olhar que me conduz.

Do turvo errar do ceticismo
Tu me salvaste o coração.
À beira estava eu já do abismo;
A tua voz deu-me o batismo,
À tua voz me fiz cristão.

Mísero que era, sem esperança,
De ruim pecado inculto réu!
O teu amor trouxe a bonança,
O teu amor, meiga criança,
Abriu-me a porta azul do céu.

Por isso o teu olhar bendigo
E a tua voz e o teu amor;
Meu anjo tutelar e amigo,
Deste-me a vida e ora contigo
Já não receio mal nem dor.

Apercebido de força e de coragem, saístes do estudo para o amor e dessas duas iniciações viestes tão outro, com a alma tão levantada e feliz, cantando o próprio sentimento em límpidas estrofes através das quais transparece o vosso coração, que não houve mais entraves que vos tolhessem o passo sobranceiro porque, ao som abemolado da vossa lira, tudo se abrandava e a prova é que aqui vos achais, recebendo de vossos pares, pela minha boca, as boas-vindas alegres.

A cadeira que vos abre os braços refulge como um ocaso ardido, é que o seu primeiro hóspede teve o nome predestinado de Patrocínio, nome que contém nas suas dez letras todo um evangelho de amor. Foi o segundo Decálogo de Deus, dado, não em tábuas de pedra, mas num corpo de bronze em cujo coração, como em lâmpada recôndita, ficou ardendo e flamejando o fogo sagrado da sarça do Sinai. Patrocínio, ele o foi! Eu o conheci. Foi ele quem me guiou os primeiros passos no caminho áspero e sedutor das letras, não sem me haver, com lealdade, advertido dos perigos que me esperavam, abrindo aos meus olhos, cheios de ilusões, o roteiro aterrador em que ele próprio se perdeu.

E eu vi os abismos, vi os fervedouros, vi os intrincados espinhais, vi o penedio, em cujas arestas havia tassalhos de carne, vi os remoinhos rugidores – e mais vi: os ódios, as invejas, as traições; vi, com os olhos muito abertos e o coração transido, mas, encarando o. mestre, resolvi segui-lo, porque o Homem que me falava era o turbilhão, era a coluna de fogo, era o gênio: atraía.
Esse homem, impetuoso e meigo, fecundo à maneira do Sol e, como o Sol, abrasador, bem merecia um lugar no Panthéon dos Heróis de Carlyle, entre as duas teorias – a dos Poetas e a dos Sacerdotes, porque participava da natureza de ambos; era o vate. Escuro, se não era a noite, também não era a manhã: era o dilúculo, anúncio da madrugada, divindade intermédia, símbolo da transição da treva para o esplendor, prelúdio d’alva.

No seu coração casavam-se os dois cantos: o do rouxinol dos luares e o da cotovia das alvoradas. Era o contemplativo e o revolucionário, o melancólico e o violento, o carinhoso e o indômito.
Concentrando o sofrimento e a revolta de toda uma raça, foi a força que se insurgiu contra a opressão.
Nasceu humilde, não tinha história – viera do Nada, como o universo. Formou-se, vós o dissestes: “no obscuro comércio de uma quitanda e na tranquilidade beata de uma igreja de província”.

Veio trazido pela predestinação, essa vontade divina, e pobre, desconhecido, marcado com o estigma de Cam, entrou sorrateira¬mente na sociedade como um fio d’água sutil que se insinua por dentre pedras, incha, cresce, assoberba-se, faz-se alagadeiro e, por fim, inundação.
Quem poderia imaginar que naquele infante modesto, submisso, de olhos deslumbrados, estava o colosso de fogo, o Melkart irradiante que havia de fundir as algemas dos escravos ao calor do seu gênio e alumiar a pátria no caminho da liberdade?

A História da sua campanha – cruzada feita com o Evangelho e com a clava – não cabe nas linhas apertadas de uma referência, nem eu venho falar do Herói, mas do homem – quero mostrar-vos o que havia de humano, as fragilidades, naquele ser estupendo em que se aliavam a misericórdia de Deus e a revolta de satã. Patrocínio era um poeta e toda a sua obra pode chamar-se a Epopeia do amor: foi um Canto.

