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Marcos Almir Madeira

OLIVEIRA VIANA E A ACADEMIA

Em Oliveira Viana havia o escritor. Um escritor em segurança: senhor de um estilo. Não faltou a qualquer dos seus livros uma técnica de construção muito própria e acurada; e isso explica que fosse um autor de consciência literária invariavelmente limpa. É que o prosador, harmonioso e sério, nunca exorbitou — e creio significativo que tanto louvasse a Gide, lembro-me bem, como o “artista do período enxuto” — a Gide, precisamente, o mestre da littérature sans phrase. Era isso, essa simplicidade consciente e lúcida, o que ele mais estimava nas criações do humano André. Nada tão lógico: no velho “saquarema”, foi sempre o escritor uma expressão de equilíbrio. Havia nele, como categoria de elegância, um quer que seja de prudência artística, uma espécie de civismo literário: não forçou um adjetivo, não oprimiu um verbo. E nessa retidão de sua atitude de escritor — atitude já bem clara em 1911, quando estreou na grande imprensa — pareciam influir as razões do sociólogo: já então o publicista, por sua conduta no País não fazia senão zelar a pureza dos nossos costumes... literários. Mais tarde, venceu em livro: Populações meridionais do Brasil. Se foi nessa obra definitiva que se abalizou como sociólogo, foi nela, por igual, que se impôs o estilista. E as suas virtudes floriram, abrindo-se em requintes de lealdade e amor à língua portuguesa. Trabalhou-a sem preciosismo, mas com a boa medida e o discreto caminhar de um guardião que se presa. Essa fidelidade, notória em 1911, vinha a ser um patrimônio em 1918 — ano do 1º volume; e tanto vale por dizer que o mestre se fez acadêmico muito antes da eleição. Já o era de fato, quando os 39 o sagraram. Só lhe faltava o adorno — o fardão. O estilo, esse já o tinha, havia muito e atendia, de todo ponto, as exigências da Casa... Compondo e policiando academicamente os seus períodos, “enxugando”, como Gide, o seu estilo, agia, no entanto, por impulso da própria educação estética, obedecia a um imperativo da formação espiritual, cumpria, enfim, um voto íntimo: não buscava recomendar-se aos votos da Academia a que não visou realmente. E bem certo que acabou por escrever a carta petitória, declarando-se candidato; mas nem muitos sabem, e a grande maioria não imagina, o que foram as suas relutâncias, as suas teimas, as suas fugas. Quanto pôde, resistiu ao Trianon, resistindo aos amigos. Não lhe faltou aquela coragem que tanto gabou no Marquês do Paraná... E no episódio está a prova mais clara da sua total despretensão à glória dos títulos ou aos títulos da glória.

Recordo-me. Tipicamente, estudante, cursando, em 1928, o 2º ano ginasial, ouvia eu frequentemente, sem atinar com o sentido da coisa, uma queixa afetuosa, amiga, cordial, mas, em suma, queixa: “O Oliveira Viana esta sempre prometendo e faltando. Toda vez que se dá uma vaga, diz ao Alberto Oliveira que vai pleitear e não se candidata. Acaba irritando a Academia.”

Eu guardava as palavras, mas não sentia o assunto. Fosse como fosse, escutava as conversas, tanto em minha casa como na de Henrique Castrioto, que também era minha. Quebrar a resistência do “candidato natural”, eis o ponto; e uma noite, ganhou aspecto diferente a varanda da velha mansão dos Castrioto. Com o próprio Oliveira Viana, lá se reuniram, convocados pelo bâtonnier fluminense, vários amigos do grande arredio. Vagara-se mais uma cadeira azul, e era o momento. Sob a presidência tácita de Alberto de Oliveira, começaram os trabalhos. Ordem do dia, uma única: “catequese do escritor recalcitrante, que precisava entrar para a Academia” — era a tese do presidente e da assembleia. No tom imperativo da sugestão, espécie de homenagem autoritária, havia como um protesto, inspirado no fato, já sabido, de que a quase unanimidade da Academia estranhava a obstinação de Oliveira Viana. Vários, como Taunay, Afrânio, Rodrigo Otávio, Ademar Tavares, Humberto de Campos, iam dando forma às suas decepções. A queixa não partia, apenas, do círculo dos íntimos, do clã doméstico; já era ouvida na própria Casa de Machado. Mais da metade dos acadêmicos lhe havia feito apelo pessoal. Alguns, extremando-se em paciência, atravessavam a Guanabara, irrompiam em Niterói e, exaurindo-se em argumentos, teimavam com o teimoso, deixando as suas insistências no Fonseca... no 41, da Alameda São Boaventura. Outros, descrentes do processo oral, agiam nas cartas, pondo no correio os seus incitamentos. A carta de Fernando de Magalhães, não fosse a dele, já era um discurso de recepção...