“Observai, diz Carlyle, como toda a linguagem apaixonada torna-se realmente, por si mesma, musical, com uma música mais bela do que o puro acento. A palavra de um homem, ainda no ardor da cólera, torna-se música, um canto. Todas as cousas profundas são Canto.”
Era a mais robusta confiança que jamais hei conhecido: irradiava gênio e infundia coragem. Foi ele que impulsionou a mocidade do meu tempo, foi o treinador da minha geração.
Ninguém o procurava debalde – os que iam ao seu espírito saíam iluminados; os que buscavam o seu coração voltavam satisfeitos.

Foi o esplêndido núcleo do qual se destacou um deslumbrante pugilo de poetas.
Quem quiser saber quais foram os seus mais íntimos companheiros procure na História Literária os grandes nomes dos moços do seu tempo.
Voava muito alto, não podia cercar-se senão de águias. E assim sempre o vi.
Era um espontâneo, nunca preparou um discurso, falava sempre de improviso. Chamado à tribuna, aparecia e deslumbrava.

Fecundo é original, de poucos acarretos, o que dizia era criação do seu gênio Se a opinião, como afirma Renan, quando é profunda, obstinada, é a própria Natureza, pode-se assegurar que esse ser maravilhoso era o tipo magnífico do Homo-natura.
O livro era para ele uma janela pela qual a sua alma olhava as idéias – mal se debruçava sobre as páginas, logo o seu claro olhar, cheio de intuição, descortinava todas as distâncias.
Esse poder superior de visão intelectual tornava-se formidável: na Poesia era a águia olhando da altura e encarando o Sol, no jornalismo era o lince devassando a terra.

Investia com todos os problemas, afrontava-se com todos os assuntos e sempre voltava das polêmicas com o troféu da vitória.
Quem o lesse, nos dias sublimes, diria, ao fulgor dos seus períodos, que ele os compusera com a lentidão esmerada e paciente dos artistas escrupulosos da escola de Horácio – engano: os artigos de Patrocínio saíam de um jato e luminosos como explosões. Era uma cratera, não um tórculo.  Nunca os relia e, não raro, depois de haver sentidamente escrito um hino de misericórdia sobre os escravos sofredores, empunhava o tagante e saía como um flagelo sobre os adversários.

Já alguém o quis amesquinhar lançando-lhe a pecha de “imaginativo” – “Um homem de imaginação agindo sobre um povo de sentimentais.” “A imaginação é o vazio”, disse o crítico, mas para andar nesse vazio é preciso ter asas. E tinha-as e poderosas o Poeta dos escravos.
Quem o viu na tribuna guarda, por certo, na lembrança a sua estranha figura semibárbara, quase grotesca. Não era um orador de escola, disciplinado e elegante: era um ímpeto. A sua palavra não tinha melodia – era silvo ou rugido; o seu gesto era desmantelado, o seu olhar despedia fagulhas. Avançava, recuava, agachava-se, gingava, retraía-se, despejava-se, ficava nas pontas dos pés, arremangado, com a gola do casaco tão subida que às vezes parecia um capuz de monge; o colete sungado deixava espoucar a camisa – era um desmantelo trágico de tormenta.

Havia nele dormências como nos oceanos “dias inertes”, nem um encrespar de vaga, nem um hálito de brisa – imobilidade.
Bastava, porém, uma lufada de cólera ou uma cansada asa branca passando iterativa, no indeciso ir e vir de quem se sente perdido, para sue a paixão o revolvesse ou a piedade o despertasse. Foi em um desses dias lânguidos que se deu o encontro entre o gigante e Silva Jardim, que então andava na propaganda temerária, aproveitando o abalo que a abolição produzira no edifício do império para o fazer ruir.
Encontraram-se os dois apóstolos no Teatro Lucinda.

O discurso de Silva Jardim foi uma objurgatória violenta contra José do Patrocínio “cativo de um beijo com que a princesa ameigara o filho...” E o que houve de acusações, de doestos, de invectivas e de apodos nesse discurso!