Tudo isto vinha lembrado nas reuniões — acenos, apelos, ofertas, ressentimentos, garantias espontâneas, êxito certo. Num dos encontros, alguém encareceu a ponderação mais aguda: a Academia poderia sentir-se... Se a memória me favorece, foi quando Alberto de Oliveira, escandindo a sua estranheza, falando como escrevia, renovou a indagação parnasiana: “Por que, em suma, te não inscreves, ó Viana?!” O saquaremense ouviu a voz metrificada do conterrâneo — aquela voz redonda e cheia — e lhes opôs a sua humildade, esquiva, a emborcar nas últimas sílabas e a perder-se na largueza da varanda: “A Academia não precisa de mim pra coisa alguma. Eu nada valho. Contudo vou pensar.” (Isto era muito dele.)

Mas Alberto instava — queria uma decisão; e Viana, numa promessa que quase não se escutou, anuncia afinal. Pois bem: sobreveio o pleito e o candidato não se candidatou. Foi impossível encontrá-lo; estava na “roça”, não se sabia em qual delas...

No curso de nove anos, várias vezes se repetiu a burla. E paralelamente às suas evasivas e negaças, mais e mais se afirmava o tino do escritor, a esplender nos volumes sucessivos e a triunfar na critica de dois continentes. Mas querer é lutar - e os amigos não arrefeciam; nem os da província, nem os da Academia. Porfiavam nos argumentos, refazendo apelos. Sob a tenacidade de Alberto de Oliveira, continuavam as reuniões. Tudo em pura perda. Abriam-se as vagas e Viana fechava-se, fugia, escapulia, sumindo em Saquarema, como se mergulhasse na lagoa.

Em 36, com dois diplomas na gaveta e um rubi no dedo, tendo adquirido, ao fim de contas e de notas, a minha cidadania literária, eu amadurecia para a compreensão daquelas velhas canseiras, junto ao mestre, integrando-me no espírito da insistência acadêmica. Entrei para o “Comitê de Catequese”. E por mínima que fosse a minha autocrítica, nada poderia fazer: falhara a própria Academia, falhava o poeta-mor, falhara a imprensa do Rio e de vários Estados, onde a pena dos eminentes, inclusive a de João Ribeiro, escrevera, em 26, verdades plenas sobre aquilo que Afrânio Peixoto viria a considerar “um absurdo”: a ausência de Oliveira Viana, a sua não candidatura.

Uma preocupação, muito embora, lhe vinha constantemente, a ele, o grande culpado, o grande abstêmio: “Não gostaria, em hipótese nenhuma” — dizia-me por outras palavras — “que a Academia visse na minha atitude um sentido de desapreço ou de simples indiferença.” Não raro, acrescentava mais ou menos: “A minha relutância está na razão direta do meu respeito à instituição.” E uma vez, na sua modéstia inenarrável, armou este raciocínio incrível (textual): “Não me candidatando, estou valorizando a Academia.”

Afinal, em 37, sucumbe o Príncipe: vai-se Alberto de Oliveira. A morte do poeta foi o único argumento — catequizou o rebelde; quando menos esperavam, ei-lo a render-se — candidato, enfim. Não haveria rendição mais honrosa: entregou-se por gratidão, por fidelidade, à memória do amigo, seu verdadeiro patrono. Cumpriu, belamente, o desejo do morto. Em rigor, não sacrificou a sua coerência: quem bateu à porta da Academia não foi o escritor; foi a criatura humana por excelência, foi o amigo impelido pelo poder e a lógica da própria ternura. Vivesse ainda Alberto, não sei se afinal cederia; porque a verdade é que ninguém lhe poderia exigir coisa mais séria e penosa do que aquela decisão, aquela candidatura... E se lhe custou inscrever-se, mais lhe custou empossar-se. Foi a sua maior luta interior. Eleito num 27 de maio de 37, só em 20 de julho de 40 se deixou receber. Três anos para decidir-se, para vencer-se, para vestir-se... É que o fardão e suas consequências não lhe cabiam no temperamento. As galas, o ritual, os rigores sociais da posse o afligiam e atemorizavam. O discurso, dos mais acadêmicos que se conhece, isto foi coisa de onze dias, muito apesar das tarefas, então mais numerosas e complexas, do consultor jurídico do Ministério do Trabalho. Mas o ato, a festa, a solenidade da investidura, eis o drama, o sofrimento, a negação de si mesmo. Era social e fisicamente contrário a recepções — acadêmicas ou o que fossem; e no auge das suas apreensões, a imaginação aflita lhe aguçava a capacidade de previsão. Futurava desastres em que o viesse a fulminar o ridículo. Claudicar na leitura, gaguejar, titubear não seria tanto; mas ser atropelado pela própria espada, à hora decisiva de entrar na sala, ou derramar na tribuna, por um gesto infeliz, a água do copo indefectível, eis duas calamidades que figurava aturdido. Várias outras, não menos públicas, incluía no rol das probabilidades tragicômicas; e assim, de conjetura em conjetura, sofria por antecipação...