O teatro regurgitava, e o povo, sempre vário, bandeara-se para o orador, vendo a atitude mole, quase humilde, do jornalista, que se encantoara em um camarote, entre um grupo de amigos.
Quando foi o momento da resposta, Patrocínio começou em tom flébil, tímido, mastigando as palavras, relanceando com o olhar apagado o auditório fremente. Não era o tribuno fogoso dos grandes dias, mas um vencido que se rendia de rastos aos pés do adversário.
Paula Ney, que era um dos pares fiéis do campeador, eriçou-se e, indignado, rompendo a multidão apinhada, disse com áscuas de ódio nas pupilas, brandindo energicamente a bengala:

“Vou espicaçar o monstro com um dardo de injúria. Isto aqui não é a Bíblia em que Davi, com uma funda e uma pedra, vence o gigante Golias. Esperem a volta.” E desapareceu.
Patrocínio prosseguiu moroso, pálido, sem alma. De repente, como uma flecha zunindo, esfuziou um aparte das torrinhas e foi direito ao brio do tribuno. Patrocínio bambeou, tremeu; acenderam-se-lhe os olhos, as narinas entraram a aflar sofregamente como se farejassem com raiva, o seu corpo pôs-se a oscilar como zimbrando em mareta e o gigante reapareceu formidando, o Verbo explodiu como raios duma nuvem negra carregada de procela.

Oh! esse discurso, o apelo à voz anônima, à voz covarde, ao silvo da víbora e, por fim, a resposta esmagadora a Silva Jardim, a reabilitação do caráter pela gratidão do patriota e pelo amor de pai.

O povo ergueu-se e as mesmas vozes que, minutes antes, o haviam apupado aclamaram-no com delírio. A derrota mudou-se em triunfo e foi por entre alas que atroavam aplausos, através de uma ovação estupenda, que Patrocínio deixou o teatro onde estivera tão comprometida a reputação da sua eloquência arrebatadora.

Chegando à Gazeta da Tarde atirou-se ao sofá, exausto, mas, não podendo sopitar o ódio que nele refervia, ergueu-se de punhos fechados, silvando por entre dentes: “Ah! não saber eu quem foi o patife que me atirou aquele desaforo!...”
– Foi esse seu criado, acusou o Ney, avançando.
– Tu!
– Eu! Querias que assistisse indiferente à tua derrota! Os amigos mostram-se nas ocasiões. Estavas dormindo... Se fosses um simples mortal, eu sacudia-te pelas orelhas, mas, tratando-se de ti, vibrei um raio. Só com os raios se podem despertar titãs. E então, hem! Piquei-te, viste o perigo... e que vitória!
E rimos. Éramos assim nesse tempo.

Patrocínio era um crente, quase um sacerdote. Ele próprio dizia: “Para padre só me faltam as ordens.” Ouvi-lo em assuntos de igreja era melhor do que ler um ritual. E como descrevia os atos religiosos, com que devoção beata, com que sincero enternecimento! Dava-lhe, às vezes, para entoar cantochão... Uhm! Sobre este desafinado capricho não prossigo, para que o espírito amado não sofra no Além. Tinha-se por um barítono admirável... que fique na morte com a sua ilusão. Dizia-se também cozinheiro excelente. Nunca me atrevi a julgá-lo.

Se começava a sonhar, perdia-se – uma palavra levava-o por esses ares fora com mais arrojo do que os hipógrifos lendários que passam nos contos arrebatando príncipes e damas.
Ouvi-lo era no retraço de uma empresa, nos planos de um negócio... O seu jornal, por exemplo.  Redação e oficinas, em um palácio de mármore. Máquinas possantes para tiragens fabulosas, instalações elétricas, hotel, orquestra, cocheiras. Um iate no mar, sempre de fogos acesos, cavalos sempre arreados para a reportagem veloz, cada redator teria o seu palácio montado com fausto artístico... Não conseguiu, infelizmente, realizar este sonho. Em compensação trouxe o carro a vapor. O carro a vapor!...

De volta de uma viagem a Paris, mal pôs o pé no cais, anunciou aos íntimos que lhes trazia a independência, a fortuna... milhões! E explicou em segredo: “Trago de Paris um carro a vapor... o veículo do Futuro, meus amigos. Um prodígio! Léguas por hora. Não há aclives para ele: com um hábil maquinista vai pelo Corco¬vado acima, garanto a vocês, pelo Corcovado acima como um cabrito. Em meia hora faremos o trajeto do Largo de São Francisco ao alto da Tijuca. Imaginem! É a morte de tudo – dos tílburis, dos carros, do bonde... até da estrada de ferro. Ficamos senhores da viação. É a fortuna.”

Chegou o carro. Foi um delírio no grupo. Vinte mil francos!... Era um monstro!
Um trabalho para o retirar da Alfândega, uma faina para montá-lo, uma agonia para acomodá-lo sob um tendal. Patrocínio anunciou a primeira saída para um domingo, depois de muitos e cansados passos, a fim de obter a licença municipal. Os intendentes receavam... Enfim!
A noite de sábado passamo-la em claro, andando em torno do monstro que tinha fornalha, caldeira, chaminé, volantes, grelha, correntes, ganchos, um inferno! como resumiu o Ney. Os troianos não examinaram com mais espanto o cavalo que os gregos enche¬ram de traição.
Patrocínio convidou os íntimos para a sortida inaugural. Ney refugiu: “Tinha responsabilidade, mulher e filhos, credores, o seu voto. Demais era fiel ao tílburi.” Outros alegaram motivos ponderosos. Só um poeta, um dos nossos maiores poetas, ousou sacrificar-se pelo Progresso e subiu para a boleia.

O carro saiu na manhã de domingo, saiu com estrondo espalhando o medo pânico entre os pacatos moradores da Rua de Olinda, com os seus roncos, com os seus bufos, com o estridor das ferragens e tresandando horrendamente. Oh essa viagem!
O monstro rodava pesadamente, ia de encontro às árvores e escorchava-as, derrubava combustores, trepava nas calçadas, urrando, faiscando; investia com os bondes, cujos passageiros fugiam aos berros, atirava marradas aos portões arrombando-os. Às vezes empacava arquejando, aos estouros, como se fosse rebentar. Os animais dos carros disparavam espavoridos, a população debandava, os cães uivavam, encolhidos nos vãos das portas, as crianças levantavam clamores de susto, nem foi tamanho o terror entre os homens quando Faetonte tomou o governo do carro do Sol.

E lá ia o monstro. Quando aquilo passou pelo Catete, com um fragor espantoso, desencravando os paralelepípedos da rua – como se as próprias pedras fugissem (Patrocínio e o poeta levantavam hurras! triunfantes) – lembrei-me da narração em que Teramene, na Fedra, descreve a morte de Hipólito:

A peine nous sortions des portes de Trézène
Il était sur son char...

Patrocínio insistia com o maquinista para que desse mais pressão e o poeta sorria desvanecido guiando a catástrofe através da cidade alarmada.
Por fim, num tranco, o carro ficou encravado em uma cova, lá para as bandas da Tijuca, e, para trazê-lo ao seu abrigo, foram necessários muitos bois e grossas correntes novas.
Enferrujou-se. Quando, mais tarde, o vi, nas suas fornalhas dormiam galinhas. Foi vendido a um ferro-velho.
Patrocínio não se deu por vencido e aos que riam aludindo ao carro monstruoso e ao tremendo fiasco, dizia convencidamente:
– Sim, foi um fiasco, mas querem saber por quê? primeiro porque saiu pagão, não o batizei, depois porque não temos calçamento. Sem religião e com estas ruas não pode haver progresso... com estas ruas e sem um maquinista... Eu precisava de um maquinista de gênio!

De que era um místico, um supersticioso, tivemos prova, nós os seus íntimos, “sobrevivências de raça”, dizia ele quando lhe falavam das suas crendices, das suas preocupações misteriosas.
Jantávamos uma noite no Stadt München. Éramos seis ou oito. Ameaçava chuva. O céu negro fulgurava em relâmpagos sucessivos; rolavam surdos trovões ao longe. Ao fim do banquete, com as taças transbordantes, entramos a discutir poesia e vieram os grandes nomes, retumbaram os louvores. Alguém citou um lindo verso de Hugo.