Grande Viana: quanto mais simples, quanto mais rural, maior me parecia — mais igual a si mesmo. Foi uma curiosa organização: socialmente, um grande tímido; intelectualmente, um arrojado, a repreender o Brasil libelando as suas elites, num constante desafio à réplica dos juristas e à malícia dos políticos. Mas enfrentar e suportar uma recepção parecia demais; nisso o “marginal” era ele... Sabia-o, aliás, como ninguém; e os muitos adiamentos da festa da posse eram uma reafirmação, já agora pitoresca, do seu velho realismo, a força motriz da sua hora. Foi ele, aquele veterano e contagioso realismo, que o dirigiu na noite de gala. Tão logo findou a sessão, correu ao vestiário e de lá voltou desoprimido, no seu paletó liberal. Disse-me, então, numa autoironia sutil: “Há quase três horas você não me vê...” Compreendido: queria dizer que desaparecera sob o fardão; que vestindo a grande roupa, ele era outro; não era o mesmo - não era ele... E disse tudo.

Minutos mais, já no portão venerando, enquanto aguardávamos o táxi — providência do bom Fidélis —, ele se voltou para a fachada do prédio e observou sincero: “Esta casa tem um belo papel ‘seu’ Marcos: é uma linha de resistência...”

Mais que prezar, Oliveira Viana soube sentir a Academia. No mérito nenhuma divergência. Ao contrário: uma antiga e profunda integração. Só não se ajustava, ali, às preliminares dos estilos sociais, às imposições do rito cênico. Adorava a essência, mas queria outro frasco; de cristal, sim, porém diverso — talvez mais liso... Foi um esteta diferente: rebelde por timidez e esquivo à bandeira?...

 

(Homens de marca, 1979.)

 

 

FERNANDO PESSOA E A MUDANÇA SOCIAL

Fernando Pessoa foi o mais inventivo dos poetas — o mais pessoal. Talvez o mais excitante. Cultivou o paradoxo, não apenas com engenho, senão também com avidez, a tal ponto que parecia divertir-se sensualmente com ele. Tornou-se como poeta e homem de pensamento, como esteta renovador e filósofo inquieto, um dos talentos mais provocantes deste século; positivamente, uma organização mental que atingiu os mais altos níveis de singularidade e arrojo, para não dizer de audácia, às vezes a ferver de irreverência, incômoda para muitos, mas construtiva para todos; audácia estimulante de todas as façanhas do espírito, de todas as peripécias da inteligência de indivíduos e de grupos, à espera da mensagem diferente, nova, nervosa. A esses, principalmente a esses, foi que levou o seu aviso, — não apelos, que não estavam na sua índole, mas advertências, senão mesmo objurgatórias, a faiscarem notadamente na obra em prosa. Nesse campo da sua semeadura e da sua colheita, a visão social propriamente dita manifesta-se numa espécie de sentido ou consciência da história.

Vistos a essa luz, seus achados ou registros de interesse sociológico são tanto mais consistentes quanto mais ele os condiciona à pressão dos agentes culturais, em termos precisos de tempo e meio. Quando nos dá o traçado de uma Sociologia literária, é para ponderar, por outras palavras, que a poesia culta escapa a critérios de individualidade e popularidade; está vinculada ao sistema de valores da época. É evidente, aí, a convergência para os esquemas conceituais do culturalismo germânico, só podado em suas demasias pela vocação de equilíbrio de certos expoentes da sociologia francesa. Mas isto não é o que agora importa; o que avulta é mais que a visão: é a antevisão do poeta, ao escrever nos idos de 1914, quando estava no auge a exaltação do individualismo, a que opunha uma concepção nitidamente social do fato literário. O que ele via eram climas de cultura no fundo do tempo, a se constituírem em explicação final para criação literária. Uma confirmação disso está, por exemplo, na sua observação de que o Infante D. Henrique foi o “perfeito tipo de sonhador”... porque “viveu no tempo em que se podia sonhar”.

Em 1916, tratando de arte moderna, adverte a sociedade de então, baseando-se nos dados da realidade social ateniense. Para ele, corria a civilização “o risco de ficar submersa como a Grécia sob a extensão da democracia ou então de ficar como Roma... nas mãos... de grupos financeiros sem pátria, sem lar na inteligência, sem escrúpulos intelectuais”...

Retomava, naquela altura, o conceito de que a arte é feita para o povo. Refugava largamente a tese ou o pressuposto; pressuposto que vai sendo impugnado em centros cultos do mundo de nossos dias, mesmo por estudiosos que não se alistaram entre simples conservadores e reacionários integrais.

Sobre Portugal entre o passado e o futuro, a visão social do escritor não chega a revelar um atitude de autoflagelação, mas o seu pessimismo é irônico. Conclui que a crise portuguesa “provém, essencialmente, do excesso de civilização das incivilizáveis”. Esta reflexão encontra desdobramento natural na conclusão de que o povo português é fundamentalmente cosmopolita ou de que “nunca um verdadeiro português foi português - porque foi sempre tudo”.

É interessante assinalar que nas suas meditações sociológicas em torno da religião ou da fé, Fernando Pessoa já não é um crítico da linha pluralista, como foi ao traçar o perfil do povo português; povo que acabava sendo nada, exatamente porque foi sempre tudo.

Não. No misterioso domínio da religião, a visão social lhe apontava os rumos do ecletismo de concepção e de ação, de tal modo que se torna, entre 1916 e 1923, um ardoroso adepto do que hoje recebe o nome ecumenismo.

“Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.”

Veja-se agora a conceituação de provincianismo: “Consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la, pois, mimeticamente.” Fernando identifica na atitude de pasmo ou, por bem dizer, de basbaque ante o progresso, a característica mais viva do provinciano; e argumenta com o fato de que “os civilizados promovem o desenvolvimento, criam a moda, criam a modernidade; por isso não lhes atribuem importância maior. Quem não produz é que admira a produção”. E é esta, lembra o poeta com agudeza, uma das explicações do socialismo. Eça de Queirós, para ele, é um flagrante exemplo de provincianismo. E acrescenta redondamente: “Foi o escritor português que mais se preocupou em ser civilizado.”

Um outro ponto de afirmação doutrinária que devo destacar coincide com as ideias básicas de um emérito pensador social brasileiro: Alberto Torres. Refiro-me a ideias em torno da posição nacionalista. Torres considerava o povo brasileiro, mas notadamente seus grupos de elite, “alienados de espirito e de caráter”. A crítica social de Fernando Pessoa tem outro revestimento literário, é vazada numa espécie de ironia patriótica, mas ajusta-se ao pensamento do doutrinador fluminense. “Estamos tão desnacionalizados — denuncia o líder do Orfeu — que devemos estar renascendo. Para os outros povos, na realidade eles próprios, o desnacionalizar-se é o perder-se. Para nós que não somos nacionais, o desnacionalizar-se é o encontrar-se.”

Nas suas considerações sobre o patriotismo localista — ou melhor, sobre o regionalismo — o poeta filósofo antecipa-se a uma concepção dinâmica da cidadania e do amor à terra, concepção oposta à do patriotismo apenas contemplativo, cândido ou ufanista. A visão estreita do regionalismo, creio até que o irritava. Não terá sido por outra razão que escreveu: “Amar a nossa terra não é gostar de nosso quintal. O bom regionalismo é amá-lo por estar ele na Europa. Mas quando chego a este regionalismo sou já português e já não penso no meu quintal.”

Em assunto bem outro, recordo agora certo libelo: aquele em que poeta resume suas ideias sobre o comunismo.

“Ao contrário do catolicismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele a tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e compreensível, quer teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema — o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução... inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós.

O comunismo não é uma doutrina porque é uma antidoutrina, ou uma contradoutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado até hoje, de espiritualidade moral e mental — isto é de civilização e de cultura —, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.”