Patrocínio, que adorava o poeta da Légende des siècles, quis divertir-se, esfuziar paradoxos, e contrariou a opinião encomiástíca do companheiro.
– Hugo! um bombástico.  Coribante que passou a vida a baquetar em um odre.  Que há nos seus versos? O mesmo que se encontra entre as assoalhas dos tambores. História. Acho-o ridículo. Não chega a transpor o século, garanto.
Levantaram-se protestos, foi um vozerio ensurdecedor. Pessoas pacatas, que ocupavam as mesas próximas, escapavam-se prudentemente.

Súbito calou-se a algazarra. Patrocínio estava hirto, petrificado, os olhos muito abertos, cheios de assombro, o braço duramente estendido mostrando alguma cousa dentro da noite negra.
Olhamos. Pavor! Braços cruzados, o olhar fito, mas suave, contemplava-nos de longe, como se houvesse saído ao limiar do céu, Hugo, ele próprio. Ficamos estarrecidos e mudos. Patrocínio ofegava, dizendo em voz sumida: “Olhem! Olhem... É o poeta! É Victor Hugo!”

A aparição desvaneceu-se, de repente; substituiu-a uma banheira, dentro da qual um gordo menino berrava, inclinando-se à borda, como para sair. E dizeres em grandes letras. Era o anúncio de um sabonete para crianças. E tudo explicou-se. Explodiu a gargalhada.
Fôramos mistificados pelos reclamos luminosos que, todas as noites, apareciam projetados em uma tela no terraço do Teatro São Pedro de Alcântara. Mas a coincidência!...
Patrocínio ficou preocupado, sombrio e, ao sairmos, inclinando-se sobre o meu ombro, disse em pávido segredo:

– “Vou mandar rezar uma missa pela alma do poeta. Acalmar os manes, meu velho. Acalmar os manes. Coincidência, dizem vocês, acaso... uhm! Lembra-te das palavras de Hamlet a Horácio: “Há muita cousa no céu e na terra a que não chega a nossa vã filosofia.” E, sempre que aludia ao fato, ficava preocupado, meneando a cabeça e surdamente afirmava: “Foi o Poeta. Foi o Poeta!”
Depois de 13 de maio ficou desequilibrado – chegara ao ideal e, lá de cima, onde julgara encontrar tudo quanto sua alma almejara, alongando a vista viu que ainda havia muito a conquistar. Mas ele havia-se virtualmente comprometido à fidelidade com aquela que lhe alhanara o caminho e, como a dúvida fez do monte Nebo o túmulo do patriarca do êxodo, a gratidão tolheu a ação do Libertador. Outros fossem!

Mas o instinto de liberdade sobrepujava nele todos os sentimentos, todas as faculdades, e no dia em que foi proclamada a República um homem atravessou a Rua do Ouvidor, à tarde, à frente do povo, cantando roucamente a Marselhesa: era José do Patrocínio.
Não contente de haver passado o mar de sangue conduzindo os negros para Canaã, depois de haver sido Moisés quis ser Elias e imaginou o carro alado, o veículo fantástico que participava do pássaro pelas asas e do peixe pelas barbatanas, que tinha rosto de vulturino e cauda de cetáceo, e que ia cheio de fogo como o plaustro que arrebatou o profeta.

Outro sonho... O grande sonho! Librar-se, pairar!... Ir pelos espaços fora, pela região sem fronteiras, baixando, quando quisesse, a pousar no deserto ou a empoleirar-se no Himalaia. Correr com os ventos, por cima das tempestades –abeberar-se no seio das nuvens, roçar pela Via Láctea, fazer estações nas nebulosas, circular as estrelas, preceder as auroras, correr adiante das noites, subir sempre, sempre! como uma prece, ir cantando pelo infinito, como uma calhandra, e, um dia, invadir o céu, passar por entre os anjos pasmados, chegar a Deus, prostrar-se de joelhos e dizer-lhe: “Senhor, aqui estou!”

Direis que exagero. Tal não diríeis se o houvésseis ouvido. Era sempre à tarde, no Pascoal, que ele costumava falar do seu sonho. Não era, então, o jornalista, era Ícaro-Menipo, o herói fantástico da viagem aérea de Luciano. E se eu vos dissesse dos milhões que ele distribuía?!
O seu balão despejava todo o lastro sobre a miséria humana. O navegador do espaço nada mais queria além da ventura de poder deambular na região etérea, ser como as aves e ser como as nuvens. A sua fortuna... Os seus milhões?

Todos os países oferecer-lhe-iam tesouros pelo seu segredo e ainda lá em cima estava a rutilar a inesgotável mina sideral – Sirius, o solitário, Altair, Aldebarã e todas as fulgentíssimas gemas com que as noites faceiras se recamam, incluindo o colar da Via Láctea, os chuveiros das nebulosas e a opala diáfana que é o plenilúnio. Toda essa riqueza!...

Toda essa riqueza, e todavia morreu em casa de um amigo, albergado como um indigente.
Fui vê-lo quando regressei de Campinas. Estava na estação de Piedade... a Piedade, termo de uma jornada fulgurante.
Deixando o trem, meti-me por uma estrada cheia de sulcos de carros e de covas que eram atascais. A um lado, alta, escalavrada, a barranca sanguínea eriçada de mato, com cercas de espinhais em flor defendendo pomares; em frente, casario roceiro, com alpendrada e poiais, argolões em esteios, mastros com bandeirolas.

A manhã luminosa estava cheia de aves e de borboletas. Era domingo. Um sino alegre repicava na igreja da colina. Pela estrada desciam récuas em chouto sacolejando seirões e cofos. Eu procurava alguém que me informasse, quando um crioulinho rompeu das silvas, aos pulos, recuando, na faina de empinar um papagaio rebelde. Chamei-o, perguntei por Patrocínio. O pequeno lançou-me um olhar ligeiro, e. sempre aos pinotes, indagou: “É aquele do balão? É ali.” Atirou o braço num gesto vivo, indicando-me vagamente uma direção, e, sem mais, lá se foi aos saltos, aos safanões à linha, tirando o papagaio que rebolava, às guinadas, no ar azul.
Segui e, como fosse olhando atentamente, descobri ao alto da barranca dois pequenitos que brincavam à sombra duma laranjeira e, em um deles, reconheci o filho mais novo do tribuno.

Subi os lisos e resvaladios degraus cavados na terra, passei a cancela, entrei no aclive do jardim ressequido e, anunciado pelo pequenito, minutos depois era recebido na casa, hospitaleira.
Não descreverei a modéstia – era um agasalho de pobreza asseada.
A senhora do jornalista quase pasmou de ver-me e, como eu perguntasse pelo enfermo, teve um gesto desalentado dizendo apenas:
– Entre.
Entramos.
Em um quarto, alumiado por uma janela, onde mal cabiam uma cama de solteiro, um lavatório e duas cadeiras, jazia o pelejador da campanha magnífica.
Magro, esquelético, com os olhos encovados no fundo das órbitas, a fronte vasta, escalvada, de uma cor baça de bronze empoeirado, a boca reentrante à falta dos dentes, sem voz, meio encolhido na enxerga, as pernas cobertas por um xale azul, Patrocínio sorria e chorava, estendendo-me os braços que eram ossos envoltos em pele cinérea.
Sobre o lavatório estava um velho prato com um resto de mingau, às moscas; aos pés da cama, pelos travesseiros, no chão, os jornais do dia, todos. Na parede um Cristo morto.

Não houve palavras. Fitamo-nos e eu o vi através de uma névoa... depois...
Os passarinhos cantavam nas árvores em flor e o sol entrava quente e rútilo pela janela aberta. Dia lindo! E ele soluçou: – “Meu amigo!” Que respondi? não sei. Conversamos. Ele não teve uma queixa. Metendo a mão sob o travesseiro para tirar o lenço, fez cair uma tira de papel escrita a lápis. Pediu-ma sorrindo:
– É o meu artigo. Escrevo-os aqui na cama, a lápis. Quando me faltam forças dito à minha mulher.  A lápis, bem? Mas deixemos de tristezas. Falemos do passado.
E falamos... Oh! o passado... o passado daquele homem, um dos grandes heróis da minha Pátria... a sua história que é a de toda uma época, a sua campanha, o seu canto triunfal!...