Que me permitam assinalar uma coincidência, embora incorrendo em autocitação. Há mais ou menos quatro décadas, publiquei algumas reflexões sobre o comunismo. Foi quando me correu sustentar que o marxismo-leninismo não perfaz a rigor uma doutrina, exatamente porque a sua prédica, feita num clamor de apelo, deriva de um estado de espírito e não de um gesto ou uma opção do espírito; muito menos resulta de uma definição da inteligência trabalhada pela reflexão. É um incitamento, um frêmito, uma mensagem a instintos insatisfeitos. Não é o raciocínio político, mas o protesto que se exaure em si mesmo. A bem pensar, exerce uma função parasitária, nutrindo-se de circunstâncias anômalas, erigindo em regra a própria contingência. Vale-se da miséria, alimenta-se da própria fome, compondo o paradoxo tragicômico. É um equívoco do sofrimento, uma congestão da inveja, uma corruptela do espírito de justiça, um código de vingança, ou uma vingança a um só tempo homicida e suicida. Tudo isto será o comunismo. Doutrina é outra coisa.

Ainda uma vez lhes peço: perdoem que me esteja a citar. Mas aconteceu que vendo agora o meu encontro de ideias com o Fernando de todos nós, não pude resistir à tentação de sublinhar a coincidência, para pôr em festa minha vaidadezinha tropical...

Sobre a ilusão política das grandes manifestações populares medite-se nestas palavras de realidade transparente:

“Nisto de manifestações populares, o mais difícil é interpretá-las. Em geral, quem a elas assiste ou sabe delas ingenuamente, as interpreta pelos fatos como se deram. Ora, nada se pode interpretar pelos fatos como se deram. Nada é como se dá. Temos que alterar os fatos, tais como se deram, para poder perceber o que realmente se deu. É costume dizer-se que contra fatos não há argumentos. Ora, só contra fatos é que há argumentos. Os argumentos são, quase sempre, mais verdadeiros do que os fatos. A lógica é o nosso critério de verdade, e é nos argumentos, e não nos fatos, que pode haver lógica.”

E aqui retomo, para concluir, o argumento central deste pequeno estudo: argumento de que a visão social de Fernando Pessoa resulta, predominantemente, da agudeza com que ele trabalha o fato histórico, buscando, no caso específico de Portugal, a explicação de um certo presente pela compreensão de um certo passado. Observem-se no capítulo “Ideias políticas aplicadas ao caso português”, da coletânea em prosa, estas mostras do seu pensamento sociológico:

“Onde quer que se coloque o início da nossa decadência — da decadência resultante do formidável esforço com que realizamos as descobertas e as conquistas —, aí se deve colocar o início da grande ruptura de equilíbrio, que se deu na vida nacional. Com a dispersão, por todo o mundo, e a morte em tantos combates, precisamente daqueles elementos que criavam o nosso progresso, o nosso pequeno povo foi pouco a pouco ficando reduzido aos elementos apegados ao solo, aos que a aventura não tentava, a quantos representavam as forças que, em uma sociedade, instintivamente reagem contra todo o avanço.

...No caso do superconservantismo, o remédio a aplicar tem de ser um transformador mental, criador de interesse e energia, e, ao mesmo tempo, uma cura para o atraso da nação. Ora, há só um gênero de transformação, aplicável a uma nação inteira, e pela qual se lhe avive o espírito e se lhe desperte interesse e vontade: é uma transformação profissional, e, como se trata de um país atrasado, e todos os países atrasados são predominantemente agrícolas, é evidente que a única transformação profissional a fazer, e que preenche todas as condições exigidas, é a industrialização sistemática do país.

Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos tido, ou que temos querido ter, nos tem falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido... Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral. Trabalhemos ao menos — nós, os novos — por perturbar as almas, por desorientar os espíritos.”

No auge do paradoxo, que era o seu clima (ainda que paradoxo às vezes aparente) todos sabemos o que pretendia o poeta pensador com as suas tiradas borbulhantes e excentricidades conceituosas, quentes, buliçosas. Toda a sua ânsia era sacudir a árvore, replantar Portugal, mudá-lo, transformá-lo revolver todo o “quintal”... E assim se explica que tenha advertido maciçamente, na concisão de três palavras: “Tudo é mudança.”

Aí está. Na brevidade do conceito, a atualidade do escritor. Quem lhe negaria uma perfeita integração no que tem de mais palpitante, em nossos dias, a compreensão dinâmica dos fatos e processos sociais? Basta conferir suas três palavras — Tudo é mudança — com o mundo das realidades que nos cercam e desafiam no quotidiano da vida de hoje.

E não faltaria ao excelente inquieto o aval de um poeta em prosa: Maeterlinck. Pois não estava nele a conclusão de que própria ciência é um “conjunto de verdades provisórias”?...

 

(Palestra no Liceu Literário Português, em 28-3-1986, no Rio de Janeiro.)

 

(Atualidade política de três poetas: Victor Hugo, Fernando Pessoa e García Lorca, 1988.)