Onde estava o povo que o levantara nos braços e o aclamara em delírio no grande dia? Onde estava a imensa legião negra que ele arrancara das senzalas – corpos que ele soltara na liberdade, almas que ele alumiara, corações que franqueara ao amor, espíritos que desentenebrecera?
Onde estavam os escravas de ontem? E a Pátria? a doce Pátria que ele tanto enobrecera, o seu culto, o seu orgulho, o seu entusiasmo, o seu amor? E os que ele havia socorrido? e os que ele havia encantado com as suas páginas fulgurantes? Todos aqueles que subiam as escadas do seu jornal com louvaminhas e flores, os que se inclinavam zumbridos à sua passagem, os que lhe pediam socorro, que ele nunca negou? Onde estavam?

Lá fora as cigarras vívidas faziam um chilreio jocundo, pombos batiam as asas e o sino festivo enchia o ar de sons.
– Em que pensas?
– Eu?
– Sabes? isto há de passar. Só peço a Deus mais um ano. Viste o balão? Está quase pronto. Mais um ano e... adeus terra. Lá vai o Zé do Pato... Lá vai! Lá vai! E eu pelas nuvens além, perdendo-me no éter, longe! longe, respirando o ar de Deus, o grande ar virgem da altura. – Meneou a cabeça com desânimo.
Uma rapariguita entrou com uma carta, deu-lha. Ele rasgou nervosamente o invólucro, abriu-a; franziu o sobrolho, notei que a mão lhe tremia. Escondeu o papel e, com os olhos turbados de tristeza fitos no céu, que era todo alegria, repetiu com uma voz que se perdia em angústia: Lá longe!...

E foi! Foi, não levado pelo seu veículo, mas pela Morte, quando ainda raspava o crânio com os ossos dos dedos para arrancar as últimas migalhas.
Morreu como vivera: defendendo os fracos, batendo-se pela Piedade.
O seu último apelo foi em prol dos animais, talvez mais gratos do que os homens. A sua oração derradeira foi a de um panteísta. Acabou numa explosão o que vivera em explosões: caiu afagado em sangue, como o sol tomba no ocaso envolto em mortalha de púrpura.
Heroico como Cirano no transe fatal, não se entregou covardemente à Morte: sentindo-a, aprumou-se e, a pena em punho, encostou-se ao respaldar do leito.  Viram, então, que o seu corpo amolecia e oscilava, perdia o equilíbrio – é que a alma partira.

Foi assim que morreu – ia eu dizer D. Quixote – o colosso, na modesta hospitalidade de um lar amigo.
Patrocínio foi como a flecha lançada em linha reta ao Sol – partiu da miséria, subiu gloriosamente, chegou ao esplendor, feriu o núcleo de fogo fazendo-o rebentar em faiscações estelares e voltou ao ponto de onde partira. O menino de Campos, que saíra do fundo de uma quitanda e chegara à intimidade dos reis, acabou miseravelmente em uma enxerga de esmola.
Tantas campanhas, tantas benefícios, e sonho do Bem, o Ideal da Justiça, mancheias de esmolas, consolações e generosidades, tanto amor e... à cabeceira um raio de sol brilhando como um círio aceso por Deus e, de joelhos, chorando-o, a esposa, os filhos e a família piedosa que o recebera.

E assim como os embalsamadores lavam o cadáver para o eternizar com essências, a História começa a purificar a memória do grande homem, o Gênio representativo da Liberdade no período mais intenso da nossa vida política, porque, depois do prefácio, que começa em 1500, foi em 1888 que irradiou o primeiro episódio da nossa história de povo autônomo, de povo livre com a ação carinhosa do 13 de maio.

A Pátria treme ainda com o baque do corpo do gigante e já a lenda – poesia da História – compõe, com as ações heroicas e os doridos sofrimentos, a figura olímpica do Epônimo. Nós, que o conhecemos, ainda lhe guardamos o aspecto real; mas os que entram na vida já o vêem outro, bem diferente do que foi.

“Os homens extraordinários, diz Ampère, gravam na memória humana uma imagem que começa por se lhes assemelhar, depois cada ano, cada século, ajunta-lhe um traço novo e o retrato acaba por não conservar cousa alguma do original.”
A figura de José do Patrocínio já se vai desprendendo da morte, cresce, brilha, fulgura, sobe do túmulo como de um oriente e, à medida que sobe, mais avulta e esplende e nos séculos vindouros, na auréola da lenda, não será um simples homem, mas o tipo grandioso do Heraklés brasileiro.
*
É para o lugar deixado por esse homem que vindes com vossa lira, Sr. Mário de Alencar. Guardai-o e honrai-º E não vos perturbeis com o que virdes e ouvirdes. Contam lendas que, já em dias cristãos, pastores árcades, sentando-se em ruínas de velhos templos e soltando as mansas ovelhas por entre plintos derrocados que a hera enramava e a umidade enegrecia, tiravam da cinta a flauta e, soprando árias, distraídos, tinham visões.

De repente, ouviam passos e vozes, cantos e sons de instrumentos. Olhavam e eis que se abriam as árvores e saiam moças nuas sorrindo e bailando nas pontas dos pés ligeiros, com festões de líquenes em torno das cintas breves, borbulhavam férvidas as fontes e emergiam das águas náiades airosas, o espaço rebrilhava cindido por entes aéreos.
As ruínas iam-se a pouco e pouco refazendo, erguiam-se do pó, despiam-se das ervas, aprumavam-se em colunas, escalonavam-se em degraus, estendiam-se em átrios, subiam em altares; reacendiam-se trípodes e, por entre as árvores soberbas, apareciam mistas de túnicas de linho enfestoadas de púrpura, tangendo liras fúlgidas, virgens coroadas de rosas, hierofantes augustos e, em procissão solene, passavam devagar, em silêncio, com majestade divina.
Entravam no templo.

Começavam em torno dos altares as danças religiosas; o fumo aromal subia em novelos azuis e o hino ressoava em coro à glória de Zeus magnânimo, condensador das nuvens, regulador da vida.
Erguia-se o pastor e, pálido, tremendo, olhava com medo a cerimônia mística.
Vozes novas sussurravam, outros passos farfalhavam: eram egipãs e napeias, oréadas e sátiros.
Atento, à escuta, maravilhado e estarrecido, o rústico olhava sempre, mas, dissolvendo-se em silêncio, tudo desaparecia: as ruínas tornavam-se ruínas, serenavam as águas, aquietavam-se as folhas, o sol brilhava, cantavam os passarinhos e onde vira o pastor ninfas e deuses, via apenas as ovelhas deitadas e os pequeninos borregos de lã nívea que brincavam às cabriolas pela alfombra.

Com o coração em calma retomava o pastor a frauta suave e, soprando-a, enchia o bosque amável de sonoridade.
Ilusões! Ilusões!
Os sítios conservam memória dos seus primeiros habitantes... se foram deuses, imaginai! Onde houve um templo, paira sempre mistério.
Não vos perturbeis com o que virdes e ouvirdes – um mundo de gente a descer do martírio com algemas de rasto tinindo pelas pedras, um povo a bradar hosanas!, flamas coriscando nos ares, o troar de uma voz potente evocando para a Liberdade o humilde Cativeiro, um Homem passando par entre estrelas e por fim, mendigo, a gemer, arrepanhando andrajos e escondendo, com pudor, as lágrimas ardentes.

Não vos importeis: são os assombramentos próprios do lugar sagrado. Tomai o vosso instrumento, cantai e ao som do canto tudo se restabelecerá: a Poesia é o bálsamo harmonioso da alma.

E o suave espírito quedará satisfeito, vendo que no lugar que ele deixou, tão cheio das suas agonias, veio ficar uma lira soando delicadamente.